O combate pela dignidade na memória do Gulag

Artigo publicado na revista LER de Novembro de 2009

«Uma simples folha de papel de escrever / Parecia um milagre
/ Caindo do céu sobre a floresta negra» (V. Shalamov)

O escritor ucraniano Georgi Vladimov (1931-2003) redigiu The Faithful Ruslan (New York, 1979), O Fiel Ruslam, na época do Degelo, quando Kruschev suavizou um pouco o peso da censura. Mas duas décadas depois o pequeno romance-alegoria ainda só circulava no estreito circuito samizdat. O narrador é um cão que cumprira com sinistra devoção o seu trabalho de guarda num campo de trabalho. Fechado o campo, os seus donos humanos partiram para uma nova vida, mas Ruslan encontrou uma última missão: numa atitude de fidelidade para com o mundo que servira, passou a seguir por todo o lado um antigo prisioneiro. No final juntar-se-á a uma matilha para despedaçá-lo, tal como a um grupo de operários da fábrica que sucedera aos antigos pavilhões carcerários, num festim de morte e zelo iniciado quando lhe pareceu que estes violavam as rígidas regras que fora treinado para fazer cumprir. Boa parte da memória escrita dos sobreviventes dos campos de concentração recupera sempre esta dimensão de irreversibilidade do passado: aqueles que os habitaram na condição de prisioneiros, e viveram para contar a experiência, jamais abandonaram de todo as rotinas e os condicionamentos impostos por anos de uma vida sem lugar para a transgressão ou para a esperança.

Quando entramos nos relatos daqueles que conseguiram sobreviver aos Lagern nazis e ao Gulag percebe-se, porém, que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos grandes campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem (Lisboa, 1988), Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

Já com as vítimas da Administração Geral dos Campos de Trabalho Correctivo, projectada logo na época do Terror Vermelho pelo poder bolchevique – em Gulag. Uma história (Porto, 2004), Anne Applebaum relembra que o primeiro estabelecimento foi aberto logo em 1918 –, não era necessariamente a origem étnica ou a condição social a determinar a pena e o encarceramento. Detidas e deslocadas pelos mais diversos motivos, eram genericamente classificadas como representantes do «inimigo de classe», sobreviventes incómodos de um tempo a ultrapassar, obstáculos vivos que apenas embaraçavam a caminhada triunfal do homem novo e deveriam ser banidos da sociedade. Por isso, a desumanização e a demonização do prisioneiro, sendo reais, foram em regra circunscritas ao seu lugar de alvo a ferir no combate por uma necessidade histórica que a ditadura do proletariado pretendia forçar. Nestas condições, o essencial do esforço carcerário era aplicado na erradicação dessas pessoas do convívio social normal, ou, em certos casos, na sua «reeducação» pela disciplina e pelo trabalho. Não na mecanização do extermínio.

Esta característica é capital para compreender um lado da vida no país do Gulag que uma grande parte da sua memória escrita enuncia. A evocação que fazem os autores que sobreviveram ao maior, mais duradouro e mais povoado dos sistemas de campos da História não se limita ao testemunho da dor, da solidão, da exaustão e do silenciamento, ou, em alguns momentos, ao relato da punição arbitrária e da tortura, suficientes para deixarem, junto deles, dos seus familiares ou dos poucos amigos e próximos que lhes não fugiram, metástases de um passado que não é possível apagar. Integra também uma outra dimensão, permitida por uma expectativa persistente de sobrevivência que moldou existências pessoais e sociabilidades, e foi traduzida, no quotidiano dos campos, na busca de um caminho redentor localizado em pequenos refúgios de conforto pessoal e de dignidade, associados por vezes a uma particular consciência de missão.

