A música do século

Musica do Século 20

Claude Debussy referiu-se certa vez ao território da música como «país imaginário, ou seja, um país que não se encontra no mapa». Em O Resto é Ruído, Alex Ross, crítico musical da New Yorker, procura retirá-lo dessa dimensão aparentemente imaterial, integrando-o nos processos de leitura da contemporaneidade e de compreensão das suas raízes mais próximas. Ensaia então um esforço de entendimento da história da música ocidental no século XX, procurando, através dela, aperfeiçoar o conhecimento dos seus momentos nucleares na ligação com a actividade de alguns dos compositores mais criativos e singulares. De Gustav Mahler e Richard Strauss a John Adams e Philip Glass, uma linhagem de grandes criadores musicais vai cruzando estas páginas absorventes, mostrando recorrentemente que a vida e a obra dos intérpretes da música dita «clássica», ou «erudita» – e ao contrário daquilo que mais recentemente tende a considerar um certo gosto padronizado, marcado pela influência da cultura popular nascida no pós-Segunda Grande Guerra –, foi tudo menos construída, e experimentada, dentro de um universo soturno, entaipado, sem contacto com um público genuinamente interessado e com as grandes questões do tempo.

O livro integra uma componente didáctica, seguindo por isso uma cronologia de certa forma linear. A primeira parte ocupa-se do período de 1900-1933, abordando a cultura musical modernista, herdeira do romantismo mas ao mesmo tempo em clara ruptura com ele, com ênfase na afirmação da atonalidade, depois na descoberta da composição dodecafónica, e na valorização do conceito de popular. A segunda, interessada nos anos de 1933-1945, trata a relação entre política para as artes musicais, o nazismo e o estalinismo, mas também a emergência de uma música americana pujante e assumidamente concorrente da tradição europeia. A última parte, balizada pelas datas de 1945-2000, ocupa-se do impacto na música da Guerra Fria, da explosão cultural dos anos 50-60, do minimalismo, do jazz e das influências caleidoscópicas de uma música popular e moderna que recusa a vulgaridade. Atravessando todo aquele tempo, figuras tutelares mas inevitavelmente complexas – como Strauss, Schoenberg, Mahler, Stravinsky, Chostakovich ou Boulez, cuja originalidade, influência e capacidade para se adaptarem à mudança e se repensarem são aqui constantemente invocadas –, ajudam a expor os caminhos possíveis e as contradições constantemente em presença. Se o objectivo proposto para este livro era, como declara inicialmente Ross, apresentar um século XX «ouvido através da sua música», mas também propor uma cartografia para esse «obscuro pandemónio que habita as periferias da cultura», pode dizer-se que ele foi duplamente conseguido. Porque nesta obra de síntese o ruído passa para segundo plano e a música emerge enquanto protagonista da vida e da mudança.

Alex Ross, O Resto é Ruído. À Escuta do Século XX. Tradução de Mário César d’Abreu. Casa das Letras, 576 págs. [Publicado na LER de Novembro]

    História, Música

    A cicatriz

    No Verão de 66 os meus interesses na vida eram ainda as séries Thunderbirds e Bonanza, os romances de Walter Scott e de Emilio Salgari, e o futebol. Passei por isso grande parte de um Julho particularmente quente agarrado à televisão, aos jogos do Mundial e aos pontapés gloriosos de Eusébio e companhia. O jogo dos jogos, mais importante do que os das vitórias suadas sobre brasileiros e húngaros, foi para mim o Portugal-Coreia do Norte. Com o resultado já num humilhante 0-3, os «magriços» – assim chamados por se supor retomarem os feitos de Álvaro Gonçalves Coutinho, o penedonense, valente embora fraco de carnes, que foi um dos lendários Doze de Inglaterra evocados por Camões e Garrett – deram a volta ao jogo e passaram-no para 5-3, numa recuperação fantástica liderada pelo preto mais branco do país. O jogo doou-me uma marca incisa e profunda, pois ao quarto golo nacional, obtido de penálti, dei um salto tão grande que bati com a mão direita num candeeiro e deixei um centímetro cúbico de carne a pingar sangue entre ferragens e pendentes. Conservo do episódio a cicatriz que me recorda todos os dias a vibração (e a dor forte, claro) daquele momento. E revi-o quando soube hoje que na campanha sul-africana de 2010 nos calhou de novo a Coreia do Norte. O desafio que aguardo com maior expectativa e um certo desejo de vingança será pois aquele que disputaremos contra os vassalos do «querido líder» Kim Jong-Il. Embora saiba que a paixão do instante jamais será a mesma.

