Na era do professor desnorteado

O educador

Ao contrário daquilo que pode pensar quem esteja de fora, os problemas pedagógicos do ensino universitário não são agora em menor escala, nem mesmo, em alguns casos, substancialmente diferentes, daqueles que estão desde há muito identificados nos ensinos básico e secundário. Limito-me aqui a enumerar duas áreas particularmente críticas, embora raramente abordadas. A primeira tem a ver com profundas convulsões que têm afectado crescentemente a autoridade do professor e o relacionamento na sala de aula. A segunda relaciona-se, de um lado, com o confronto entre a forma tradicional de conceber os processos do conhecimento e os métodos de ensino, e, do outro, com as diferentes expectativas das mais recentes gerações de alunos, frequentemente associadas aos novos instrumentos de acesso à informação.

Em «La era del profesor desorientado», um artigo surgido sábado passado no El País, anuncia-se uma situação que, afinal, está a cruzar todas as fronteiras da velha e ex-conservadora Europa: os professores enfrentam estudantes menos obedientes, aparentemente menos receptivos, mas que se movimentam muito bem em áreas que eles, educadores, conhecem mal ou não dominam de todo. Faz-se então uma pergunta: será preciso regressar à velha disciplina ou é antes preferível modernizar o ensino?

Traduzo o parágrafo inicial do artigo do diário espanhol: «Uns acreditam que o problema reside no facto dos professores do século XX tentarem educar a jovens do século XXI em escolas do século XIX, e por isso as coisas não funcionam. Outros, que foram perdidos valores básicos da educação, sobretudo a disciplina e o esforço. Na realidade, trata-se de duas maneiras distintas de enfrentar um mesmo facto: que os docentes não conhecem, não encontram ou não lhes oferecem as ferramentas necessárias para ensinar a novas gerações de jovens, as quais não respondem da mesma forma que as anteriores à educação escolar.» Um caso sério, diante do qual a pior solução – que infelizmente tem vingado em muitos casos –, consiste em meter a cabeça na areia, ignorando a situação real de mudança de paradigma que atravessamos, e marinando na ficção de que um dia as coisas «melhorarão» por si (isto é, voltarão ao antigo modelo). Ou então decairão inapelavelmente. Em ambos os casos, atirando a toalha ao chão.

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    Uma noite inesquecível

    Man in the moon

    Sei onde estava há exactamente quarenta anos. A noite era mais fria do que esta, apesar de já ser Julho e determinados mitos urbanos afirmarem agora que os verões eram sempre insuportavelmente quentes. A televisão, uma Blaupunkt a preto e branco (ou seria uma Nordmende?), crepitava de vez em quando, ameaçando desistir. Preparávamo-nos – já só eu e o meu pai teimávamos num serão que se previa longo – para seguir, um tanto cépticos mas bastante excitados, as últimas manobras de alunagem da Apollo 11. Dali a horas, entrava-nos na sala um eco chegado do outro mundo: «That’s one small step for man, one giant leap for mankind». Na estação de Cabo Canaveral urrava-se, pulava-se, celebrava-se. Nós dois permanecemos calados, pensando, zonzos de sono, incrédulos, não passar tudo de um sonho. Fomos deitar-nos sem trocar uma palavra.

    [audio:http://aterceiranoite.org/sons/armstrong.mp3]
      História, Memória

      Margem de certa maneira

      Margem
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      Pego no 18 de Brumário de Luís Bonaparte e regresso ao momento em que Marx procurou estigmatizar os partidários do futuro imperador: «Lado a lado com elegantes arruinados, de meios de fortuna duvidosos, aventureiros e bastardos, devassos da burguesia, encontravam-se vagabundos, soldados desmobilizados, ex-presidiários, antigos foragidos das galés, saltimbancos, chantagistas, desclassificados, carteiristas, trapaceiros, jogadores, gigolôs, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, amola-tesouras, mendigos, em suma, toda uma massa confusa, decomposta e flutuante, a que os franceses apelidam de boémia.» Não se poderia condenar com maior clareza todos aqueles que, recusando a marcha a passo cadenciado, preferiam viver fora dos caminhos convencionais.

