Arquivo de Categorias: Olhares

Eles, elas e os livros

O ovo estrelado

A poucas horas de fechar a campanha eleitoral para as eleições europeias, vale a pena conferir as respostas dos cabeças de lista dos principais partidos ao pedido feito pela revista LER para que indicassem os «dez livros obrigatórios» que irão levar para Bruxelas. Como seria de esperar, as respostas dizem muito sobre as pessoas, a sua dimensão cultural e a amplitude da sua abertura política. Sublinho as respostas de Vital Moreira e de Ilda Figueiredo, discrepantes mas produtos de uma mesma artesania que não brinca em serviço.

Vital Moreira (PS): Cinco monografias sobre a integração europeia e cinco sobre o Parlamento Europeu.

Paulo Rangel (PSD): Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar), A Castro (António Ferreira), Peregrinação Interior (António Alçada Baptista), O Processo (Franz Kafka), Jóia de Família (Agustina Bessa-Luís), A Imortalidade (Milan Kundera), Júlio César (William Shakespeare), A Montanha Mágica (Thomas Mann), Mensagem (Fernando Pessoa), De profundis, Valsa Lenta (José Cardoso Pires).

Ilda Figueiredo (CDU): Constituição da República Portuguesa, Outro Rumo: Nova Política ao Serviço do Povo e do País, A Arte e os Artistas do Vale do Côa (Luís Luís), O Livro Negro do Capitalismo, A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Internacional (M. Chossudovsky), Materialismo e subjectividade – Estudos em torno de Marx (José Barata Moura), Obras Escolhidas (Álvaro Cunhal), Subsídios para a História das Lutas e Movimentos das Mulheres em Portugal sob o Regime Fascista, O Caminho das Aves (José Casanova), A Viagem do elefante (José Saramago), A Terceira Mão (Manuel Gusmão), Triunfo do Amor Português (Mário Cláudio), Alentejo (Eugénio de Andrade).

Nuno Melo (CDS): Dicionário da Língua Portuguesa, A Espuma do Tempo (Adriano Moreira), O Império Maríimo Português (Charles Boxer), Actas das Sessões Secretas da Câmara dos Deputados e do Senado da República sobre a Participação de Portugal na I Grande Guerra (Ana Mira), O Doutor Arrowsmith (Sinclair Lewis), Amor nos Tempos de Cólera (Gabriel García Márquez), A Primeira Guerra Mundial (Martin Gilbert), Para Além do Capricórnio (Peter Trickett), Trafalgar (Roy Adkins), Estratégia, o Grande Debate (Sun Tzu/Clausewitz).

Miguel Portas (BE): Odisseia (Homero), Bíblia, O Rei Lear (Shakespeare), Memorial do Convento (José Saramago), As Benevolentes (Jonathan Littel), Breviário Mediterrânico (Predrag Matvejevitch), As «Quatro Eras» (A Era das Revoluções, A Era do Capital, A era dos Impérios, A era dos Extremos, de Eric Hobsbawm), Le Proche Orient Éclaté (Gerorges Corm), Comment le peuple juif fut inventé (Shlomo Sand), The superclass: the global power elite and the world they are making (David Rothkopf).

Gostaria muito de conhecer as escolhas da segunda linha de cada um dos partidos, mas ficará para outra oportunidade.

    Atualidade, Olhares

    Extrema-esquerda on the rocks

    Inuit Ataqatigiit

    A Gronelândia é uma ilha de elevado valor estratégico, com riquezas naturais imensas – jazidas de zinco, chumbo, ferro, ouro, platina e urânio, pelo menos – por debaixo de uma superfície gelada que derrete todos os dias, e como em mais lado algum, sob a pressão do aquecimento global do planeta. Apesar de escassamente povoado pelos seus 57.000 habitantes, dos quais 50.000 são inuit, e de um clima quase sempre rigoroso, completamente inóspito a norte, estima-se que em breve, com o recuo do gelo, as condições de habitabilidade aumentem consideravelmente. O que coloca no horizonte dos habitantes da ilha, agora a caminho da independência total da administração dinamarquesa, um futuro interessante.