    [dailymotion]http://www.dailymotion.com/video/x26cxd_portugal5-coreia-do-norte3-de-1966_sport[/dailymotion]
      Apontamentos, Etc., Memória

      O combate pela dignidade na memória do Gulag

      Artigo publicado na revista LER de Novembro de 2009

      «Uma simples folha de papel de escrever / Parecia um milagre
      / Caindo do céu sobre a floresta negra» (V. Shalamov)

      O escritor ucraniano Georgi Vladimov (1931-2003) redigiu The Faithful Ruslan (New York, 1979), O Fiel Ruslam, na época do Degelo, quando Kruschev suavizou um pouco o peso da censura. Mas duas décadas depois o pequeno romance-alegoria ainda só circulava no estreito circuito samizdat. O narrador é um cão que cumprira com sinistra devoção o seu trabalho de guarda num campo de trabalho. Fechado o campo, os seus donos humanos partiram para uma nova vida, mas Ruslan encontrou uma última missão: numa atitude de fidelidade para com o mundo que servira, passou a seguir por todo o lado um antigo prisioneiro. No final juntar-se-á a uma matilha para despedaçá-lo, tal como a um grupo de operários da fábrica que sucedera aos antigos pavilhões carcerários, num festim de morte e zelo iniciado quando lhe pareceu que estes violavam as rígidas regras que fora treinado para fazer cumprir. Boa parte da memória escrita dos sobreviventes dos campos de concentração recupera sempre esta dimensão de irreversibilidade do passado: aqueles que os habitaram na condição de prisioneiros, e viveram para contar a experiência, jamais abandonaram de todo as rotinas e os condicionamentos impostos por anos de uma vida sem lugar para a transgressão ou para a esperança.

      Quando entramos nos relatos daqueles que conseguiram sobreviver aos Lagern nazis e ao Gulag percebe-se, porém, que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos grandes campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem (Lisboa, 1988), Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

      ler mais deste artigo

        Democracia, História, Memória

        Ressentimento

        Ghetto

        Marc Ferro procura aqui uma explicação comum para situações de violência muito diferentes. Como os conflitos étnicos e religiosos, as revoluções, as lutas civis, as guerras nacionais e de libertação, o fascismo ou o racismo. Encontra-a no ressentimento, definido como um conjunto de ódios associados a sentimentos de injustiça, de raiva, de desprezo ou de vingança, muitas vezes conservados durante séculos, capazes de gerarem uma pulsão psicológica ou exigências de reparação determinantes para a eclosão da violência. Quem se sente vítima «rumina então a sua vingança», até que «acaba por explodir». Estes ódios podem radicar-se numa experiência histórica geradora de sentimentos revanchistas, mas vincula-se também a uma memória nacional, «viveiro de ressentimentos», que permite justificar a rivalidade centenária, materializada por vezes em conflitos entre Estados, e impossibilita o entendimento, instalando a suspeição e o rancor. Projectada nesta dimensão, a aversão dos povos colonizados contra os seus colonizadores e contra os vestígios que estes deixaram atinge uma intensidade particular, transformada em imperativo de luta. Ao longo de um trajecto ancorado em sucessivos exemplos, Ferro enumera tipos e casos de ressentimento indispensáveis para compreendermos conflitos deste nosso tempo. E também de todos os tempos. [Marc Ferro, O Ressentimento na História. Compreender o nosso tempo. Trad. de Telma Costa. Teorema, 220 págs.]