      Os tipos citados eram considerados mais ou menos próximos do lumpenproletariat, marginais tanto em relação à forma como Marx concebia os grupos capazes de uma posição historicamente revolucionária – por isso o estalinismo fez deles aquilo que se sabe –, como em relação ao dispositivo da ordem burguesa dominante. Actualmente, porém, as maneiras de ser e de pensar que foram qualificadas pelo filósofo alemão como confusas, flutuantes, decompostas, ou simplesmente aventureiras, são partilhadas por um conjunto alargado de marginalidades, transformaram-se algumas vezes em sociabilidades nómadas e instáveis mas com uma legitimidade própria, alternativa à dominante. Enquanto fontes de perturbação para o funcionamento previsível do sistema, podem afirmar-se como trincheiras de liberdade, territórios de resistência ao trabalho de normalização e controlo imposto pelo Estado e pela suprema ordem neoliberal.

        Atualidade, Democracia, Olhares

        Para não se dizer que não falei do H1N1

        Obama_H1N1

        Tenho dificuldade em fazer previsões sobre as consequências do surto pandémico de gripe A que se prevê irrompa em Portugal logo que o tempo comece a arrefecer e as andorinhas que restarem partam de novo para África. Por simples ignorância. Os especialistas dizem que no «pior dos piores» cenários morrerão 8700 pessoas em Portugal, mas logo acrescentam que o cenário «deve ser encarado sem dramatismos». Afinal, parece que a gripe comum todos os anos mata quase duas mil almas, e ninguém, salvo alguns hipocondríacos, vive atormentado com isso. Limito-me pois a olhar para as previsões e a tomar o sumo de laranja que recomendava a minha avó, com a vaga sensação de que, fazendo parte de um grupo de risco, deverei ter particular cuidado em evitar correntes de ar e frio no pescoço.

        Existe, no entanto, um lado do problema que é preocupante. A comunicação social agarra como sempre o filão da desgraça e todos os dias efabula cenários apocalípticos de devastação e crise: ruas desertas, fábricas paradas, escolas sem aulas, comércio fechado, estádios vazios, as traineiras em terra e os aviões também. Nas ruas, os escassos transeuntes circularão de máscara e luvas, e o paracetamol valerá mais que petróleo. Os cidadãos passarão em casa o seu tempo de quarentena, partilhando boatos por e-mail, dormindo em camas separadas, trocando os beijos por adeuzinhos, recusando até participar no funeral dos parentes mais chegados. Os cenários propostos têm a ilimitada imaginação por limite. E fazem-no com uma tal intensidade, de maneira tão pessimista e repetitiva, que, chegada a hora, quando alguns cuidados forem necessários, já poucas pessoas darão grande valor às notícias e toda a gente circulará pelas ruas de manga curta e cabeça ao sol, tossindo para cima dos outros. A vaga de alarmismo por antecipação que estamos a viver pode dar maus resultados.

          Atualidade, Devaneios, Olhares

          A estrela de cinco pontas

          [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=zANxbdvy-D4[/youtube]

          «Um debate sobre os significados da revolução de Outubro deve ser aberto, descomprometido e informado, não a afirmação de um credo». É já possível ler no blogue da editora Angelus Novus a segunda e última parte da entrevista que me foi feita a propósito do lançamento do livro Outubro. A primeira parte pode ser seguida numa outra página do mesmo blogue. Aqui fica também o 2º clip de promoção.

            Novidades

            Imprimatur no século 21

            nós, vós, eles

            «No seguimento de ameaças de represália que não podem deixar de ser consideradas», a Chiado Editora resolveu adiar indefinidamente o lançamento do livro A Última Madrugada do Islão, de André Ventura. Informa ao mesmo tempo que «decidiu solicitar, adicionalmente, dois pareceres sobre o eventual conteúdo ofensivo e controverso da obra em questão, respectivamente ao Sheikh David Munir, líder da Comunidade Islâmica de Lisboa, e ao Professor Mostafa Zekri, especialista em assuntos islâmicos, de forma a melhor compreender as ameaças recebidas e antecipar eventuais cenários problemáticos resultantes da publicação», adiantando que do resultado destes pareceres «dependerá a decisão definitiva» sobre a publicação do romance.

