O Facebook atira de tempos a tempos com avisos curiosos. Lembra-me, por exemplo, de que não tenho falado «há muito tempo» com uma certa crítica literária checa. Ou de que Jan, meu antigo companheiro de mesa na cantina da Escola Normal de Rožňava, que não é crítico nem literato mas escreve todos os dias, «é novo no Facebook», merecendo por isso um pouco mais da minha atenção. Ou sugere ainda que me «torne amigo» de Anton Bernolák, um tipo com enormes óculos de massa e bigode de aviador que jamais conheci. Estranhos instantes de ternura virtual nesta vida um pouco triste e solitária de imigrante do leste.
O último crime da democrata cubana Yoani Sánchez – que à boa maneira da Revolução Cultural chinesa justificou uma «demonstração de repúdio» e o espancamento e prisão de Reinaldo Escobar, seu marido – foi ter colocado no blogue Generación Y as respostas de Barack Obama a sete perguntas que lhe dirigiu. Raúl Castro, que também recebeu um questionário enviado por Yoani, não respondeu. Encontra no El País um bom resumo dos últimos desenvolvimentos de mais este caso de agressão à liberdade de expressão em Cuba. A fotografia utilizada foi copiada daqui.
Adenda – Nem de propósito, acaba de me entrar em casa Tumbas sin sosiego. Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano, um livro de Rafael Rojas, historiador e ensaísta cubano exilado no México, editado em 2006 pela barcelonesa Anagrama. Hei-de trazê-lo para aqui noutro dia. Até lá recordo «A imensa tristeza».
O advogado Jorge Ferreira acaba de morrer em Lisboa com apenas 48 anos. Nunca o conheci pessoalmente e pouco ou nada tinha a ver com as ideias pelas quais se bateu – foi dirigente da Juventude Centrista, depois líder parlamentar do CDS e fundador do Partido da Nova Democracia, um currículo que normalmente só me afastaria dele –, mas muitas vezes citou ou comentou no seu Tomar Partido, sempre a propósito e com uma elevação rara, alguns dos posts d’A Terceira Noite. Por isso, perdoe-se-me o egoísmo, recebi a notícia com tristeza e um certo sentimento de perda.
A aceleração do tempo ateia o esquecimento. Mesmo sem o desejarmos, acabamos então por dar como perdidos alguns dos rostos que foram ficando para trás, no lado mais frágil da nossa memória. Julgamo-los apagados quando pensamos que tudo aconteceu há tantos anos, com pessoas que acreditávamos serem já tão antigas, que só poderiam mesmo morar agora nesse Império do Nenhures do qual não existe retorno. Foi pois com espanto, e medo de me estar a confrontar com alguma fraqueza do entendimento, que num número recente da revista Manière de voir dedicado à «emancipação na história» dei de caras com os rostos e as vozes de dois homens que faziam as capas dos jornais quando eu ainda me interessava mais pela lenda do Joãozinho e do Feijoeiro Mágico do que pelos caminhos tortuosos da libertação dos povos. Afinal o vietnamita Vo Nguyên Giap, vencedor dos franceses em Dien Bien Phu (1954) e dos americanos na Ofensiva do Tet (1968), nasceu apenas em 1911, permanecendo vivo e aparentemente com opiniões. E Mohamed AhmedBen Bella, principal líder da luta pela independência da Argélia (1954-1962) e o primeiro presidente do país, nasceu só em 1918, continuando com a cabeça a laborar. Vou ter de confirmar se Emiliano Zapata foi mesmo abatido em Chinameca pelos disparos traiçoeiros do general Guajardo.
