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Esquecer Maio para o Maio não morrer

Apontamentos do Maio – 1

Durante algumas semanas, Dany «Le Rouge», o libertário, foi para o Ministério do Interior «judeu alemão» e para o PCF «anarquista alemão». Hoje permanece inclassificável, com atitudes que desagradam à esquerda e à direita. Em 2001, a defesa pública da intervenção armada anti-taliban retirar-lhe-ia a simpatia política de muitos dos antigos correligionários e desacreditá-lo-ia junto daqueles que jamais aceitarão o mais pequeno pacto com o arquivilão americano. A leitura que Daniel Cohn-Bendit (DC-B) tem vindo a fazer do Maio de 68 e do seu rastro tem alargado ainda mais o círculo da rejeição.

Em Forget 68, um pequeno livro das Éditions de l’Aube que transcreve uma conversa mantida com o jornalista Stéphane Paoli e o sociólogo Jean Viard, DC-B indica aquelas que considera serem as duas grandes incompreensões mantidas a propósito do significado do movimento. A primeira, afirma, «é a de Sarkozy e da direita, para quem todos os males da França de hoje derivam de 68», a segunda residirá «nessa fábula da extrema-esquerda para quem concluir 68 se mantém na ordem do dia» (p. 123-4). Contra a depreciação ou o maravilhamento, admite a derrota política do Maio, mas destaca a sua vitória a longo prazo, determinada principalmente pelo impacto das ideias e das vivências que o acompanharam.

Deve dizer-se que DC-B não partilha com muitos dos seus contemporâneos de uma visão nostálgica do movimento do qual continua a ser o rosto mais visível. E faz questão de afirmá-lo. Sublinha sempre o seu carácter episódico, datado, e a sua manifesta incapacidade para produzir na sociedade francesa uma qualquer ruptura de carácter revolucionário. Destaca também a sua inclusão na vaga de revolta que cruzou uma grande parte do planeta nos anos 60, representando um dos seus mais importantes momentos. Mas sublinha principalmente a sua dimensão simbólica como instante no decorrer do qual passaram para primeiro plano práticas e propostas que questionaram a ordem política e moral da burguesia, ao mesmo tempo que revelavam a inadequação das ortodoxias da esquerda a um universo social emergente.

Nesta direcção, pode aproximar-se parcialmente a posição de DC-B da expressa logo em 1970 por António José Saraiva, para quem, em Maio e a Crise da Civilização Burguesa, os acontecimentos de 68 teriam sido «obra de uma mudança espiritual». Mas, tal como o fez recentemente a americana Kristin Ross em May’68 And Its Afterlives, recusa também a leitura inócua de um Maio puramente festivo, reconhecendo-o sem equívocos como momento de aproximação das esperanças e da contestação dos intelectuais à luta dos trabalhadores e dos sectores anticolonialistas e anti-imperialistas que se incorporaram no movimento. Diversamente de Ross, porém, DC-B considera-o também como momento dotado de um significado simbólico que o tempo ampliou, acabando por ganhar vida própria ao materializar uma espécie de vitória a longo prazo, e de desforra, da geração derrotada pela polícia e pelos gaullistas nas ruas de Paris.

Propõe esquecer 68, mas apenas na medida em que a excessiva e recorrente lembrança tem servido para que os seus inimigos «em diferido» lhe atribuam um sentido perverso. E para que os seus partidários passadistas se não continuem a servir da sua memória oficial como obstáculo ao lançamento desse esforço de «recomposição do pensamento», associado «a uma exigência de liberdade e de autonomia tanto colectivas quanto individuais» (p.85), que se revela hoje indispensável, como um desafio, na procura de soluções para os ventos de mudança que varrem um mundo radicalmente outro.

Não se encontrará nada de substancialmente novo nem de particularmente original neste pequeno livro. Mas o discurso enérgico que percorre Forget 68 ajudará a pensar o Maio francês, o seu tempo e a sua posteridade sob perspectivas que não sejam a da rejeição liminar sugerida pelas palavras de Sarkozy, ou a da nostalgia de um mundo carregado como um fardo por todos esses soixante-huitiards que num dado momento das suas vidas deixaram de dar corda aos relógios. Esquecer para, talvez, melhor lembrar.