            O livro «resulta de uma vasta investigação histórica e apresenta pontos que, não obstante originais e interessantes, se revelam particularmente polémicos», recriando o cenário em que morreu Yasser Arafat e dramatizando aspectos da vida de um jovem muçulmano em Paris. A editora entende que «os comentários recebidos em relação à obra em causa e a análise da história recente» a forçam a ser «prudente em relação às publicações que chegam ao mercado, tendo em conta a segurança do autor, editores e distribuidores do livro». Sentiu-se ameaçada, portanto. Mas evoca também condicionalismos relacionados com «a possibilidade de serem prejudicadas, como aconteceu no passado noutros países, as relações portuguesas com Estados e comunidades islâmicas, muito particularmente a Palestina».

            Aceita-se pois, no país que viveu um pesado regime censório mas conseguiu aboli-lo há 35 anos, que se coíba a circulação de uma obra literária. E admite-se, de forma aparentemente normal, um recuo aos tempos inquisitoriais do imprimatur, agora já não de clérigos arrolados pela Inquisição mas de duas autoridades em assuntos islâmicos. O editor está no seu direito de ter medo das consequências materiais da publicação. Porém, colocado nestes termos, o assunto adquire uma gravidade que ultrapassa a intervenção da Chiado. Afinal, não falamos apenas de uma pequena contrariedade editorial, mas sim de uma grave cedência diante de pressões exteriores, capazes de impor em Portugal limitações à liberdade de criação, de circulação do livro e de opinião. Pressões com força suficiente para atearem a autocensura e o medo.

              Atualidade, Democracia

              Agarra que é comuna!

              Commie

              Depois do disparate, mais valia ficar calado por umas horas. Mas o homem não consegue, está-lhe na massa do sangue falar pelos cotovelos. Alberto João Jardim veio agora esclarecer aquilo que pretendia com a tal proposta absurda de proibição do comunismo por decreto. Diz que realmente «o ideal seria a Constituição Portuguesa não proibir ideologias», tendo defendido aquilo que defendeu apenas para evitar situações de privilégio. Ora, se o exercício inicial, comparando as duas grandes experiências totalitárias do século passado, ainda se entendia, se bem que em termos menos grosseiros e ignaros do que os propostos, já o mesmo se não aplica ao fascismo e ao comunismo enquanto «ideologias». Se, no plano dos princípios, o primeiro é essencialmente elitista e agressivo, o segundo é – nos fundamentos, não na lógica grotesca dos regimes e dos partidos que perverteram a sua raiz utópica – estruturalmente igualitário e fraterno. Uma banalidade de base da qual alguns comentadores certificados se esquecem. Da qual o político ilhéu não se apercebe. Mas que faz toda a diferença.

                Apontamentos, Atualidade, Opinião

                Duas balas para Natalia

                Natalia

                Agora foi a vez de Natalia Estemirova, encontrada morta, com dois tiros na cabeça, numa floresta da república de Inguchétia, após ter sido raptada quando saía de casa. Tinha sido uma das colaboradoras mais próximas de Anna Politkovskaia, assassinada em 2006, e trabalhava para a Memorial, uma das mais importantes organizações russas de defesa dos direitos humanos. Investigava de momento dossiers sensíveis sobre centenas de casos de rapto, tortura e assassínio praticados por tropas russas ou forças paramilitares. Era uma crítica insistente do actual presidente tchetcheno, Ramzan Kadirov, e da política do Kremlin para o Cáucaso. Entretanto a presidência russa já reagiu, tendo um porta-voz garantido que Medvedev ordenou uma investigação ao caso. Pois.

                  Atualidade, Democracia

                  A memória também se arrepia

                  Parecerá talvez um pouco estranho, provavelmente absurdo, um post como este sem o vídeo ao qual se refere a acompanhá-lo. Afinal, existem na Internet centenas, provavelmente milhares, de pequenos vídeos artesanais gravados por estes dias nas ruas de Teerão. Mas vi há dois ou três dias um muito particular, do qual por lapso não guardei o link – e daí a sua ausência –, que quero evocar aqui.