Desde Where one hears no laughter (Onde não se ouve o riso), subtitulado «fragmentos de uma memória», impresso em Paris no ano de 1928 e da autoria da antiga professora P. E. Melgunova-Stepanova, provavelmente o primeiro relato publicado em livro por um ex-prisioneiro, que a literatura do Gulag combinou sempre os factos relatados como testemunho presencial com a assumida ficcionalização da experiência narrada. Ainda que os textos publicados na emigração tenham sido predominantemente de natureza factográfica e aqueles que já na era pós-Estaline puderam ser publicados na ex-União Soviética possuíssem uma natureza predominantemente ficcional, a hibridez dos registos e dos processos manteve-se uma constante. E foi sobretudo esta que permitiu preservar na memória os vestígios tangíveis daqueles espaços de bem-estar localizado, num apenas aparente paradoxo, sobre uma paisagem de dor e desolação.

Assim aconteceu em Um dia na vida de Ivan Denisovitch (Mem Martins, 1972), de Alexander Soljenitsine (1918-2008), publicado em Novembro de 1962 no jornal Novyi Mir, logo após o novo salto na denúncia dos crimes de Estaline lançado durante o XXII Congresso do PCUS. Pela primeira vez, a voz de um zek, de um ex-encarcerado, de um pária, era admitida como parte da literatura soviética com direito a uma voz pública. O seu enorme e imediato impacto resultou em certa medida de se tratar de um romance e não de um depoimento, e, em consequência, de seguir o padrão de narrativa que à época o leitor soviético podia reconhecer como familiar. Ali foram desvendados, aspectos da brutalidade do sistema de repressão dos dissidentes e outros «elementos perniciosos» acantonados nos campos: prisioneiros enfrentando o inferno branco do Cazaquistão com sapatos mais pequenos que os seus pés e luvas que se rasgavam ao menor movimento, dormindo em barracas a abarrotarem de catres acanhados, tapados com cobertores imundos e esfarrapados, aguardando pela chegada de um frio ainda mais intenso pois a única situação em que eram dispensados do trabalho braçal era quando o termómetro descia abaixo dos 41 graus negativos. Nessas alturas, sob condições infra-humanas, sobrevinha então «um sentimento de quase-felicidade» e a sensação de que «nada iria estragar o dia».

A predominância do padrão ficcional da narrativa defronta-se, entretanto, com a realidade que a percorre. Varlam Shalamov (1907-1982) comentará que «o homem de hoje testa-se a si próprio e às suas acções não diante das acções de Julien Sorel, Rastignac ou Andrei Bolkonski, mas perante os acontecimentos e as pessoas da vida real», uma vida «da qual o próprio leitor é ao mesmo tempo testemunha e participante». A existência sobre a qual escreveu Shalamov e todos os autores do Gulag nada tinha, de facto, de aventuroso, nem eles eram heróis românticos, vivendo antes num cenário destinado a testar a resistência do humano. As suas memórias reportam-se sempre, como já em 1962 Dostoievski escrevera, a propósito das prisões siberianas, nas quase autobiográficas Recordações da Casa dos Mortos (Lisboa, 1963), a «um mundo à parte, diferente de tudo o resto, com leis próprias, os seus próprios hábitos e comportamentos», pelo qual circulava «um povo à parte», submetido a regulamentos que seriam intoleráveis em qualquer outro lugar.

Um outro aparente paradoxo instala-se quando os textos que registam a memória dos campos o fazem, como anota Leona Toker em Return from the Archipelago (Bloomington, 2000) – um «estudo emotivo» sobre as narrativas literárias do Gulag –, descrevendo-a também como experiência estética. Muitos deles juntam então ao relato pormenorizado da prisão, do simulacro de julgamento, da deslocação para o campo de destino, do ritmo do trabalho ou da prova da fome, um outro lado, muito pessoal, que configura, como avesso do real, locus de refúgio e de sobrevivência acantonado naquele recanto onde ainda é possível reservar um espaço, por pequeno que seja, para a dimensão privada da vida.