    História, Memória, Opinião

    Trotsky plays banjo

    De vez em quando tento compreender a tendência, cada vez mais acentuada no Bloco de Esquerda, para desvirtuar as suas origens, a identidade sociológica da sua matriz, a dose de esperança que devolveu nos finais da década passada a muitas pessoas que a haviam perdido algures nos baços anos 80 ou que estavam a despertar para a prática política. Lembro-me então das razões que inventariei para depois me afastar: a redução do essencial da iniciativa à actividade eleitoral ou parlamentar, a passagem para segundo plano de causas e áreas de intervenção que não estimulam consensos, a absurda auto-imagem de «partido de confiança» (e a consequente moderação da «rua» como território de combate), a reduzida carga política de um discurso que se pretende mostrar «aceitável» (por quem, jamais percebi), a intolerância latente de um proto-marxismo de museu que mantém a sua força, o estrabismo de certas posições no domínio da política internacional. Lembro-me também das razões que em 1999 me levaram a aderir ao projecto. E releio um texto que escrevi em Janeiro de 2000, ao qual chamei «Todas as cores de uma esperança». Está ali tudo o que na altura me empolgava, como empolgava muitas outras pessoas, e que hoje se esvaeceu quase por completo.

    Foi nessa esperança extraviada, e nesse imaginado partido de convicções, de denúncia, de pressão, de resistência e de justiça, no qual uma vez acreditei, que voltei a pensar quando li a afirmação, produzida por Rui Tavares (que retomou, faça-se a justiça a Daniel Oliveira, a posição por este defendida há já largos meses), de que «um partido da resistência não chega», e que «para o BE ter mais votos, tem de começar por querer ser mais». O que deixa no ar duas evidências. A primeira, se tal for assumido como orientação estratégica do Bloco, é que ocorrerá uma ruptura definitiva com as causas que não somem votos, implicando uma autêntica refundação do partido. A segunda é que está algures a ser construída a fantasia impossível de um «Bloco de poder». Como presumo que uma estratégia bolchevique de assalto ao Palácio de S. Bento esteja fora de questão, e tal «ser mais» só pode significar o negociar de um ou dois artigos neste ou naquele diploma ou o suplicar de duas subsecretarias de Estado num eventual governo de coligação, ocorre-me perguntar: com quem e em que bases programáticas será possível, neste momento, desenhar tal coligação? Ou será que…

      Atualidade, Opinião

      Nem todos os nossos poetas são os nossos poetas

      Cheguei ao caso através de um post de Francisco José Viegas. Nele se chama a atenção para uma opinião de José Eduardo Agualusa, expressa durante uma entrevista concedida ao jornal Angolense, segundo a qual Agostinho Neto, António Cardoso ou António Jacinto poderiam ser «eventualmente muito boas pessoas,(…) mas eram fracos poetas». Claro que, sobretudo por causa do primeiro, caíram o Carmo e a Trindade para os lados de Luanda, ao ponto de começarem de imediato a correr declarações tendentes, uma vez mais, a desqualificar Agualusa no plano intelectual, político e até pessoal, acusando-o, por exemplo, de ter ido «longe demais ao atacar grandes figuras emblemáticas da literatura nacional».

      Sem ser crítico literário, conheço o suficiente da obra dos três autores angolanos para, neste caso, concordar genericamente e em consciência com Agualusa. O que não invalida que admita que, para muitas pessoas para as quais a grande poesia deva «conter mensagem», ou então «exprimir sentimentos» sob «belas palavras», eles mereçam todos os epítetos que lhes possam conferir a aura dos «grandes poetas». Posso dizer a mesma coisa da poesia de Miguel Torga, Eugénio de Andrade ou Manuel Alegre, que não considero grandes poetas embora deva respeitar quem ache que o são ou quem tenha gosto em lê-los. Como reconheço a honestidade e o esforço que todos eles foram, eventualmente, depositando no seu próprio labor poético. Aquilo que não é tolerável é que a obra de alguém – poeta, crítico, amola-tesouras ou qualquer outra coisa – esteja isenta de exame e origine formas de coacção sobre a opinião ou a iniciativa de quem a possa contestar. Pelo que se pode ver, na ainda débil democracia angolana, onde se mantém um regime «firme e determinado, mas não totalitário» (palavras de um editorial do sempre oficioso e oficiante Jornal de Angola), permanece com voz activa quem pense que deva estar. Concordo com FJV quando este lembra que «convém estar atento, para que não pensem que ninguém ouve».