    Entretanto, as eleições neste momento a decorrer devem levar ao poder o Inuit Ataqatigiit. Uma sondagem da Universidade de Nuuk, a capital da ilha, aponta para que o partido social-democrata, no poder há 30 anos, seja derrubado, ganhando claramente as eleições um movimento político que a generalidade dos observadores classifica como de extrema-esquerda. O emblema do partido, aliás, apenas enganará os mais distraídos. Vai pois ser interessante observar, num país sem classe operária ou campesinato, com elevadas potencialidades em termos de crescimento e a uma distância relativamente pequena do Canadá e dos EUA, a emergência de uma dinâmica assumidamente anticapitalista. Este século XXI está com alguma piada.

      Atualidade, Olhares

      Poderemos nós mudar?

      O Contabilista

      Depois de Portugal, Hoje: O Medo de Existir, editado em 2004, José Gil transformou-se, de certa forma, num «filósofo popular». Não que multidões de peregrinos tenham afluído às livrarias para comprar os seus livros ou obter a custo o precioso autógrafo. Nada disso. José Gil tornou-se conhecido fora do jardim da intelligentsia local porque deu algum destaque, naquele ensaio, a uma das características que os portugueses, num misto de autocomplacência e gozo, mais facilmente reconhecem em si próprios: a inveja como eixo da sociabilidade. Claro que a projecção não adveio de uma leitura aturada do texto – afinal, quantos marxistas leram Marx? quantos existencialistas se esqueceram de Sartre no porão? -, mas do eco propalado pelos média na precisa altura em que Santana Lopes, prestes a ser escorraçado do poder, chorava no ombro dos compatriotas a invídia que supostamente o vitimara.

      Pois agora Gil publicou um livro mais curto, embora não menos mordaz e interveniente. Em Busca da Identidade – O Desnorte, da Relógio d’Água, tem de facto todas as condições para ser amado ou odiado, uma vez que constitui um brilhante libelo contra o Portugal visto da soleira do actual governo. Um ataque em forma lançado contra o culto obsidente da sacrossanta avaliação, medida de uma modernização desumanizada e sem outro norte que não aquele que ela própria inventa. Realidade da qual as maiorias se queixam, e que as maiorias temem, sem por isso serem capazes de mudar o seu sentido de voto.

      Detecta-se, de início, uma imputação ao biénio revolucionário do 25 de Abril. Não ao período em si, mas às suas circunstâncias, sequência e desfecho, que rapidamente exauriram uma dimensão trágica ditada pela rua. Ela sim com capacidade regeneradora dos grandes vícios nacionais: a falta de confiança, a inércia, a autocomplacência, o queixume, a inveja. Ocorrendo porém, logo de seguida, um regresso ao estado de prostração herdado do salazarismo. O essencial do argumento passa então a centra-se nas vicissitudes da introjecção. Esta é olhada como uma ferramenta do conformismo, uma vez que situa uma integração neurótica de um mundo «engolido», mas sempre exterior, assente numa incapacidade congénita para traçar um caminho próprio. Um caminho não dependente de modas ou influências importadas, imune à psicose colectiva que se foi desenvolvendo.

      Sucede-se então o diagnóstico de um discurso da governação, o de agora, que injecta na sociedade portuguesa um veneno que a impede de seguir um caminho próprio: «é o discurso da via única; é o discurso anti-ideológico que pretende emanar da evidência do “real” das próprias coisas»; (…) é o discurso da competência e da redução da subjectividade a perfiz numéricos de competências.» Como é também «o discurso que nega a diferença entre esquerda e direita, considerando-a obsoleta.» Nesta viagem, «a governação socialista» oferece-nos então «o instrumento para transitar sem percalços da velha sociedade para o novo modo de viver: a avaliação». Esta «dará e medirá», de uma vez por todas, «o mérito e a recompensa.» Gil refere-se então ao caso exemplar da avaliação dos professores, ocupando com ela perto de um quarto do livro, e mencionando a dimensão panóptica – no sentido delineado por Foucault – do sistema instituído pelo Ministério da Educação. Considera-o pós-kafkiano e fortemente marcado por «uma espécie de delírio que atravessa quotidianamente os seus conceptores e decisores.»