          Democracia, História

          Moravia passeia-se por Leiria, a idólatra

          Moravia e Pasolini
          Alberto Moravia com Pier Paolo Pasolini

          A esquisitice de pôr as mãos em tudo o que seja papel levou-me hoje a folhear A Voz de Domingo, o «semanário diocesano» de Leiria. As páginas deste pasquim pingam beatice, mau gosto e obscurantismo em estado bruto. Nada de novo para quem conheça um pouco da imprensa católica ultramontana que teima em sobreviver. Fixei principalmente dois artigos. O primeiro foi a «Carta do Canadá» assinada por uma Dona Fernanda Leitão e que não passa de uma inflamada declaração de ódio – acompanhada de uma maldição condescendente e nada católica: «é deixá-lo andar» – dirigida a José Saramago e às suas «vociferações contra Deus». No segundo artigo reparei, pela cómica ignorância que testemunha, numa lista de «livros novos» recomendados. Aí se anexa, a títulos desanimadores como Gota d’Água, Dez Passos no Caminho dos Valores, Teatro nos Colégios dos Jesuítas e os dois volumes de Sacerdos, nada mais nada menos que Os Indiferentes, de Alberto Moravia. Editado em 1929 e considerado por vezes um romance existencialista avant la lettre que terá antecipado O Estrangeiro, de Camus, o livro de estreia de Moravia – que até chegou a ser compagnon de route dos comunistas – centra-se em alguns dos temas que cruzarão boa parte da sua obra posterior. Como o tédio da existência, a impossibilidade de uma verdadeira comunicação entre as pessoas, a alienação social ou a obsessão do sexo. Nada mau para estimular a cabecinha dos fiéis e das fiéis leirienses.

            Apontamentos, Olhares

            É mesmo disto que o povo precisa

            Cuba libre

            «Raúl Castro lança o maior exercício militar dos últimos cinco anos, envolvendo cem mil soldados e quatro milhões de milícias populares, como treino para uma resposta a uma hipotética agressão norte-americana.

            O Presidente cubano, Raúl Castro, mobilizou cem mil soldados e reservistas no maior exercício militar dos últimos cinco anos em Cuba. Às manobras, iniciadas há três dias, juntar-se-ão amanhã cerca de quatro milhões de cubanos, organizados em milícias populares desde a implantação do actual regime comunista, em 1959. (…)

            As manobras, sob o título genérico ‘Bastião 2009’, visam responder a uma hipotética invasão norte-americana apesar de o actual inquilino da Casa Branca, Barack Obama, ter assegurado mais de uma vez que não tem qualquer intenção de usar a poderosa força militar de Washington contra a ilha.»

            aqui

              Atualidade, Recortes

              Azares da morte

              Pacheco

              Era de esperar. Luiz Pacheco foi-se embora e logo tombaram as evocações dos que gostavam realmente de o ler e se sentiam cúmplices, ou mesmo um pouco invejosos, de todo aquele desalinho. Mas começaram também a chover os panegíricos de quem rapidamente tratou de fazê-lo passar à condição de «excelente pessoa». Só que não o era, não: como se sabe, o Pacheco foi toda a vida uma peste, um tipo intratável, pouco fiável, machista e ainda por cima um grande crava, embora isso em nada lhe tenha diminuído o talento e espatifado a valia do que foi escrevendo ou editando. Foi também «homem de coragem», é verdade, mas com a mais linear das coragens, que é a de quem pouco ou nada tem a perder com as consequências dos seus actos. De qualquer maneira, agora que ele já não chateia com um aparte de gozo ou um gesto inconveniente, ainda bem que existe quem trate de recordá-lo. E antes ligeiramente tarde do que nunca. O que já faz uma certa impressão é que se lhe tenham leiloado tão depressa a papelada e os pertences por uma pipa de massa. Se existir céu ou inferno – como nunca foi gajo de meias-tintas, pelo menos num deles terá um quartinho alugado – quando lhe deram a notícia provavelmente murmurou qualquer coisa sobre «o jeito que me tinha feito lá em baixo todo esse carcanhol». Azares da morte, ó Luiz.

                Etc.