        Opinião

        O caso do holandês rastejante

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        Que fique claro que considero detestável – e particularmente perigoso – Fitna, o filme anti-islâmico de Geert Wilders, aquele deputado da extrema-direita holandesa que saiu agora da semi-obscuridade para os títulos dos media. Detestável pelo seu conteúdo racista e intolerante, que não se contradiz quando estigmatiza o racismo e a intolerância dos outros, uma vez que toma partido por um dos lados do conflito de culturas e de explicações do mundo para o qual existem apenas os inequivocamente bons (nós, sem dúvida) e os inexoravelmente maus (os outros, pois quem mais haveria de ser?). Mas o filme é perigoso também, pois serve essencialmente para excitar os ânimos dos extremistas – situados de um lado e do outro do combate sem tréguas que eles desejam – podendo servir de rastilho para uma vaga de violência e xenofobia difícil de conter e capaz de trazer ainda mais ódio, sofrimento e desejo de vingança.

        Todavia, algumas das reacções de repúdio que tenho lido por aí parecem-me algo filisteias e inapropriadas, pois tendem, uma vez mais, a desvalorizar objectivamente um elemento presente no documentário – e nele alarvemente generalizado – que é o poder crescente dos grupos islamitas sobre sectores cada vez mais amplos do mundo islâmico. Mergulhados há séculos na insciência, na miséria e na submissão – que Enzensberger considera ter sido agravada quando da recusa da revolução cultural determinada, na Europa, pela invenção da tipografia -, afastados de um debate aberto sobre o mundo contemporâneo, a sua diversidade e as suas oportunidades, dependentes de tecnologias que são forçados a comprar ao ocidente, eles têm sido presa fácil dos tiranos e dos exaltados, para os quais a missão apenas estará concluída quando a sua concepção paranóica e medieval do mundo vingar sobre o planeta.

        É certo que o radicalismo islâmico não pode ser identificado com o Islão no seu todo, e que é dirigido por minorias que apenas se representam a si mesmas. Mas é já um fenómeno de massas, e em crescimento – basta olhar para a dimensão das manifestações de rua que assumem as suas palavras de ordem – em relação ao qual é preciso definir uma intervenção que não deve apoiar-se na errada noção de que os seus responsáveis são uma ínfima minoria e que existe uma opinião moderada que acabará por isolá-los. Uma intervenção que passa pela defesa intransigente dos valores de tolerância, liberdade e laicidade que o mundo de matriz iluminista – hoje crescentemente miscigenada com diferentes influências, é certo e é bom – deve preservar e partilhar, no diálogo com o outro, enquanto conquistas que lhe permitiram um dia começar a superar o estado de barbárie. E que as populações brutalizadas pelos regimes tirânicos que vigoram na generalidade dos países islâmicos têm o direito de reconhecer como opção. Diminuir a importância desta tarefa por causa duma guerra estúpida como aquela que Bush levou ao Iraque, devido a algumas iniciativas criminosas dos falcões israelitas, ou em função de acções deploráveis e arriscadas como esta do deputado holandês, é que pode tornar-se perigoso. Ao contrário do que parece pensar gente como Wilders ou os desculpabilizadores passivos do Outro, o mundo não é, nem pode ser, a preto e branco. E menos ainda com o preto de um lado e o branco do outro.

          Atualidade, Opinião

          Ruído no anfiteatro

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          Todo o país viu as imagens e fala no caso da agressão da aluna da Carolina Michaëlis à sua professora de Francês. A atitude é de unânime condenação, embora eu desconfie que alguns estudantes da faixa etária da agressora possam considerá-la uma heroína e, em certos casos, tenha já «molhado o pão» no apetitoso lombo de outro infeliz docente (ou, pelo menos, tenha sentido uma quase-irreprimível vontade de o fazer). Têm sido distribuídas as culpas por toda a gente, colocando-se por vezes a agressora – que não deixa de o ser pelo facto de não ter batido na cara da professora – numa posição protegida de «vítima do sistema» que lamentavelmente perdeu a compostura. Sem querer insistir no que tem sido dito (um largo leque de posições pode ser encontrado na caixa de comentários de um post de Daniel Oliveira), chamo a atenção para algumas coisas que me perturbaram particularmente e que estão para além da agressão em si. São elas a cumplicidade ou a inacção do conjunto da turma, a falta de uma reacção decidida da professora, a não-apresentação imediata de queixa, a incapacidade da direcção da Escola para tomar medidas claras e prontas (e depois para esclarecer devidamente a opinião pública), a revelação de uma sucessão de casos análogos ou piores entretanto silenciados, o facto da esmagadora maioria das vítimas destes casos serem mulheres, o silêncio conivente dos pais dos jovens agressores (que terão a dizer disto as sempre tão buliçosas «comissões de pais»?). E ainda a real responsabilidade dos governos que têm vindo a retirar prestígio e autoridade aos professores.