      Claro que os alvos naturais deste ensaio – os actuais dirigentes socialistas em primeiro lugar, mas também muitos dos políticos partidários que sem sucesso os combatem noutras barricadas – dificilmente passarão da página 21, que é onde fecha a primeira parte do volume. Leitura difícil, indigesta e um pouco irritante para quem se dedica mais à sucessão de dossiês ou à leitura das gordas. Para quem segue na fila das prebendas. Impenetrável para os doentes crónicos do «chico-espertismo», observado por José Gil como «traço psicológico» de um certo padrão de arrivista nacional. E que pululam, agora como nunca, pelas áreas de decisão e seus interstícios.

      Leitura complementar: entrevista de José Gil ao Público

        Atualidade, Olhares

        Pela igualdade

        MPI

        Fui uma das cerca de 800 pessoas que subscreveram inicialmente o documento fundador do MPI – Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil. A apresentação pública do manifesto teve lugar neste domingo. Pode conhecê-lo e assiná-lo também aqui. Transcrevo o parágrafo final, aquele que define a meta mais essencial deste esforço.

        O acesso ao casamento civil por parte de casais do mesmo sexo, em condições de plena igualdade com os casais de sexo diferente, não trará apenas justiça, igualdade e dignidade às vidas de mulheres e de homens LGBT. Dignificará também a nossa democracia e cada um e cada uma de nós enquanto cidadãos e cidadãs solidários/as – e será um passo fundamental na luta contra a discriminação e em direcção à igualdade.

          Atualidade, História, Olhares, Opinião

          ABC das Palavras Obsoletas – 3

          Porreiro, pá

          Porreiro

          O «porreiro, pá!», acompanhado de um rijo aperto de mão, dirigido por um conhecido governante português a um dirigente europeu seu compatriota no final da conferência de imprensa na qual ambos anunciaram o acordo obtido na Cimeira Europeia de Lisboa de 2007, deu a volta ao país pela mão de comentadores, bloggers e políticos. Entre ambos, a expressão traduzia um código geracional destinado a sinalizar um pacto, contentamento, familiaridade. Para muitas pessoas, no entanto, representou uma maneira superficial, quase ofensiva, de abordar um assunto e uma decisão que não admitiam ligeireza de modos. O Bloco de Esquerda transformou mesmo a palavra em ferramenta da sua propaganda eleitoral, exaltando a nota negativa mas deslembrando que a palavra já quase se não usa fora dos espaços sociais provindos dos antigos circuitos estudantis e urbanos.

          De facto, «porreiro» já era. E era apenas para alguns, mais privilegiados. Era «bom, excelente», como era «simples, prestativo». «Gajo porreiro» era, «entre a malta», o sujeito camarada, boa rês, «cara legal» capaz de reagir com simpatia até quando alguém lhe assentava nas costas, à socapa, uma palmada das fortes. «Porreiro» era o tipo que não se importava que lhe cravassem cigarros atrás de cigarros – no tempo em que as pessoas normais fumavam – e jamais pedia de volta os cem paus que emprestara no mês passado. Era o sujeito sem manias, simples, pouco dado ao espectáculo, capaz de ouvir sem se impor aos outros. Uma espécie de Doutor Moreira ao contrário. Um José Mourinho às avessas. Já «miúda porreira» era aquela fixe, camarada mesmo, que se não esquecia dos nossos anos e nos dava metafísicos chocolates ou parzinhos de peúgas. Gente assim, «porreira» mesmo, ou efectivamente «porreta», capaz de dar uma mão na hora H, ainda existe, mas já poucos a identificam dessa forma. Só mesmo aqueles que ainda se servem do vocábulo «pá». Mas esse, pá, dará outra entrada deste ABC.

          PS – Dizem-me por mail que «porreiro» é também uma palavra usada no Brasil «para definir o cara que só vive de porre», podendo igualmente significar «pinguço, cachaceiro, pé de cana, garganta de alambique, etc.» O que não me parece contradizer aquilo que atrás ficou escrito.