                Código de conduta

                Crime e castigo

                Já tinha reparado na notícia do 24 horas sobre o código de conduta preparado pelo director da informação da RTP para regulamentar a utilização individual dos blogues e das redes sociais da Internet pelos jornalistas da estação. Sinceramente, pensei que se trataria apenas de mais uma daquelas invenções, especulações ou não-notícias que habitualmente preenchem a primeira página do diário sensacionalista. Mas um post de Pedro Correia mostrou que eu estava enganado: José Alberto Carvalho pretende mesmo que, na vida privada de cada um, os jornalistas que dirige em regime de ordem unida deixem de ter opinião pessoal audível e zelem por uma imagem pública que deve adequar-se, sem mácula ou divergência, sem humor ou poesia, à da empresa na qual trabalham. Copio directamente do Delito de Opinião:

                – «Nada do que fazemos no Twitter, Facebook ou Blogues (seja em posts originais ou em comentários a post de outrem) deve colocar em causa a imparcialidade que nos é devida e reconhecida enquanto jornalistas.»

                – «(…) Deverão deixar em branco a secção de perfil de Facebook ou outros equivalentes, sobre as preferências políticas dos utilizadores.»

                – «Ter particular atenção aos ‘amigos’ friends do Facebook e ponderar que também através deste dado, se pode inferir sobre a imparcialidade ou não de um jornalista sobre determinadas áreas.»

                – «Meditar sobre o facto de 140 caracteres de um twit poderem ser entendidos de forma mais deficiente (e geralmente é isso que acontece!) do que um texto de várias páginas, o que dificulta a exacta explicação daquilo que cada um pretende verdadeiramente dizer.»

                Se isto for tomado à letra e aplicado abrirá um perigoso precedente, e em breve outros diligentes funcionários superiores convertidos em manajeiros decidirão aquilo que um funcionário público, um polícia, um bancário, um professor, um padre, um médico, um juiz, um militar, um fiscal da ASAE, um futebolista da selecção ou qualquer outro profissional com «dever de imparcialidade», convertido à força em cidadão irresponsável e sem direito a pensar pela sua cabeça, deve ou não dizer de cada vez que, a cada manhã, abandone os lençóis, saia à rua – ou ligue o computador – e abra a boca para falar com alguém que não seja da família.

                  Atualidade, Democracia

                  Ternura virtual

                  tenderly

                  O Facebook atira de tempos a tempos com avisos curiosos. Lembra-me, por exemplo, de que não tenho falado «há muito tempo» com uma certa crítica literária checa. Ou de que Jan, meu antigo companheiro de mesa na cantina da Escola Normal de Rožňava, que não é crítico nem literato mas escreve todos os dias, «é novo no Facebook», merecendo por isso um pouco mais da minha atenção. Ou sugere ainda que me «torne amigo» de Anton Bernolák, um tipo com enormes óculos de massa e bigode de aviador que jamais conheci. Estranhos instantes de ternura virtual nesta vida um pouco triste e solitária de imigrante do leste.

                  Iuri Bradáček

                    Apontamentos

                    Desde Cuba

                    Reinaldo Escobar

                    O último crime da democrata cubana Yoani Sánchez – que à boa maneira da Revolução Cultural chinesa justificou uma «demonstração de repúdio» e o espancamento e prisão de Reinaldo Escobar, seu marido – foi ter colocado no blogue Generación Y as respostas de Barack Obama a sete perguntas que lhe dirigiu. Raúl Castro, que também recebeu um questionário enviado por Yoani, não respondeu. Encontra no El País um bom resumo dos últimos desenvolvimentos de mais este caso de agressão à liberdade de expressão em Cuba. A fotografia utilizada foi copiada daqui.

                    Adenda – Nem de propósito, acaba de me entrar em casa Tumbas sin sosiego. Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano, um livro de Rafael Rojas, historiador e ensaísta cubano exilado no México, editado em 2006 pela barcelonesa Anagrama. Hei-de trazê-lo para aqui noutro dia. Até lá recordo «A imensa tristeza».

                      Atualidade, Democracia

                      Sem explicação

                      O advogado Jorge Ferreira acaba de morrer em Lisboa com apenas 48 anos. Nunca o conheci pessoalmente e pouco ou nada tinha a ver com as ideias pelas quais se bateu – foi dirigente da Juventude Centrista, depois líder parlamentar do CDS e fundador do Partido da Nova Democracia, um currículo que normalmente só me afastaria dele –, mas muitas vezes citou ou comentou no seu Tomar Partido, sempre a propósito e com uma elevação rara, alguns dos posts d’A Terceira Noite. Por isso, perdoe-se-me o egoísmo, recebi a notícia com tristeza e um certo sentimento de perda.