          O caso leva-me a reflectir sobre a minha própria experiência, e a falar aqui de um assunto que permanece tabu, ainda que falado entre dentes, com sinais de vergonha, por professores, agora do ensino superior, que não sabem o que fazer e começam também a temer o pior. Dou aulas numa universidade desde 1981, e, naturalmente, ao longo de todos estes anos tenho-me confrontado, na relação mantida com dezenas de milhar de alunos, com comportamentos muito diferenciados no espaço das aulas. Apesar dessa diversidade, e tendo conservado sempre uma relação nada autoritária com a generalidade deles, jamais tive o menor problema disciplinar. Tanto quanto sei, a mesma coisa se passava com quase todos os meus colegas (as raríssimas excepções ficaram quase sempre a dever-se a atitudes de incompetência ou de arbitrariedade). Quando começaram a suceder-se os problemas disciplinares nas escolas secundárias, estes não se reflectiram logo nas universidades, presumindo-se sempre que os estudantes entretanto «cresceriam» e manteriam já comportamentos responsáveis quando chegassem aos nossos anfiteatros.

          Mas tudo mudou há cerca de dois ou três anos atrás. A verdade é que, após as sucessivas vagas de alunos com deficiente formação científica imposta por programas e métodos no mínimo discutíveis, começaram a chegar às escolas superiores estudantes com uma quase nula formação cívica e frágil capacidade de autoresponsabilização. E, pela primeira vez, eu e muitos colegas – com toda a experiência de anos de trabalho, com todo o prestígio que a maioria acreditava ter conquistado para a vida – começámos a ter problemas: alunos que conversam sistematicamente durante as aulas, que chegam atrasados todos os dias, que entram e saem sem uma palavra, que não desligam o telemóvel, que se dirigem ao professor de forma impertinente, que exigem facilidades confundidas com direitos sem cumprirem deveres, que em muitos casos nem sequer distinguem claramente as competências de quem ensina e as suas próprias obrigações. Falta o último passo que, ao que se vê, no ensino secundário há já muito tempo foi dado: transformar as aulas num campo de batalha. Este passo não é inevitável: quero acreditar que, a ser bem aplicado, o previsto sistema de tutorias possa ajudar a melhorar os processos de responsabilização e a articulação entre a vida e a escola, como quero acreditar que a ampliação dos cursos de 2º e 3º ciclo traga para a vida nas escolas superiores pessoas mais amadurecidas e tolerantes. Como acredito nos alunos interessados, empenhados e até afectuosos. Mas temo que, entretanto, algo de mau possa acontecer.

          Claro que a maioria dos estudantes universitários – sei-o por tentar andar de olhos abertos e graças a uma sucessão de óptimas experiências pessoais – não se enquadra neste cenário de catástrofe anunciada. A maioria dos alunos do secundário, acredito, também não se adequará a ele. Só que aos outros, aos elementos de uma minoria a quem é permitido protagonismo, o sistema educativo em vigor e as políticas que estão a ser aplicadas, minando a centralidade do professor na escola como na sociedade, conferem um grau de manobra cada vez mais perigoso. Que o meio social envolvente observa demasiadas vezes com um encolher de ombros.

          P.S. – Pouco deve interessar, em casos como aquele que desencadeou o actual debate, o desculpabilizador discurso pedopsi sobre o telemóvel enquanto prótese. A admissibilidade do seu uso imoderado começa quase sempre em casa e apenas é possível porque, daí até à escola, tem sido mantida toda uma rede de permissibilidade que não deixa muitos jovens perceberem (ou não os obriga a perceberem) que existe uma dimensão de sociabilidade moderadora da utilização lúdica ou produtiva da máquina, de qualquer máquina. Que há vida para além dela.

            Olhares, Opinião

            30 anos

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            Pedagógico e demolidor o suplemento P2 do Público de hoje sobre os «Trinta anos que mudaram uma ilha». Trinta anos da Madeira de A. J. Jardim, evidentemente. O mesmo que dizer trinta anos de regionalização intensa e de muitas obras, de alguma ou de bastante utilidade, mas também trinta anos de corrupção, arbitrariedade, clientelismo king size e total descontrolo da despesa pública. Um bom exemplo na página 12: à melhor rede regional de edifícios escolares corresponde a maior taxa de analfabetismo do território nacional, o pior índice de aproveitamento, uma das mais elevadas percentagens de abandono e quase sempre os últimos lugares no ranking das escolas. Acrescento outro: uma rede de serviços de saúde megalómana e desproporcionada acompanha aquela que é de longe a maior taxa de alcoolismo do país. Dados que já não surpreendem, mas não deixam de chocar pela impunidade que suscitam. O mesmo no que concerne ao funcionamento obscuro da administração pública, à conivência da hierarquia católica com o poder, à tutela sem princípios da comunicação social, ao emaranhado reticular dos favores, à ausência de transparência nos concursos públicos, à inexistência do regime de incompatibilidades aplicado aos titulares dos cargos regionais, à política do betão que está a destruir a ilha diminuindo a qualidade ambiental e o nível da procura turística, ao endividamento constante e sem controlo. Trinta anos também da maior agressividade sobre quem se limite a denunciar esta vergonha. Tudo sob o olhar indulgente dos sucessivos governos da República. Sempre com um sorriso de circunstância guardado para o actor principal deste longo drama com ares de comédia.