            Etc., Olhares

            Foucault lido às avessas

            Classroom

            Os professores reduzidos à condição de robôs palermas ou indigentes mentais: «Não devem decorar as instruções ou interpretá-las, mas antes lê-las exactamente como lhes são apresentadas.» Os alunos tratados como soldados instruendos em sádicas sessões de ordem unida: «Agora vou distribuir as provas. Deixem as provas com as capas para baixo, até que eu diga que as voltem.» Ou então: «A primeira parte da prova termina quando encontrarem uma página onde está escrito PÁRA AQUI!» Fiz todos os meus exames do secundário na década de 1960 – incluindo neles as temidas provas de «admissão ao liceu» e de «aptidão à universidade», vigiadas por professores de porte austero e fato completo – e jamais observei tal obsessão com a rigorosa sequência dos rituais e o controlo dos corpos. Michel Foucault lido às avessas pelos seres andróides do Ministério da Educação. «Podem sair. Obrigado(a) pela vossa colaboração!» Ler para crer.

              Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

              Pyongyang também é aqui

              Coreia do Norte vs. USA

              A Coreia do Norte acaba de realizar «com sucesso» um novo teste nuclear. Contrariando a actual tendência para um desanuviamento internacional em larga escala neste campo, anuncia triunfalmente que outros se seguirão e proclama que tem todo o direito de o fazer. Para se justificar, a clique autocrática local ignora a nova realidade mundial e retoma o palavrório dos tempos de Guerra Fria, garantindo que «o ensaio vai contribuir para garantir a nossa soberania, o socialismo, a paz e a segurança». Justamente numa altura em que os desígnios da generalidade das potências nucleares apontam para uma nova era de desarmamento negociado. Vindo de quem vem, de um regime autista e despótico cujos responsáveis se comportam como uma trupe de actores de terceira interpretando uma associação de malfeitores dementes, o perigo torna-se real e atinge-nos a todos. Todavia, os consignatários locais de Kim Jong-il ao assunto dizem nada. E quando abrirem a boca, se por algum prodígio o vierem a fazer, será para declararem que a culpa é toda desse «Obama-igual-a-Bush» que carrega aos ombros o mal do mundo e precisam odiar. Ou para invocarem o exemplo de Israel. Sendo matéria muito grave de política internacional, convirá que os eleitores hesitantes conheçam este tipo de condescendência cúmplice quando forem votar a 7 de Junho.

                Atualidade, Olhares

                Carvalho no seu labirinto

                MVM

                Gostei muito, como quase toda a gente, dos policiais de Manuel Vásquez Montalbán. E ainda gosto, se bem que já não me arrebatem como antes as esconsas ruas barcelonesas do Barrio Chino, a descrição pormenorizada de uma boa ensaimada, as receitas dos complexos petiscos que o detective privado Pepe Carvalho, ex-comunista e ex-agente da CIA («Yo también tuve mis ideas, pero ahora sólo me quedan una cuantas vísceras en muy buen uso»), consubstancia enquanto resolve casos singulares e confabula banalidades únicas com a puta Charo ou o inseparável Biscuter. Li-o principalmente nas sucessivas traduções da Caminho – salvo o Asesinato en el Comité Central, que comprei em trânsito e devorei certa noite de insónia num quarto de hotel – e talvez por isso tenha sentido a tentação de o revisitar ao encontrar a maior parte das suas aventuras em versões electrónicas disponíveis em castelhano. Essa língua de arestas que, apesar de catalão e de esquerda, Montalbán sempre insistiu em usar.