                        Apontamentos

                        Falsas partidas

                        O tempo passa passa

                        A aceleração do tempo ateia o esquecimento. Mesmo sem o desejarmos, acabamos então por dar como perdidos alguns dos rostos que foram ficando para trás, no lado mais frágil da nossa memória. Julgamo-los apagados quando pensamos que tudo aconteceu há tantos anos, com pessoas que acreditávamos serem já tão antigas, que só poderiam mesmo morar agora nesse Império do Nenhures do qual não existe retorno. Foi pois com espanto, e medo de me estar a confrontar com alguma fraqueza do entendimento, que num número recente da revista Manière de voir dedicado à «emancipação na história» dei de caras com os rostos e as vozes de dois homens que faziam as capas dos jornais quando eu ainda me interessava mais pela lenda do Joãozinho e do Feijoeiro Mágico do que pelos caminhos tortuosos da libertação dos povos. Afinal o vietnamita Vo Nguyên Giap, vencedor dos franceses em Dien Bien Phu (1954) e dos americanos na Ofensiva do Tet (1968), nasceu apenas em 1911, permanecendo vivo e aparentemente com opiniões. E Mohamed Ahmed Ben Bella, principal líder da luta pela independência da Argélia (1954-1962) e o primeiro presidente do país, nasceu só em 1918, continuando com a cabeça a laborar. Vou ter de confirmar se Emiliano Zapata foi mesmo abatido em Chinameca pelos disparos traiçoeiros do general Guajardo.

                          Apontamentos, Devaneios, História, Memória

                          De mal a pior

                          Cuba assim, não

                          A Human Rights Watch acaba de afirmar – e prova-o através de um relatório de 123 páginas – que o regime cubano agravou a repressão sobre os dissidentes e apertou a vigilância policial desde que Fidel se retirou da gestão diária do poder e foi substituído pelo irmão Raúl. Um panorama que contraria claramente as expectativas iniciais e que é tanto mais inexplicável quanto a justificação fundamental para a repressão e a «censura revolucionária» – o embargo económico americano associado ao perigo de sabotagem – parecia há poucos meses aproximar-se de uma solução, ou pelo menos de uma viragem, com a nova política da administração Obama. O relatório «Um novo Castro, a mesma Cuba» denuncia ainda uma nova vaga de detenção de opositores ao regime, alguns deles em condições horríveis e alvo de tortura. Claro que os responsáveis cubanos e os indefectíveis amigos da ditadura castrista voltarão a acusar a Human Rights Watch – como o têm feito também, por exemplo, com a Amnistia Internacional – de constituir um «grupo mercenário pró-americano». Mas não provam que as alegações da HRW são falsas. Tudo na mesma, portanto. Isto é, pior.

                            Atualidade, Opinião

                            Olhemos para eles

                            walking

                            Nem sempre concordei com algumas das metas, e sobretudo com muitos dos processos, que dominaram a luta estudantil desde os meados dos anos noventa, após o arranque aparatoso do movimento antipropinas em 1992-1994. Por essa altura, uma parte significativa dos dirigentes associativos empenhou-se numa fuga para a frente, subordinando os seus cadernos reivindicativos à exposição mediática, como se por si só esta legitimasse o seu esforço. Concentrados nos três minutos de fama dos telejornais, eles foram-se progressivamente concentrando numa lógica corporativa, esquecendo a grande maioria de estudantes que não se reviam no «aparelhismo» associativo, e outros sectores universitários, como os professores, geralmente encarados mais como «inimigos de classe» do que como possíveis aliados.

                            Observámos então actividades e «jornadas de luta» verdadeiramente patéticas, com escassas dezenas de estudantes encabeçados pelos seus «dirigentes» – sistematicamente rodeados dos microfones das rádios e das câmaras das televisões – a fecharem faculdades a cadeado, contra a completa indiferença, e até a animosidade, da larga maioria dos seus colegas, dos professores, dos funcionários e da opinião pública. Estive na época em reuniões horríveis, nas quais,  com muitos outros professores abertos ao diálogo e sensíveis a grande parte das preocupações estudantis, fui tratado como um perigoso adversário, jamais como eventual aliado. Vi ao mesmo tempo como a grande maioria dos alunos, incluindo muitos dos mais participativos, observava com o maior desdém a atitude dos que diziam falar em seu nome. O resultado era já previsível e em breve seria confirmado: o recuo e a desmobilização da prática reivindicativa, a reacção defensiva das instituições universitárias, o desinteresse gradual dos cidadãos comuns e dos próprios média, condenando a luta estudantil ao apagamento.