            Adenda – Já que falo do Público, uma nota negativa para um aspecto da nova colecção – para já, aparentemente útil e de fácil consulta – sobre a vida e a obra de alguns dos «Grandes Pensadores» da cultura do Ocidente-Norte: como é possível avançar com uma iniciativa destas, e divulgá-la profusamente, sem identificar a autoria dos volumes? Sinal positivo: disse-me hoje a senhora do quiosque onde levantei o meu exemplar que todos os clientes interessados se queixaram do mesmo.

              Atualidade, Opinião

              Profissão de fé

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              O Partido Comunista Português manifestou-se colectivamente na rua, esvaziando os «centros de trabalho» e trazendo até à capital muitas pessoas que se identificam com a sua linha política e sobretudo com a sua bandeira. Fazê-lo numa «Marcha Liberdade e Democracia» permite relembrar a história dramática do seu combate contra a ditadura, mas repugna hoje a muitos cidadãos, para os quais a noção de liberdade não se adjectiva nem se relativiza, e deveria valer – aspecto ao qual o PCP não atribui um valor por aí além – a qualquer momento e em qualquer lugar do mundo. A manifestação teve na sua origem o protesto, justo ainda que provavelmente extemporâneo, contra uma nova lei dos partidos que reduzirá a capacidade de intervenção das forças políticas situadas fora do eixo PS-PSD e promoverá uma espécie de retorno serôdio ao modelo arcaico do «rotativismo». Uma boa prova do amor pela liberdade e pela democracia deveria, assim, ter passado por um diálogo franco, e marcado pelo mútuo respeito, com pelo menos uma parte das forças e correntes de opinião que tal lei irá minimizar ou tornar residuais. Ou mesmo com sectores dos grandes partidos do centro que não concordam com o projecto. Mas fazê-lo seria pedir demais à comprovadamente nula capacidade de diálogo dos comunistas portugueses, sempre pouco interessados em participar naquilo que não podem ou não conseguem controlar. E retiraria também ao desfile essa dimensão ritual de autocelebração e profissão de fé da qual o PCP carece cada vez mais. Nenhuma surpresa, pois.

                Opinião

                Votado e lavrado em acta

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                O caso do docente de Braga, a quem terá sido dito que «um professor universitário não pode ser criativo nem humorista» e foi determinado que tivesse tento na língua, circula por aí, entalado entre jornais e monitores. Eduardo Pitta e Manuel António Pina dedicaram-lhe textos de sinal diverso. Muitos outros se lhes seguiram. Entretanto o móbil do «crime», o blogue do referido professor, de gosto duvidoso e humor que não fará propriamente rir multidões, não abona muito em favor do lançamento de uma efectiva vaga de indignação. Já um tal «Voto de Repúdio aprovado pelo Conselho do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional, em 27 de Fevereiro de 2008», no qual publicamente se declara que «o docente Daniel Luís é o único responsável pelo encerramento dos seus blogues, a que procedeu de livre vontade na sequência de um apelo do seu Departamento, votado e lavrado em acta», merece, pelo menos, a preocupação de qualquer cidadão capaz de reconhecer os valores essenciais do discernimento e da tolerância democrática. Seja ele universitário ou não. Tenha ou não sentido de humor.