Reúnem-se aqui dois factores decisivos. O primeiro diz respeito à tensão entre o comportamento ético e o impulso estético, associados à dupla dimensão das narrativas do Gulag enquanto depoimentos e obras de arte. O segundo relaciona-se com a conexão entre as preocupações individuais e as colectivas que nelas sempre ocorre. Um bom exemplo é oferecido em My Recollections (Frankfurt, 1971), As minhas recordações, de Ekaterina Ulitskaya, uma antiga activista socialista-revolucionária detida durante as grandes vagas repressivas da década de 1930. Ulitskaya menciona o seu isolamento emocional e político enquanto representante de um sector político que os seus companheiros de campo julgavam já extinto («mas tu és um ictiossauro!», disse-lhe certa vez alguém). Reconhece porém que esse lugar particular lhe conferiu um «espírito de missão», mesmo sob estado de detenção, que assegurou um sentido ético à sua vida. Em todo o livro transparece então uma altivez, um sentimento de orgulho pela grandeza do combate solitário mas indispensável que acreditava travar.

Próprio da vida do detido em qualquer sistema prisional de total reclusão, os momentos de privatização da vida do condenado, aqueles que lhe conferem vestígios de dignidade num universo aplicado em lembrar-lhe que merece o enclausuramento, surgem nos mais inesperados momentos, mas aqui os relatos insistem em atribuir-lhe um papel nuclear na conservação do amor pela vida e na resistência à degradação do estado de humanidade. Passa-se com os primeiros contactos pessoais mantidos no momento da viagem e da chegada ao campo, quando se detecta em alguém, ainda que de maneira fugaz, uma palavra menos fria, um olhar aparentemente cúmplice. Acontece com a perspectiva de se obter uma vida nova e melhor sempre que ocorre uma transferência de campo. Ocorre com a aplicação da inteligência e da iniciativa na preparação de uma hipotética fuga. E tem sobretudo lugar nos pequenos instantes, episódios que noutro território seriam banais, e que se revelam capitais como factores de sobrevivência e da conservação do amor-próprio: conversas íntimas ocasionais, oportunidades para ler um pouco, uma troca de piadas, uma fotografia amarelecida que relembra o passado, a ocasional liberdade de movimentos motivada pelo desleixo de um guarda, o pedaço de pão esquecido pelos carcereiros, a mão-cheia de bagas silvestres que permitem melhorar a dieta, os instantes de solidão absoluta na companhia da natureza, uma canção que se entoa sozinho, pequenos gestos de gentileza de um companheiro, a amizade com pessoas incomuns que de outro modo jamais seria possível conhecer. Em Journey into the Whirlwind (New York, 1967), Viagem ao centro do furacão, Eugenia Ginzburg (1904-1977) evoca um breve instante da sua pena de 18 anos no qual lhe foi possível olhar o céu e respirar o ar fresco: «Afinal, apesar de tudo, ainda há lugares assim no mundo.» Funcionando como momentos de reconfortante humanidade, os raros actos de indisciplina surgem também destacados nos relatos.

Não menos importante, aparece recorrentemente nos textos uma tentativa de definição de um padrão de vida ascético que, para além de ser imposto pelas circunstâncias de uma vida obrigatoriamente sóbria e severa, funciona também como filosofia de vida, caracterizada por uma dimensão espiritual muito grande que pode igualmente pacificar o autor-prisioneiro com a ausência de liberdade que enfrenta e a percepção da injustiça da qual considera ter sido objecto. Naturalmente, a este aspecto encontra-se muitas vezes associada uma religiosidade íntima sempre consoladora, na qual um grande número de autores da literatura do Gulag irá também insistir.