A Human Rights Watch acaba de afirmar – e prova-o através de um relatório de 123 páginas – que o regime cubano agravou a repressão sobre os dissidentes e apertou a vigilância policial desde que Fidel se retirou da gestão diária do poder e foi substituído pelo irmão Raúl. Um panorama que contraria claramente as expectativas iniciais e que é tanto mais inexplicável quanto a justificação fundamental para a repressão e a «censura revolucionária» – o embargo económico americano associado ao perigo de sabotagem – parecia há poucos meses aproximar-se de uma solução, ou pelo menos de uma viragem, com a nova política da administração Obama. O relatório «Um novo Castro, a mesma Cuba» denuncia ainda uma nova vaga de detenção de opositores ao regime, alguns deles em condições horríveis e alvo de tortura. Claro que os responsáveis cubanos e os indefectíveis amigos da ditadura castrista voltarão a acusar a Human Rights Watch – como o têm feito também, por exemplo, com a Amnistia Internacional – de constituir um «grupo mercenário pró-americano». Mas não provam que as alegações da HRW são falsas. Tudo na mesma, portanto. Isto é, pior.
Nem sempre concordei com algumas das metas, e sobretudo com muitos dos processos, que dominaram a luta estudantil desde os meados dos anos noventa, após o arranque aparatoso do movimento antipropinas em 1992-1994. Por essa altura, uma parte significativa dos dirigentes associativos empenhou-se numa fuga para a frente, subordinando os seus cadernos reivindicativos à exposição mediática, como se por si só esta legitimasse o seu esforço. Concentrados nos três minutos de fama dos telejornais, eles foram-se progressivamente concentrando numa lógica corporativa, esquecendo a grande maioria de estudantes que não se reviam no «aparelhismo» associativo, e outros sectores universitários, como os professores, geralmente encarados mais como «inimigos de classe» do que como possíveis aliados.
Observámos então actividades e «jornadas de luta» verdadeiramente patéticas, com escassas dezenas de estudantes encabeçados pelos seus «dirigentes» – sistematicamente rodeados dos microfones das rádios e das câmaras das televisões – a fecharem faculdades a cadeado, contra a completa indiferença, e até a animosidade, da larga maioria dos seus colegas, dos professores, dos funcionários e da opinião pública. Estive na época em reuniões horríveis, nas quais, com muitos outros professores abertos ao diálogo e sensíveis a grande parte das preocupações estudantis, fui tratado como um perigoso adversário, jamais como eventual aliado. Vi ao mesmo tempo como a grande maioria dos alunos, incluindo muitos dos mais participativos, observava com o maior desdém a atitude dos que diziam falar em seu nome. O resultado era já previsível e em breve seria confirmado: o recuo e a desmobilização da prática reivindicativa, a reacção defensiva das instituições universitárias, o desinteresse gradual dos cidadãos comuns e dos próprios média, condenando a luta estudantil ao apagamento.
Vejo pois com interesse e expectativa a vaga de luta estudantil que parece reemergir do silêncio. Preocupada agora, pelo menos aparentemente, com causas que transcendem a dimensão estritamente casuística e corporativa e comportam um impacto social mais geral, como sejam a crítica do sub-financiamento das universidades e a progressiva exclusão dos alunos com menos recursos materiais. De facto, apenas as preocupações e as palavras de ordem que têm em conta os problemas colectivos podem retirar a luta estudantil do gueto para o qual se deixou empurrar, devolvendo-lhe o estatuto de movimento social forte e respeitado. Os estudantes em luta, nas escolas ou na rua, sempre foram um sinal de futuro, de ousadia, de esperança. Mesmo quando as suas razões e modus operandi pareceram, ou foram, discutíveis. Em momentos como o actual, quando a maioria das nossas instituições universitárias se preocupa sobretudo com a sua própria sobrevivência e os governos se habituaram a impor políticas economicistas sem grande resistência das autoridades académicas, a sua iniciativa é crucial. Olhemos então, de novo, para eles.
Da malha urbana destacam-se as vias, os espaços de passagem, e não tanto os edifícios, que fixam e constrangem. Estes são apenas abrigos, indispensáveis a todos os nómadas, dos quais será sempre possível escapar. Áreas inteiras feitas de corredores e de passagens, de luz e de sombras, de silêncios colossais entrecruzados de estrépitos, como nos jogos de computador. De arquitecturas em camadas num tempo suspenso, que impelem ao movimento como nas obscuras cidades de Schuiten e Peeters. Ruas labirínticas e entrecruzadas, vastas praças-circulares, avenidas infinitas que sobem até às nuvens, mergulhando depois em vales sombrios e pacíficos, rios e canais que são sobretudo linhas de vaivém. Bairros por explorar, sem mapas compreensíveis, com placas toponímicas indecifráveis, pontes enigmáticas, escadas vertiginosas que conduzem a precipícios, desvãos absolutamente inúteis e enganadores. Onde é mais fácil perder-se que encontrar.