                  Apontamentos, Opinião

                  Dr. Jekyll, Mr. Hyde e os outros

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                  Reza assim:

                  «A esquerda não pode sacrificar a sua perspectiva própria a uma visão tecnocrática, alheia aos seus valores políticos, culturais, ambientais, etc. Isso vale para todas as áreas, mesmo aparentemente as mais ‘neutras’. Por exemplo, a modernização das infra-estruturas não pode dar-se contra a defesa do ambiente e a coesão territorial, antes promovendo-as. A modernização da economia não pode visar somente aumentar a produtividade e competitividade internacional, não podendo deixar de ser caracterizada pela luta pelo emprego e pela sua qualidade, pela justiça nas relações laborais, pela garantia das ‘obrigações de serviços público’ nos ‘serviços de interesse económico geral’. A modernização da administração pública não pode ter como objectivo somente a eficiência administrativa e o rigor das finanças públicas, mas também e sobretudo melhores serviços públicos para toda a gente. A modernização do sistema político não pode consistir somente em eliminar as suas disfunções, não podendo perder de vista a renovação da democracia, o incentivo a uma maior participação, o aumento da transparência e da responsabilidade política, e a descentralização territorial.»

                  A longa citação foi retirada do artigo de Vital Moreira que saiu ontem no jornal Público. No entanto, foi o mesmo VM quem, no recente Fórum Novas Fronteiras, afirmou estar «satisfeito com o que vejo hoje no país; quando começámos ninguém pensaria que chegaríamos tão longe». Presumindo que VM não usou o plural majestático, e prestando atenção a outras intervenções, quer-me parecer que temos aqui um excelente exemplo do estado de ligação com o real a que chegaram o responsáveis do PS e os seus companheiros de ocasião. Criticando práticas pelas quais são os primeiros responsáveis e associando-as a «alguém» ou a «qualquer coisa» que parece acreditarem nada ter a ver com eles, enunciam uma perigosa atitude de esquizofrenia política. Em nome do tal realismo, pois com certeza.

                  A partir da crónica de Manuel António Pina publicada hoje no Jornal de Notícias.

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                    O patético Fórum Novas Fronteiras, que reuniu no sábado uns quantos apaniguados e fellow-travellers do governo do PS para um elogio público e litúrgico das suas políticas, revelou-se ainda pior do que se esperava. O autoproclamado «espaço de diálogo, de avaliação e de discussão» não foi mais que um encontro de pré-campanha, conscienciosamente mediatizado e convenientemente desprovido de vozes dissonantes, e no qual José Sócrates nem sequer disfarçou o tom comicieiro – aliás, já não parece possuir outro – entrando no pavilhão em passo enérgico, a acenar às hostes entre palmas, vivas e ai-jesus. Só faltou mesmo a musiquinha de Vangelis. Inebriada pelo poder, fascinada pela lógica prática do realismo político, encerrada em sedes e gabinetes, e deixada sem rédea por uma oposição sem força ou credibilidade, esta gente não pára de ficcionar sobre as medidas administrativas que confunde com «êxitos». Esses que um país acabrunhado e sem desígnio não consegue enxergar, mas que ela «vê» muito, muitíssimo bem. Quem pensará que realmente mobiliza?

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                      É a cultura, estulto!

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                      Não foi a intervenção em si, mas sim aquilo que ela indicia. Na SIC, ontem à hora do jantar, as palavras de Ricardo Costa, director-geral adjunto da estação, a propósito da mudança de titular no Ministério da Cultura, tornaram muito evidente a promiscuidade instalada entre uma forma particular de «comentar» mediaticamente a actualidade política e um determinado modo de «fazer» a política à qual se refere essa mesma actualidade. Que primam pela superficialidade, cada vez mais submersos, uma e outro, no imediatismo dos raciocínios e na vulgar contabilidade dos votos e das influências.

                      Ao considerar irrelevante o papel do Ministério da Cultura («que até foi, durante bastante tempo, uma simples secretaria de Estado»), por este não contar «em termos de votos», achando até desproporcionada a projecção mediática que os seus actos normalmente têm, Costa não evidenciou apenas uma notória estreiteza de visão, parecendo não perceber o valor estruturante e simbólico das políticas culturais. Demonstrou também alguma falta de perspectiva, traduzida no esquecimento do impacto a médio prazo, repercutido nas mais diversas áreas, que têm as iniciativas governamentais neste domínio. Aqui como «lá fora»: afinal, ainda hoje se recorda a obra (discutível, mas obra de impacto) do ministro francês Lang.

                      Triste exemplo o de um «comentador político» que centra os seus comentários apenas nos resultados eleitorais, nas sondagens, nos títulos da imprensa, nas tricas de antecâmara. O drama é que não se trata apenas de um caso individual ou de um momento de dislate, mas antes de uma escola instalada, transversal a um certo jornalismo e a uma determinada forma de fazer política, que todos os dias nos zumbe aos ouvidos. E que por vezes atordoa.