                  «Então é assim»: eu não sei quantos leitores deste blogue algumas vez participaram, sob ditadura, uma qualquer ditadura, naqueles momentos que antecedem uma manifestação de rua proibida, com todas as hipóteses de acabar mal e ser reprimida. Eu já, infelizmente e graças a Deus. Várias vezes, e de forma tão próxima, tão intensa, que após duas delas acabei o dia com os ossos na prisão. Da segunda vez, o episódio valeu-me mesmo uma guia de marcha para três anos de serviço militar obrigatório, quando deveria era estar a estudar, a ver cinema e a namorar. A situação que quero invocar é, no entanto, apenas uma circunstância, um fragmento desses momentos, cuja lembrança foi subitamente acordada.

                  Recordar-se-ão aqueles que partilham dessa experiência de manifestante ilegal que corre riscos, dos momentos que antecedem o clímax do protesto e a repressão: de início apenas um estranho silêncio, depois um rumor seco, vozes esparsas e em surdina, as pessoas todas muito juntas, ombros com ombros seguindo nos passeios, os olhares a medir o terreno, tensão no ar, as figuras casuais dos óbvios polícias à paisana, o ruído dos passos que batem no chão, compassados, antes ainda de se começar a gritar, primeiro a duas, depois a três, a cinco, a dez vozes, e de repente em uníssono. Revisitei tudo isto, mesmo sem perceber uma palavra daquilo que as pessoas murmuravam, e depois gritavam, ao ver o tal vídeo de rua gravado em Teerão. E senti, juro, a memória a arrepiar-se. Deve ser da idade.

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                    Seis teses e um oxalá

                    Speaker's Corner

                    Após as eleições europeias, começou a circular entre alguns comentadores um estranho sentimento de estupefacção e medo. Pelo facto, matematicamente comprovado, de 21% dos votantes ter decidido apoiar as candidaturas de partidos que eles associam – não sei se por convicção, se por mero expediente retórico – a uma «extrema-esquerda» fora do tempo. Mas nem a surpresa faz muito sentido, diante da amplitude das marcas de descontentamento que ampliaram o voto de protesto, nem o pânico se justifica, uma vez que o inimigo é menos perigoso do que parece. Afinal, a Revolução Bolchevique 2.0 não está aí, ao virar da próxima esquina.

                    1. Desde logo, apenas existe «extrema-esquerda» onde é possível dissentir de uma esquerda moderada mas efectiva. Ora, como a esquerda configurada no actual Partido Socialista, doutrinariamente confinada a vagas declarações de princípio para uso eleitoral, é essencialmente formal e apoiada num referencial histórico de dimensão sobretudo simbólica, julgo não ser possível extremar o inexistente.

                    2. Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português jamais caberão no mesmo saco. É verdade que o Bloco integra ainda pequenos vestígios de uma esquerda radical paralisada no tempo, mas o essencial da sua linha actual é até mais da natureza interpelante, como força de pressão destinada a criar condições para uma governação e uma mobilização social à esquerda.

                    3. Já o PCP continua a ser, e não se vislumbra que possa mudar nos tempos mais chegados, um partido de certa forma ambíguo: com uma prática pública protestativa e de contrapoder, mas ao mesmo tempo, e apesar de teoricamente concebido como vanguarda imaginária da luta pelo poder de Estado, sem propostas concretas sobre o que fazer com ele.

                    4. A esmagadora maioria dos votantes do BE jamais aceitará uma partilha de poder ou mesmo uma coligação eleitoral com os comunistas. A mesma coisa se passa, em sentido inverso, com uma grande parte dos eleitores do PCP e com a generalidade dos seus militantes. Para além de uma eventual confluência de princípios, existem experiências, culturas políticas e até marcas geracionais que os colocam em planetas diferentes.

                    5. Falar hoje de «extrema-esquerda» não é de falar de partidos como estes, com programas e estruturas dirigentes estáveis, com compromissos públicos, com ligações internacionais conhecidas, com uma integração mínima no sistema democrático parlamentar, com fundamentos ideológicos minimamente reconhecíveis. É antes falar das margens, algo anárquicas e bastante móveis, que agora se reconfiguram fora deles, ao sabor de causas e movimentos nos quais podem exprimir a sua radicalidade.

                    6. Se existem então razões para que o sistema e os seus defensores possam exprimir sentimentos de medo, elas não se encontram em partidos como os citados, que veiculam pontos de vista e interesses reconhecidos. Encontram-se antes na própria incapacidade dos grupos vocacionados para a gestão do sistema – a começar, no caso em apreço, pelo PS – que se deixam desvitalizar politicamente e se mostram incapazes de agregar os agentes mais dinâmicos e uma cidadania activa, trocados por exércitos de gestores mais ou menos competentes, mas conformistas e sem rasgo.