                  Olhares

                  ABC das Palavras Obsoletas – 2

                  Estafermo

                  Já não há estafermos. Dos verdadeiros. Bonecos daqueles, feitos de ferro e madeira, que serviam na Idade Média para treino da cavalaria. Com os braços abertos, num deles uma arma – espada ou albarda, maça ou clava -, e no outro um escudo, simulavam, presos a um eixo vertical sobre o qual podiam girar, gestos repentinos de ataque e de defesa. Com os cavaleiros a procurarem acertar-lhes com a lança sem serem atingidos pelo pronto açoite. Mas estafermo foi também designação que servia para nomear a pessoa inútil ou incomodativa, sem mais serventia que não fosse a constrangida atrapalhação dos outros. Ou alguém pasmado, estático, que facilmente se deixava surpreender sem mostrar reacção. Do latim stare, estar, fermo, fime, claro. Pelo século XVII, no português e no castelhano, passou a aplicar-se também a uma pessoa particularmente malparecida e de aspecto desagradável, servindo muitas das vezes, em tempos nos quais mais facilmente se perdoava a insana deformidade dos homens que a ausência de gravidade que pudessem mostrar, para classificar mulheres particularmente feias, descuidadas, ou às quais as marcas da idade tivessem invalidado a já esquecida beleza. O gradual sumiço da palavra do léxico do quotidiano tem-nos tornado, por isso, um pouco menos cruéis.

                    Etc., Olhares

                    Cúmplices ou não

                    O silêncio

                    Isaiah Berlin escreveu certa vez que a diferença entre uma «pessoa civilizada» e um «bárbaro» – não vamos agora debater os conceitos de civilização e de barbárie – é que a primeira consegue bater-se por coisas nas quais não acredita inteiramente. É este um dos elementos nucleares da cultura democrática e ocidental (mas também universal), conquistado após séculos de combates e de incontáveis sacrifícios: o direito à opinião partilhada e dividida, a aceitação da dúvida e da diferença, a valorização do bem-estar e do princípio do prazer, a legitimidade de todas as formas de criação e de conhecimento, a naturalidade das quimeras, a vida como deriva. Distinto daqueles que nos querem fazer regredir aos tempos medievais, a certezas impostas pela força das armas, ao silenciamento de uma voz própria, à ameaça da forca ou do paredão, à servidão da ignorância, da mordaça ou da norma. Destes devemos defender-nos. Não apenas com belas palavras, mas com firmeza. Sem tocar os tambores da guerra mas combatendo sem preconceitos, enquanto construímos as pontes possíveis, na defesa do que a nossa velha casa comum tem de melhor. Desviando os olhos do umbigo e apoiando como raras vezes temos feito, de Norte a Sul, os heróis de carne e osso, mulheres e homens em risco, que no próprio coração das trevas contra elas se levantam todos os dias.

                      Atualidade, Democracia, Olhares

                      Vozes da rua

                      Vozes da rua

                      Um texto escrito em 2001 para a revista Periférica que talvez venha a propósito de acontecimentos recentes e de alguns dos medos que sentimos por estes dias. Quase tudo permanece.

                      Um dia chegaram notícias da violência. Ecos dos bandos que percorriam as grandes metrópoles. Dos gangs juvenis de Los Angeles ou Berlim, da forma como se moviam em áreas do Rio, Joanesburgo ou Lima. Mas isso era longe daqui, até onde nos levavam os telejornais, a literatura, uma ou outra viagem, mas nunca as portas das nossas casas. Soubemos depois que circulavam já no metro de Paris ou pelas ruas de Birmingham. Até que os vimos aqui. Percorrendo, de anoraques e calças largas de rapper, ou blusões de cabedal e botifarras, as ruas dos nossos bairros-dormitório. No preciso instante em que, após um dia de trabalho e doses brutais de reality shows, cidadãos aparentemente ordeiros dormiam debaixo dos cobertores, podíamos vê-los como sombras, correndo em fuga para a escuridão diante de polícias nervosos e das câmaras da televisão.

                      Hans Magnus Enzensberger observava em 1994, nas Perspectivas da Guerra Civil, a agressividade, aparentemente inexplicável, dos grupos que no coração das principais cidades dos países industrializados se preparavam para banalizar a violência. Os acontecimentos dos últimos anos deram sentido a esse temor, como o comprova o aumento do ruído das sirenes nocturnas, o pavor de circular por certas áreas, as grades de aço em lojas e residências, a proliferação de alarmes nos edifícios e nos carros, o inquietante negócio das empresas de segurança, as «milícias populares» que querem combater os intrusos servindo-se das mesmas armas.