                        Opinião

                        Ópio para o povo

                        O Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações declarou à Visão que uma das mais importantes tarefas da referida aliança consiste em fomentar a «integração da história das religiões» no ensino e em promover o «diálogo inter-religioso». Quis com isto dizer o «laico» Jorge Sampaio que apoia um reforço do papel das religiões na formação cultural e ética das novas gerações. Tenderia a concordar se, como um outro dever da mesma aliança, idêntico destaque fosse dado à sua crítica e à enunciação do papel central que elas historicamente têm cumprido como entraves da mudança, factores de desigualdade social e agentes da guerra. O que não deixaria de ser uma forma de aproximação entre os povos (a «aliança das civilizações» da qual fala o novo jargão) e de melhoria da sua qualidade de vida.

                          Atualidade, Opinião

                          Agrião obrigatório

                          O meu último post de 2007 era previsível e contém, digamos, uma espécie de declaração de derrota.

                          Desde que o proibicionismo antitabagista se preparou para substituir as campanhas contra os malefícios do tabaco, insisti na ligação entre o gozo de fumar e práticas culturais tão válidas quanto o são aquelas que associamos ao consumo do álcool e do café. Serão males que, para muitas pessoas, se foram traduzindo num bem maior: o acesso a um padrão de vida que têm todo o direito de escolher. Em seu nome – e apesar de quase não fumar ou consumir bebidas alcoólicas – fui tomando aqui e ali a defesa de uma política equilibrada, capaz de combinar os interesses de todas as partes.

                          Em vão, pois no final ganhou uma delas. Aquela que foi capaz de associar uma maioria de políticos e legisladores profissionais – que procuram mostrar um «ar de modernidade» empurrando, hipocritamente, concidadãos para um gueto – à minoria de fanáticos e exaltados que entende ser a sua maneira de viver a única irrepreensível e aquela que merece todos os direitos de cidadania.

                          Por isso deixarei praticamente de fumar, uma vez que apenas o fazia em sociedade e não aceito passar a ser tratado a partir de agora como um pária. Confinado a expelir baforadas furtivas em pátios e portarias, exposto à chuva, ao vento e ao opróbrio dos higienistas triunfantes. Mas vou vingar-me nas carnes verdes, pois a minha esperança de vida ainda integra a possibilidade de me ver um dia reduzido ao consumo obrigatório do agrião, do nabo e da cenoura. Não posso perder tempo.

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                            Frei Bento

                            Tenho muito respeito pelo trajecto pessoal e pelo trabalho do teólogo dominicano e colunista Frei Bento Domingues. Ele é desde há muito, e começou a sê-lo numa época em que geralmente se pagava caro pela ousadia, uma das raras figuras da Igreja católica portuguesa que tem procurado levar o cidadão comum, crente ou laico, a pensar Deus e as religiões. A pensá-los, sublinho. E foi também um daqueles que, desde muito cedo, procurou mostrar-nos que a atitude religiosa apenas faz sentido como prática libertadora, não dogmática e eminentemente social. Principalmente quando a fé de quem a pratica se mantém numa dimensão necessariamente individual.

                            É por isso que tenho lido com certa mágoa algumas das suas crónicas recentes. Nas quais, de uma forma cada vez mais incisiva, procura explicar certas posições da Igreja romana e do actual papa, ou se dedica a demonstrar a fragilidade das razões daqueles que recusam Deus e a própria religião. Os que, segundo ele, «têm medo que Deus exista» e, na afirmação de um cepticismo extremo, «comeram a razão toda». Uma atitude como esta, mesmo quando envolta em belas palavras e, admito, em excelentes sentimentos, tende sempre a solicitar uma rejeição da liberdade do outro. Dessa liberdade total, sem condições, fundada numa convicção tão forte e tão legítima quanto aquela que alguns, como Frei Bento, bebem principalmente na fé.

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                              Os mal-amados

                              Um dos grandes vícios de uma boa parte dos colunistas «de esquerda» – em alguns dos quais encontro também, para que conste, muitas e boas qualidades – consiste em perderem mais tempo a etiquetar certas pessoas que não partilham dos seus pontos de vista, em metê-las em gavetas, gavetinhas e gavetões, do que a discutir as suas ideias ou a partilhar aquilo que elas (também) fazem de bom, útil ou interessante. Sob este aspecto, lamento ter de reconhecer que uma parte dos fazedores de opinião da «direita» que não é trauliteira tem vindo a comportar-se bastante melhor do que os seus semelhantes do outro lado da avenida.