                    Dito isto, insisto em que a preocupação dos aparentemente apavorados comentadores visa objectivos errados. Seria mais interessante se ela pudesse voltar-se para a compreensão dos bloqueios do poder. Oxalá alguns deles o possam entender rapidamente.

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                      Palma

                      Palma Inácio

                      Aos 87, morreu Hermínio da Palma Inácio, o nosso Zorro. Nunca se adaptou verdadeiramente ao desaparecimento do capitão Rámon do Vimieiro, seu arqui-inimigo. Um dia Natália Correia apontou-o como o «último herói romântico de Portugal». Goste-se muito ou pouco do estilo da personagem, ficamos a dever-lhe a coragem e o exemplo.

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                        «Caminharemos de pés nus»

                        Prisioneira não identificada

                        Escrevo durante uma pausa na leitura coerciva de No Inferno dos Khmers Vermelhos, de Denise Affonço (Pedra da Lua). A autora é uma sobrevivente do imenso campo de morte e atrocidades no qual, entre 1975 e 1979, se transformou todo o Camboja. Naqueles quatro anos, pelo menos 1,7 milhões de pessoas, cerca de 20 por cento da população, sucumbiram à fome, às doenças, aos trabalhos forçados, à tortura e às execuções sumárias. O objectivo do poder khmer, apoiado num exército de adolescentes fanatizados e aplicados em impor um sacrifício colectivo purificador, era o regresso imediato, sem qualquer transição ou cedência, a uma vida rural, absolutamente primitiva, assente nos princípios do que consideravam ser o comunismo integral. A construção acelerada da distopia perfeita. O extremo horror pode ser revisitado observando certas normas impostas aos milhões de cidadãos-prisioneiros: «é proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», «é proibido ter saudades do passado», «nunca nos devemos queixar do quer que seja». Ou algumas das apertadas regras relativas à aparência: «nunca devemos usar roupas de cor», «caminharemos de pés nus: acabaram os sapatos e os chinelos», «as pessoas com problemas de vista deixarão de ter direito a usar lentes correctoras», «quando estivermos sentados (…) é proibido cruzar as pernas, sinal exterior do capitalismo», «trabalharão todos os dias do nascer ao pôr-do-sol; sábados, domingos e feriados são abolidos». Um terrífico relato de viagem ao território mais recôndito da impiedade e da maldade humana.

                          Democracia, História, Memória

                          Orgulho sem preconceito

                          A ministra da Educação diz que o país deve encher-se de orgulho com os resultados dos exames de Português e de Matemática do 9º ano de escolaridade. Justamente aqueles que muitíssimos alunos, numerosos professores e outros cidadãos atentos consideraram excessivamente fáceis. Convém pois moderar o enchimento, de modo a evitar que alguma coisa rebente.

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                            A leitura ameaçada

                            Leituras

                            Nicholas G. Carr, o autor de The Big Switch, aponta para uma viragem que não é ilusória: «A Internet diminui aparentemente a minha capacidade de concentração e de reflexão. O meu espírito reconhece agora as informações de acordo com a forma como a Internet as distribui: como um fluxo de partículas que escorre rapidamente. Antes eu era um mergulhador num mar de palavras; agora rasgo a superfície como um piloto de jet-ski.» Carr serve-se dos avanços das neurociências relacionados com a plasticidade do sistema nervoso para sustentar que os circuitos neuronais se adaptam facilmente a uma leitura rápida, sublinhando como este aumento de velocidade está a reprogramar biologicamente o nosso cérebro. Quando, ainda nos anos 60, Marshall McLuhan anunciou o fim da «galáxia de Gutenberg», da preponderância do paradigma tipográfico, o cenário era já previsível para os mais sagazes.

                            Mas foi a criação e sobretudo a generalização da Internet que suscitou um confronto inevitável entre o antigo modelo da leitura lenta – silenciosa, reflexiva, essencialmente individual –, e um outro, fundado agora na velocidade, no ruído, no movimento e na partilha. E também na simbiose com outros processos de comunicação. Os resultados de um inquérito recente reportaram que cerca de 80% dos adolescentes americanos são incapazes de se concentrarem na leitura sem a presença de música ou de um qualquer ruído de fundo, ou sem imagens a dançarem num ecrã, algures debaixo do seu ângulo de visão.