O cárcere como lugar de remissão pessoal surge manifesto em O Arquipélago de Gulag (Amadora, 1975-1977), a obra de Soljenitsine que primeiramente esclareceu a configuração do sistema de campos soviético e divulgou a sua existência. A importância da prisão como lugar de crescimento pessoal e intelectual é aí particularmente vincada, sobretudo nos capítulos autobiográficos. «É grande bifurcação da vida, da qual partem duas estradas, uma à direita, outra à esquerda. A primeira eleva-se um pouco, a segunda sobe e desce. À direita perde-se a vida, à esquerda, a consciência», afirma o autor, para logo tentar resolver o impasse: «um impulso poderoso invade então a caixa torácica, cerca o coração de um halo eléctrico, para impedi-lo de parar.» A macrometáfora apresentada por Soljenitisne, desenhando o Gulag como um arquipélago feito de uma sucessão de ilhas-campo, funda-se na transformação de cada uma delas num território doloroso de educação para a sobrevivência, e o trânsito dos prisioneiros entre elas, ocorrido aliás com o próprio autor, como uma peregrinação por lugares que servem de redentora via-sacra. Na verdade, «a prisão regenera profundamente o homem (…), sempre na direcção de um aprofundamento do ser», pois, como dizia uma pequena frase que corria nos campos, «o cativeiro constrói». Sentir-se-á até «prazer em transportar carrinhos cheios de detritos» se ao mesmo tempo for possível achar um momento para «conversar com os companheiros acerca da influência do cinema na literatura». Se é verdade que o sistema deseja aniquilar o detido, este tudo deve fazer para resistir e promover a sua própria reabilitação.

Os escritos de Shalamov, que o próprio descreverá como «ficção verídica», testemunham igualmente esta busca constante de uma autoremissão alcançada dentro do território dos campos. Sobretudo nos Kolyma Tales (London, 1994), Os Contos de Kolyma, escritos entre 1953 e 1963 mas reportando-se a uma experiência anterior, onde combina a experiência pessoal e relatos que foi escutando durante os longos anos de cativeiro que cumpriu a partir da década de 1930, Shalamov torna clara a importância desse espaço de procura. No conto «Rações Secas», o narrador diz ter compreendido que a vida, mesmo a pior das vidas, «consiste numa alternância de alegrias e penas, de sucessos e falhanços, e de que não se devem temer os falhanços mais do que os sucessos», para um pouco à frente concluir que, sob as condições da vida nos campos, tanto quanto manter a saúde física, é preciso combater com coragem «a falta de esperança» e «a indignidade». É esse o seu programa para a sobrevivência enquanto ser humano no campo siberiano de Kolyma. Em «Um Epitáfio», uma evocação emocionada dos companheiros de prisão mais próximos de si que vira morrer, coloca na boca do prisioneiro Volodia Dobrovoltsev as seguintes palavras: «Eu podia ver os braços e as pernas cortados e ser um cepo humano, sem braços nem pernas. Mas ainda assim encontraria força suficiente para lhes cuspir na cara por tudo aquilo que nos têm feito…». A bravura enquanto última trincheira que assegura a resistência do detido à sua redução ao estado de infâmia.

Resta sublinhar aquilo que pode parecer óbvio: o processo não é homogéneo, uma vez que a sua memoração é transmitida através de relatos escritos sobre referências factuais que se prolongaram por mais de seis décadas e por diferentes estádios de vivência do confinamento ao regime dos campos. As memórias que se reportam ao período pós-estalinista acentuam a dimensão do privado e vão mencionando experiências, fora do quadro processual, que se aproximam cada vez mais daquelas que são comuns à generalidade das instituições prisionais. Nelas predomina claramente a componente ficcional. Bastante mais sombrios, os relatos das décadas de 1930-1940, geralmente muito próximos do testemunho e do grito de revolta, enfatizam principalmente as estratégias de resistência face aos ritmos de vida e de trabalho violentos e aviltantes. Nuns e noutros, sempre a busca de uma conciliação entre o tempo da forçada clausura e a demanda de uma dignidade libertadora. Contra essa desumanização que, enquanto «inimigos objectivos» – nas palavras do prisioneiro-poeta Alexander Tvardovsky (1910-1971), «marcados todos como traidores» –, o sistema lhes havia fixado como destino.

Imagem do topo: Portas de celas de campos do Gulag, expostas em Moscovo no Museu da História do Gulag, fotografadas por Pascal Dumont. A outra fotografia é do mesmo museu.

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