[Publicado em Janeiro de 2006 no desaparecido blogue A Estrada]
Pode estar mesmo ali, a dois passos da berma. Na vastidão nocturna da estação erma e suburbana. Por detrás dos rostos cerrados, olhos vítreos, língua escondida, maxilares tensos, que passam por nós, sonâmbulos, logo pela manhã.
Durante muito tempo o El País resistiu a dar o mínimo passo que pudesse aproximar o jornal do nível ético dos tablóides. Mas a crise da imprensa em papel forçou o diário madrileno a rever esse princípio orientador, criando-se assim as condições para que a poesia do quotidiano passasse a ter lugar nas suas páginas de anúncios classificados.
A canção My Funny Valentine, de Rodgers e Hart, estreada no filme musical Babes in Arms, de 1937, transformou-se num standard do qual existem agora mais de 1.300 versões. Gosto muito de pelo menos 100 das centenas que conheço. Três delas, em crescendo dramático, neste final de tarde.
Tal como tem acontecido com a tentativa de reexame do Holocausto, decorrem processos de revisionismo histórico da experiência do Gulag que tendem a reduzir o seu papel na edificação da sociedade soviética ou a requalificá-la como opção politicamente válida. Emergem em parte da historiografia e do actual sistema educativo do Estado russo, determinados a justificar perante as novas gerações o uso da violência na construção de uma política centralista e imperial «eficaz». Em The Future of Nostalgia, Svetlana Boym fala de incentivos a uma «megalomania da imaginação» que na Rússia actual se tem servido das dificuldades diárias vividas pelas pessoas comuns para estimular uma revisão heróica e gratificante do passado. Mas estas releituras provêem também dos sectores políticos, próximos ainda da matriz leninista, que conservam uma atracção reverente pelo antigo «país do futuro radioso». Há cerca de uma década, o debate público em torno do controverso Livro Negro do Comunismo terá contribuído para estimular esta via branqueadora e justificativa da violência de Estado.
Entre nós, muito mais relevantes do que o caso recente da jovem deputada do PCP que declarou não ter ideias sobre o assunto, ou das afirmações de militantes que dizem ou escrevem aquilo que o instinto gregário e a ignorância determinam, são as declarações de pessoas com reais responsabilidades políticas que se esforçam por limpar da memória ou por desculpabilizar os horrores praticados no sistema concentracionário do «socialismo real». O texto de opinião de António Vilarigues que saiu no Público de 30 de Outubro serve de indicador. Ele contesta os números excessivos apresentados por muitos historiadores para contabilizarem as vítimas do Gulag, o que merece alguma atenção. Mas toca o inaceitável quando se permite comparar o número das pessoas «reprimidas» na antiga União Soviética (as significativas aspas são da sua responsabilidade) com o volume de detidos de delito comum actualmente nas prisões americanas, comparando aquilo que não pode ser comparado e criminalizando quem foi deportado e perseguido apenas por motivos políticos ou étnicos.
Não tenho prazer algum em escrever tantos posts em tão pouco tempo sobre as leituras do Gulag e o trambolhão dos «países socialistas» em 1989. São temas que me interessam desde há muito tempo enquanto cidadão e homem de esquerda, mas também como historiador profissional e professor de história contemporânea. Momentos há, todavia, em que me apetece falar antes de outros assuntos, porventura mais agradáveis e seguramente menos pesados. Só que as Brigadas Brejnev desafiam, põem-se a jeito, e não é possível deixar sem resposta as acusações de «revisionismo» lançadas pelos seus milicianos sobre todos aqueles que não partilham da versão oficial da ortodoxia radical «comunista» a propósito do fim da União Soviética e que procuram compreender a natureza imobilista, agressiva e repressiva dos regimes que esta tutelava. Já não se trata sequer de contrapor factos e argumentos, mas sim deparar com o puro logro, e, no plano político, de nos confrontarmos com uma manipulação assumida ou a mais patética ignorância. Com esta gente, responsável doméstica por uma das mais trôpegas facetas actuais do revisionismo histórico, a acusar os outros precisamente da doença em fase terminal da qual enferma. É preciso ter lata. Ou viver num mundo paralelo. [vejam-se a propósito este post de Joana Lopes e este de João Tunes, assim como os links para os quais remetem]
Soube em segunda mão, por uma entrevista a Elie Wiesel, que Mauriac afirmou algures constituir a literatura uma ponte entre a infância e a morte. Não sei se se pode dizer isto assim, como um absoluto, mas gosto da ideia porque ela aproxima a leitura e a escrita da vida em estado puro. E reduz a pouco o valor que esta possa ter quando passa sem elas.