                      (mais…)

                        Atualidade, Cidades, Democracia, Olhares

                        «Foleiros & doutores»

                        Já antes falei por aqui – e muitas vezes noutros lugares – do espectáculo lamentável em que se transformou, após a sua gradual «ressureição» na década de 1980, a vivência das praxes e de certos momentos das chamadas festas académicas. Não pelos elementos lúdicos e festivos que podem conter, aceitáveis apesar de tantas vezes discutíveis, mas pelos actos de violência que frequentemente comportam, pelos atentados à liberdade individual que certas vezes configuram, pelo conteúdos aviltantes, sexistas e mesmo boçais que quase sempre integram (embora uma boa parte dos eufóricos participantes, e até alguns dos seus orgulhosos paizinhos, não saibam sequer identificar para o que apontam tais adjectivos). Nas actuais condições, que reajustaram completamente o lugar social do estudante universitário, a tudo isto pode somar-se a ostentação de um «elitismo» anacrónico. Desta vez, para não me repetir, tinha escolhido não falar do assunto, mas uma crónica que Manuel António Pina acaba de publicar no Jornal de Notícias fez-me mudar de ideias. Como infelizmente os textos do JN depressa desaparecem da edição em linha, transcrevo-a numa página interior. Fica aqui.

                          Apontamentos, Atualidade, Olhares, Recortes

                          ABC das Palavras Obsoletas – 1

                          Palavras e frases em vias de extinção que pressagiam problemas de comunicação para quem insista em usá-las. Uma série sob a forma de serviço público para os mais distraídos.

                          Chapéus de cowboy

                          Brincar aos cowboys

                          Tirando os momentos de exasperação de alguns políticos locais e treinadores de futebol quando se esforçam por defender a sisudez avisada do seu trabalho – insistindo em que não andam «a brincar aos cowboys» – a expressão já quase não corre. «Brincar aos cowboys» é uma actividade inusual numa época em que a celebração ficcionada do passado parece limitar-se ao cinema, ao romance e aos jogos de computador. Os heróis americanos são agora menos importantes para a fundação das paisagens quiméricas das gerações mais novas, e, a existirem, habitam apenas cenários de fantasia povoados por monstros ou por seres com poderes especiais. As crianças já não se divertem com «índios e cowboys» porque eles não fazem parte do seu mundo.

                          Todavia, como herói favorito da literatura do Oeste americano construída na segunda metade do século XIX a partir do modelo do James Fenimore Cooper, o cowboy viveu uma época de ouro no imaginário da primeira metade do século passado. O sorriso de Gary Cooper, o olhar cortante de Clint Eastwood e a insolência de John Wayne, como as constantes peripécias da família Cartwright na série televisiva Bonanza, deram várias voltas ao mundo. A realidade histórica que fundara o personagem – marcada quase sempre pela dureza de uma vida de solidão, miséria e incerteza – foi dando lugar a uma imagem artificial, embelezada, desenhada sobre um horizonte atraente, que durante décadas se tornou sedutora para gerações de crianças e de jovens necessitados de uma utopia de aventura, individualismo e amizade. Uma incarnação do sonho americano que parecia integrar, na sua definição formal, essa dimensão, lúdica porque incerta, que as fazia «brincar aos cowboys» com pistola de fulminantes ou um arco artesanal. Projectando, sobre um árido mas exaltante panorama, a vida que não tinham e, isso elas não sabiam, que jamais teriam.

                          O mito permanece agora associado à tradição cultural promovida nos folhetos turísticos de algumas cidades da América, mas a sombra do chapéu desapareceu definitivamente das nossas ruas. Já ninguém quer «brincar aos cowboys» ou tem sequer saudades deles. Resta o frágil vestígio no falar desatento de uns quantos. Ou as velhas revistas que foram inventando os passos do incansável Texas Jack. Ou a voz country de Linda Ronstadt. Ou a imagem fugidia de Heath Ledger em Brokeback Mountain.