                            Um dos problemas que a situação transporta consigo não está no reconhecimento de uma mudança radical nas formas de percepção e nos estilos de vida, uma vez que esta é incontornável e de certa forma inevitável. Está antes nos sectores que ainda têm peso no controlo do saber e da comunicação, e a observam «entendendo» que o processo é passageiro e esperando, quixotescamente, que ele possa um dia recuar. O resultado é uma clivagem brutal entre universos e linguagens que em breve os tornarão incompatíveis, projectando cenários para um novo estado de barbárie.

                            A realidade é particularmente dramática no campo do ensino superior, em particular no das humanidades, no qual o paradigma gutenberguiano, essencialmente livresco e baseado ainda, demasiadas vezes, no arquétipo do sábio humanista encerrado no seu gabinete, permanece dominante, tanto ao nível pedagógico como nos critérios de aferição científica, em termos de orientação e de reconhecimento dos trabalhos académicos, privilegiando-se claramente nas avaliações curriculares o modelo anterior. Continua a considerar-se, em muitas ocasiões, que existe uma «leitura de distracção», decididamente inferior, a qual pode de facto transcender a comunicação em papel, e uma «leitura de informação», sem dúvida superior, que dos livros, ou pelo menos dos escritos em formato tradicional, se serve como suporte praticamente exclusivo.

                            Existe porém um outro modelo de leitura. Este implica uma hibridez de instrumentos cognitivos, de formas de saber e até de códigos de validação. E a construção sistemática de pontes entre processos e atitudes. Ele não supõe a diluição do conhecimento superior no saber comum, mas tão só o reconhecimento de que existe também um património de experiências, de dados e de saberes em relação ao qual as estratégias da investigação, da partilha e da comunicação terão de ser mais abertas. Estas devem em larga medida ser reinventadas, para que os vestígios do anterior paradigma possam sobreviver e não sejam apagados pelas gerações que estão a chegar – apetrechadas já das grandes alterações ao nível dos mecanismos de percepção – e o olham como qualquer coisa de caduco ou mesmo de incompreensível. No diálogo homónimo atribuído a Platão, Fedro, o jovem interlocutor de Sócrates, percorre distraído um texto em papiro no preciso momento em que o filósofo disserta, amargurado, acerca dos inconvenientes e dos perigos da escrita. É este corte entre dois mundos, tão absoluto quanto absurdo, que seria bom conseguirmos evitar.

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                              Piratas ao largo

                              Piratas

                              Em Utopias Piratas, Peter Lamborn Wilson, poeta e ensaísta americano conhecido também como Hakim Bey, toma como figuras centrais determinados esquecidos da História. São os renegados, europeus fugitivos ou inadaptados, convertidos ao Islão por necessidade, que nos séculos XVI e XVII encontraram como porto de refúgio a república de Salé, na costa atlântica marroquina, junto àquela que é hoje a cidade de Rabat. Ali ajudaram a erguer um tipo particular de governo, definido por Wilson como um enclave proto-anarquista, uma micro-sociedade autogovernada por bandidos dos mares, que conseguiu sobreviver à margem das leis e das coroas, permitindo aos seus moradores manter padrões de governação, crenças e estilos de vida que na Europa dos Estados centralizados e da intolerância religiosa e moral jamais lhes seriam tolerados. Daí ter sido transformado em lugar convidativo para alguns salteadores célebres, como o inglês John Ward e o holandês Jan Jaansz (que ali adoptou o nome de Morat Reis), ou para toda uma turbamulta de marinheiros anónimos que confluíam para aquele lugar, ávidos de saques e de uma vida aparentemente fácil e emocionante. Wilson descreve o território de Salé e a sua forma de governo como modelo inicial de um tipo de sociedade que se deslocará depois para a região das Caraíbas e para o Índico, e que pela intervenção posterior da literatura de viagens e do cinema de aventuras integrará rapidamente o imaginário colectivo ocidental. [Peter Lamborn Wilson, Utopias Piratas. Trad. de Miguel Mendonça. Deriva, 180 págs.]

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