A Câmara de Mantes-la-Jolie, nos arredores de Paris, considera que pendurar roupa à janela é «poluição estética» e deve ser proibido. A multa aplicada aos prevaricadores é de 38 euros. Parece que são mesmo alguns dos moradores de classe média da arrumada e linda Mantes que se encarregam de denunciar os seus vizinhos, chegando a remeter fotografias das farpelas delinquentes para as autoridades. O «higienismo paisagista» deixado à solta conduz a alarvidades desta natureza. Esperemos que a Junta de Freguesia de Alfama não se ponha com ideias e deixe as cuecas e os sutiãs do povo na paz das manhãs solarengas.
Aproveitando a boleia dos 20 anos sobre a Queda do Muro, circula por alguns blogues e sítios de esquerda um debate sobre o que é ou como pode ser-se (ainda ou necessariamente) comunista hoje. Falo de textos substantivos, de autorias diversas, e não obviamente das boutades das caixas de comentários, nas quais geralmente (embora nem sempre, admito) se pensa mais com as pontas dos dedos, o instinto gregário e a intervenção das feromonas do que com a cabeça. As posições são descoincidentes e invocam argumentos nos quais a objectividade das análises é sempre temperada pelo impulso – que não descarto, antes pelo contrário – de um certo padrão de wishful thinking. Pois de que outra forma poderia ser? Como pensar a utopia, é dela que se trata, de outro modo que não seja com a intervenção da flama, do desejo e da capacidade para projectar a possibilidade do improvável ? Da minha parte, mais defensivamente, limitei-me num texto anterior a lembrar que o comunismo de hoje e do futuro não se constrói com cartilhas e contra quem não pensa exactissimamente como nós. Para isso temos os comunistas 1.0, imperturbáveis honeckers que se mantêm fora destes debates porque vivem cheios de certezas, zangados contra quem as não tem, de pedras nos bolsos e os olhos ofuscados pelo brilho do retrovisor.
Diversos movimentos cívicos católicos querem um referendo sobre o casamento homossexual. Aceitá-lo seria como ter deixado referendar a pena de morte, a instauração da República, o 25 de Abril, a independência das ex-colónias ou a igualdade política e jurídica das mulheres. O resultado estaria viciado à partida por concepções atávicas e mecanismos de controlo das consciências postos em acção pelos sectores mais conservadores da sociedade. Nestas alturas há que reconhecer alguma razão às palavras de Afonso Costa quando apontava os «indivíduos que não conhecem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma» como carneiros contra os quais o progresso das ideias – «a República» dizia ele – se deve inevitavelmente levantar. A democracia não se referenda, mes amis, e não é, nem pode ser, a vozearia ululante das multidões. É para o impedir que há eleições, sabiam?
Admito que possa ser um sujeito um pouco sensível – e certas vezes irascível, já agora – mas escutar Nicolas Sarkozy a perorar com um ar grave sobre a liberdade dos povos e o derrube dos muros que os separam junto à Porta de Brandeburgo é coisa que me provoca urticária. Aliás a Porta de Brandeburgo, com a sua quadriga rebocando a deusa da Vitória, é já de si um cenário que incomoda um pouco. Transporta consigo maus presságios. Deviam implodi-la de uma vez por todas e fazer ali uma coisa catita. Um Luna Parque ou assim.