                            Etc., Olhares

                            A coragem

                            coragem

                            Não vivemos em guerra, pelo menos por enquanto, nesta parte do mundo que nos cabe habitar. E todavia precisamos de coragem para enfrentar um dia, depois o outro, num tempo em que o nosso futuro material se tornou imprevisível, quando os laços pessoais são cada vez mais instáveis, quando o horizonte ecológico se mostra mais sombrio, quando a História acelera e desafia a todo o instante as nossas capacidades de adaptação. Mas onde encontrar hoje modelos de coragem? Diferentemente do tempo no qual se destacavam as figuras modelares do herói ou do santo, agora não existe um, ou dois, mas sim inúmeros exemplos de coragem, medidos por diferentes bitolas. No limite, cada um de nós pode servir-se do que lhe parecer conveniente: Aquiles, o guerreiro homérico, ou o  ser «condenado a ser livre» de Sartre, o grande homem ou o homem comum, o sábio eminente ou o herói por um dia que vemos no telejornal. Aqui não há lugar para o relativismo: todos eles põem em campo, cada um à sua maneira, paciência e perseverança, acção e reflexão, conhecimento e ousadia. É da essência da coragem, dos seus novos padrões, e de algumas pessoas corajosas, que trata o último número, o 29, da revista francesa Philosophie Magazine. Para perceber um pouco melhor como eles mudaram e não mudaram ao mesmo tempo. [Este texto apropria-se parcialmente, reescrevendo-o, de um parágrafo da PM.]

                              Etc., Memória, Olhares

                              A Ponte

                              A ponte

                              Já faz parte da sabedoria popular: o melhor e o pior do regime democrático encontram-se associados à administração localizada dos recursos. Daí a «pulsão da regionalização» ser qualquer coisa que merece as maiores reservas, mesmo quando se reconhece a justeza de algumas das razões invocadas pelos seus mosqueteiros. A teia de cobrimentos e de encobrimentos é necessariamente maior à escala da freguesia, do concelho, da região, e as coisas pioram quando o assunto é dinheiro, influência ou responsabilização. Um bom exemplo disto é o que se passou em Coimbra com a construção da Ponte Europa. Rebaptizada Rainha Santa talvez para que alguém possa inocentar junto do Criador os pecados que lhe ficaram associados.

                              O escândalo é público, vem desde há muito e acabam de ser revelados mais dados altamente comprometedores para quem incentivou, geriu ou conviveu com a fraude e o despesismo faraónicos. De acordo com o Público, o Tribunal de Contas classifica agora a gestão do projecto – que calcula ter tido uma derrapagem de 137 por cento, o que significa mais 41 milhões de euros a somar aos quase 30 milhões estimados inicialmente – como «muito má». O Tribunal pormenoriza o desastre: «A obra apresentou um índice de desperdício elevado, resultante de erros e falhas graves na gestão e no controlo de que se destacam: o erro de lançar a obra em fase de anteprojecto, a falta de liderança e de capacidade técnica do dono da obra, a subversão dos princípios da contratação pública (concorrência, transparência e equidade, a nomeação tardia de um gestor de empreendimento, a fragilidade de actuação do dono da obra face ao empreiteiro e a ineficácia das acções da equipa de fiscalização por inércia do dono da obra». Conclui-se que «todas estas graves deficiências contribuíram para uma gestão e coordenação do empreendimento ineficazes que resultaram encargos adicionais avultadíssimos para o erário público».

                              Bem sei que a gestão do projecto foi de empresas cuja dimensão ultrapassava quase sempre os limites da cidade, e que o enorme caldeirão alimentou bocas de diferentes procedências, mas é impossível justificar aquilo que se passou sem a ocorrência de fortes cumplicidades, pelo menos por omissão, ao nível local. E sem o desencadear de pesados reflexos, passados e presentes, na vida dos cidadãos e até no prestígio da cidade. Ora, diante desta enormidade agora relembrada e publicamente redimensionada, o que informa a imprensa local, a quem também competiria manter viva e necessidade de apurar responsabilidades? Calcule-se que nada. As capas dos diários locais, tradicionalmente ocupadas apenas com «notícias positivas», efe-érre-ás, assaltos à mão armada ou desastres de viação, ignoram o documento do Tribunal de Contas. Existe gente de peso envolvida nisto, presumir-se-á com naturalidade, e o melhor é não levantar problemas. Afinal, se já tudo passou, os carros rodam sobre os tabuleiros e, contra as expectativas dos habituais maledicentes, a água do Mondego até continua a correr por debaixo da ponte, o que é que isso importa agora?