                            Vejo pois com interesse e expectativa a vaga de luta estudantil que parece reemergir do silêncio. Preocupada agora, pelo menos aparentemente, com causas que transcendem a dimensão estritamente casuística e corporativa e comportam um impacto social mais geral, como sejam a crítica do sub-financiamento das universidades e a progressiva exclusão dos alunos com menos recursos materiais. De facto, apenas as preocupações e as palavras de ordem que têm em conta os problemas colectivos podem retirar a luta estudantil do gueto para o qual se deixou empurrar, devolvendo-lhe o estatuto de movimento social forte e respeitado. Os estudantes em luta, nas escolas ou na rua, sempre foram um sinal de futuro, de ousadia, de esperança. Mesmo quando as suas razões e modus operandi pareceram, ou foram, discutíveis. Em momentos como o actual, quando a maioria das nossas instituições universitárias se preocupa sobretudo com a sua própria sobrevivência e os governos se habituaram a impor políticas economicistas sem grande resistência das autoridades académicas, a sua iniciativa é crucial. Olhemos então, de novo, para eles.

                            [Dois posts  de leitura recomendada: um de Hugo Dias e outro de Sandra Monteiro]

                              Atualidade, Ensino, Opinião

                              Cidade ideal

                              Da malha urbana destacam-se as vias, os espaços de passagem, e não tanto os edifícios, que fixam e constrangem. Estes são apenas abrigos, indispensáveis a todos os nómadas, dos quais será sempre possível escapar. Áreas inteiras feitas de corredores e de passagens, de luz e de sombras, de silêncios colossais entrecruzados de estrépitos, como nos jogos de computador. De arquitecturas em camadas num tempo suspenso, que impelem ao movimento como nas obscuras cidades de Schuiten e Peeters. Ruas labirínticas e entrecruzadas, vastas praças-circulares, avenidas infinitas que sobem até às nuvens, mergulhando depois em vales sombrios e pacíficos, rios e canais que são sobretudo linhas de vaivém. Bairros por explorar, sem mapas compreensíveis, com placas toponímicas indecifráveis, pontes enigmáticas, escadas vertiginosas que conduzem a precipícios, desvãos absolutamente inúteis e enganadores. Onde é mais fácil perder-se que encontrar.

                              [Publicado em Janeiro de 2006 no desaparecido blogue A Estrada]

                                Devaneios, Olhares

                                Segredo

                                Pode estar mesmo ali, a dois passos da berma. Na vastidão nocturna da estação erma e suburbana. Por detrás dos rostos cerrados, olhos vítreos, língua escondida, maxilares tensos, que passam por nós, sonâmbulos, logo pela manhã.

                                Iuri Bradáček

                                  Etc., Olhares

                                  Ponérselos

                                  Ponérselos

                                  Durante muito tempo o El País resistiu a dar o mínimo passo que pudesse aproximar o jornal do nível ético dos tablóides. Mas a crise da imprensa em papel forçou o diário madrileno a rever esse princípio orientador, criando-se assim as condições para que a poesia do quotidiano passasse a ter lugar nas suas páginas de anúncios classificados.

                                    Apontamentos, Olhares

                                    ♪ Melodia de sempre.9

                                    A canção My Funny Valentine, de Rodgers e Hart, estreada no filme musical Babes in Arms, de 1937, transformou-se num standard do qual existem agora mais de 1.300 versões. Gosto muito de pelo menos 100 das centenas que conheço. Três delas, em crescendo dramático, neste final de tarde.

                                    [dailymotion]http://www.dailymotion.com/video/x4tatz_my-funny-valentine_music[/dailymotion]
                                    Frank Sinatra
                                    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=UOEIQKczRPY[/youtube]
                                    Chet Baker
                                    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=l-phggJG2sM[/youtube]
                                    Keith Jarrett Trio

                                      Música