                              Isto é particularmente detectável numa parte do universo dos blogues portugueses, dentro da qual absolutamente tudo aquilo que escrevam, digam ou façam pessoas por certo insuspeitas de serem ferozes inimigos do pluralismo como Vasco Pulido Valente, José Pacheco Pereira ou mesmo Pedro Mexia – para não citar mais – é logo reputado como algo que não merece um minuto de atenção, ou que traz com toda a certeza água no bico. Podem oferecer pérolas – e certas vezes oferecem – mas que importa isso? O sectarismo mais anacrónico e o preconceito travestido de uma qualquer «posição de princípio» tendem a eternizar-se. A tacanhez disfarçada de indiferença também. É a vida, dir-se-á. Mas esta vida poderia ser bem melhor. «Mais civilizada», diria, se a expressão não tivesse caído em desuso como sendo… «de direita».

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                                Abuso

                                Admito sem problemas que Sócrates receba o fanfarrão Hugo Chávez e lhe dê uma palmada nas costas. Afinal temos muitos compatriotas amedrontados na Venezuela e o gás natural que tem chegado da Nigéria poderá não ser da melhor qualidade. Já me parece patético, e também algo abusivo, que cerca de duas centenas de portugueses ligados principalmente à União de Resistentes Antifascistas Portugueses, à Associação de Amizade Portugal-Cuba, a um certo Comité de Solidariedade com a Venezuela, a alguns sectores da CGTP e por supuesto ao PCP, dêem as boas-vindas ao «revolucionário bolivariano» com palmas, vivas e, imagine-se, canções de José Afonso.

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                                  Problema de sintaxe

                                  Ando há semanas a tentar ler Descascando a Cebola, o livro autobiográfico de Günter Grass sobre o período que vai de 1939 a 1959. Não é autor que me encha as medidas, já aqui o disse. E, como também já escrevi, não me agrada que ele, a «consciência do povo alemão», tenha demorado tanto tempo a reconhecer em público que pertenceu a um destacamento das SS. Mas a dificuldade da minha leitura – que antevia como a de um testemunho – deve-se sobretudo à óbvia ausência de empatia com a tradução da obra. António Guerreiro já tinha chamado, no Expresso, a atenção para, entre outras falhas, «frases sintacticamente incorrectas ou demasiado próximas da sintaxe alemã», o que a tradutora e a editora procuraram refutar dois números do mesmo semanário depois. Não sou capaz de julgar com rigor de que lado está a razão, ou se todos a têm. Estudei alemão durante dois anos mas já quase esqueci o pouco que aprendi. Avalio a tradução, por isso, apenas através do gosto e da sensibilidade. Do ouvido também. E estes não me deixam um impressão positiva, tendendo a simpatizar com a opinião do crítico do Expresso. Assim, soam-me mal, muito mal, frases como «demo-nos com vontade à boa disposição», «abasteciam-nos com o jargão tradicional, excedendo-se a eles próprios na descoberta de chicanas subtis», «não seria mais premente falar actualmente» ou «repetidamente se atiçavam fogos de esperança que convidavam a aquecer na sua proximidade o ânimo enregelado», entre muitas outras, largas centenas delas, de idêntico recorte. Será por isto que continuo a andar para a frente e para trás com o livro. Sem avançar grande coisa, fazendo ainda o possível por não desistir.

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                                    Um caso à beira-serra

                                    Ao falar do comportamento dos dois senhores agentes da PSP que entraram armados em bufos dentro da sede sindical na Covilhã, Ângelo Correia, na televisão, colocou, em forma de boutade, o dedo na ferida: «No tempo do Dr. Mário Soares como primeiro-ministro isto nunca aconteceria.» Quando a cultura da liberdade passa a ser apenas uma florzinha rubra na lapela no dia vinte e cinco do quatro, e todos os atropelos se desculpam em nome da eficácia ou da autoridade do Estado, coisas destas acontecem. E eu até nem sou soarista. Nem ele, o Dr. Ângelo.

                                    Adenda: «O ministro da Administração Interna considera que, com base no relatório preliminar divulgado hoje pelo inspector-geral da Administração Interna sobre a visita da PSP às instalações do Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) na Covilhã, segundo o qual a polícia não cometeu qualquer infracção, que ‘não há lugar à instrução de processo de inquérito ou processo disciplinar’.» [Público online]
                                    Tudo bem, portanto. E assim fica aquela gente a saber que pode agir impunemente. Que o poder político a protege e compreende. Afinal, atemorizar cidadãos não é, só por isso, crime previsto no código penal. Como o bicho-papão, o polícia mau faz parte do nosso imaginário colectivo e é conveniente que nele permaneça.

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