                                Atualidade, Cidades, Olhares

                                O jogo da mala

                                A mala

                                A forma quase unânime como os deputados aprovaram ontem as alterações à lei do financiamento dos partidos, permitindo um volume muito maior de dinheiro vivo a circular sem controlo, é qualquer coisa de inevitavelmente repulsivo aos olhos dos cidadãos sem telhados de vidro. Ou daqueles que se vêm coagidos, por vezes justificadamente, a severas medidas de fiscalização das transacções que envolvem o seu próprio dinheiro. Ou ainda daqueles que gerem instituições públicas com a corda na garganta. Mas até o Bloco de Esquerda – com a identidade política e a imagem pública vinculadas a um papel de «força de denúncia» – alinhou neste acordo. Um passo mais na descredibilização pública dos organismos partidários, crescentemente voltados para o seu próprio umbigo e olhados pelo cidadão comum como associações de interesses. O fiscalista J. L. Saldanha Sanches asseverou que voltamos assim «às malas cheias de notas, das quais uma parte chega aos partidos e outra fica com as pessoas que as recebem». Poderá não acontecer, mas da suspeita já ninguém se livra, o que será sempre um mau presságio para a qualidade da vida democrática. E também uma maneira de ampliar a desconfiança e a desmobilização.

                                Ler mais aqui

                                  Atualidade, Olhares

                                  Dois apontamentos sobre cartazes

                                  Propaganda

                                  1. Um passeio neste feriado fez-me passar diversas vezes pelos enormes cartazes de Vital Moreira e de Manuela Ferreira Leite com os quais os maiores partidos nacionais têm vindo a desfear as rotundas de vilas e cidades, não perdendo uma oportunidade para acabrunharem ainda mais os portugueses. Sem impacto político real ou aptidão para evocarem propostas. A frase «Nós, Europeus» colada ao candidato Moreira, por exemplo, é em 2009, no mínimo, um sinal patético de falta de imaginação e indigência política, reminiscência de um «A Europa Connosco» com mais de trinta anos. Os cartazes do PS e do PSD são péssimos, horríveis, representando de forma caricata ou soturna as figuras que nos pretendem propor, incapazes de transmitirem ao cidadão comum uma impressão de calor ou de proximidade. Chego depois a casa e observo imagens dos cartazes da Esquerda Verde, segunda classificada nas eleições que decorreram na Islândia. Percebo ali uma outra cultura política, um outro cuidado com uma abordagem visual, assumidamente estetizada e menos poluente, com capacidade simpática, das pessoas que andam pelas ruas e as observam.

                                  2. Desde o episódio do «porreiro, pá» entre Sócrates e Barroso que me incomoda o uso da frase casual, de alguma forma íntima e apenas revelada por um microfone inadvertidamente ligado, como instrumento de arremesso contra ambos. Independentemente das considerações que se podem fazer sobre as atitudes políticas de um e do outro, esse momento cristalizou, aos meus olhos – e provavelmente aos olhos de muitas pessoas – um grau de humanização e de informalização do relacionamento interpessoal que é uma conquista de Abril e que, na sua dimensão democrática, realmente me agrada. Sem exagero. Não posso, por isso, deixar de lamentar a utilização daquela frase pelo Bloco de Esquerda, em outdoors de pré-campanha, como arma de arremesso. E tenho a certeza de que a «mensagem» resulta absolutamente ineficaz, se não mesmo contraproducente em termos de comunicação pública. A construção de uma cidadania mais perfeita não passa, ou não deve passar, pelo achincalhamento pessoal de quem quer que seja. É feio e não vale.

                                    Apontamentos, Atualidade, Olhares

                                    Palavras públicas (sobre o Twitter)

                                    Notificador

                                    Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.

                                    Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.

                                    Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.

                                      Apontamentos, Cibercultura, Memória, Olhares, Opinião