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O fulgor da liberdade


© 2012 SkullHeart

É sempre possível encontrar esperança no desespero. Romper a partir da desventura o caminho para a sorte que se deseja. Em «La République du Silence», um artigo publicado em setembro de 1944 na resistente Les Lettres Françaises, Sartre escrevia: «Jamais fomos tão livres como debaixo da ocupação alemã». Para logo de seguida alegar em defesa dessa estranha ideia: «Perdemos todos os direitos, a começar pelo de falar; insultam-nos a cada dia e temos de conter-nos; deportam-nos em massa como trabalhadores, como judeus, como presos políticos; por todo o lado, nos muros, nos jornais, no ecrã, deparamos com a imagem imunda que os opressores querem que tenhamos de nós mesmos: mas é precisamente por isso que somos livres.» É quando se alcança o limite da humilhação e da desumanidade que se percebe como só das nossas mãos, libertas pela necessidade e pela opressão de toda a hipótese do medo, pode renascer o fulgor da liberdade.

    Apontamentos, Memória, Olhares

    Nos 200 anos de Dickens

    Oliver Twist segundo Roman Polanski

    Não foi Cristo, Marx ou sequer o Zorro. Esses foram importantes mas chegaram em alturas menos decisivas. Foi Charles Dickens quem, pela mão de Oliver Twist e numa edição pobre mas digna da Romano Torres, no momento certo fez de mim uma pessoa de esquerda.

      Apontamentos, Etc., Olhares

      Truffaut e nós

      F. Truffaut
      François Truffaut e o seu alter ego Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud)

      A entrada na adolescência de François Truffaut foi semelhante à do pequeno Antoine Doinel de Os 400 Golpes: sem um núcleo familiar estável, viu-se entregue a si próprio no mundo perturbado e hostil dos anos da Paris da Ocupação alemã e da Libertação, passando rapidamente da condição de bom aluno para a de um miúdo ansioso, fingido, ladrão e mentiroso. Expulso da escola aos 14 anos, segue a partir daí um destino de autodidata, refugiando-se por sua conta e risco na literatura e no cinema, e percorrendo um trajeto no qual o romanesco e o íntimo permaneceram unidos e como constantes. Foi este mundo intimamente penoso, de uma realidade imaginada a partir da consciência singular do narrador ou do personagem que não pretende ser exemplo de nada ou para alguém, que Truffaut foi construindo, com raras exceções, o seu modo próprio de filmar e de se aproximar dos espetadores encerrados na sala escura para lhe verem as artimanhas.

      Ao longo das décadas de 1960-1970 foram muitos – eu fui um deles, para que conste, apesar de já só ter podido ver os seus primeiros filmes em sessões de reprise num velho cinema de cadeiras desconjuntadas e a cheirar exageradamente a encerado – os que foram projetando as certezas e as dúvidas sobre o seu próprio amadurecimento através do crescimento atormentado e problemático do inconstante Doinel (desde o citado filme, estreado em 1959, até Amor em Fuga, de 1979, passando por Antoine e Colette, de 1962, Beijos Roubados, de 1968, e Domicílio Conjugal, de 1970). Ou aqueles, homens principalmente, que foram perscrutando no ecrã pela mão do eterno menino parisiense as suas próprias fantasias (Jules e Jim, 1962; O Homem que Gostava das Mulheres, 1977; A Mulher do Lado, 1981). Truffaut nasceu em 6 de fevereiro de 1932 e se não lhe tivesse acontecido o pior em 1984 faria hoje 80 anos. Ter-nos-ia dado muito jeito que por cá se tivesse podido manter.

        Artes, Cinema, Memória, Olhares

        Um tema difícil

        O tema é difícil. Principalmente para quem integrou e conserva nas suas quimeras úteis o ideal de uma pedagogia que capaz de privilegiar tanto o conhecimento das coisas e das ideias quanto a formação da capacidade crítica de pessoas livres. Um tema doloroso para quem jamais deixou de simpatizar com as propostas antiautoritárias de Paulo Freire e dos seus bons cúmplices. Como Agostinho da Silva, para quem «nada pode ser ensinado por imposição» e um professor «não é um capataz mas um auxiliar e um guia, cuja função é sugerir e não impor.» Difícil ainda para as convicções de quem pensa que a este princípio não pode ligar-se o seu inverso, que é o da subordinação do professor a lógicas que transtornaram os papéis de quem tem a missão de ensinar e de quem precisa aprender, convertendo a escola num local de conflito dentro do qual, demasiadas vezes, se gasta mais tempo a mediá-lo do que a fazer aquilo que realmente importa.

        É este, no entanto, o cenário sobre o qual se têm desenvolvido os dolorosos problemas «de disciplina» que afetam muitas escolas secundárias e que – aspeto ainda algo encoberto – chegaram já às universidades. Na verdade, e por isso usei as aspas ao falar de disciplina, trata-se sobretudo de problemas de ausência de autoridade. Não no sentido da imposição violenta da vontade de alguém, ou de um regime educativo tirânico, mas da defesa das condições de trabalho de quem, professores e alunos, vive em comum para ensinar e para aprender. Por isso não posso se não discordar da posição dos que defendem serem os dispositivos legais que podem reforçar a autoridade do professor «uma resposta ilusória», como acaba de declarar uma deputada do Bloco, ou que esta se obtém basicamente «por reconhecimento social», como sugeriu um deputado do PCP. É que foi justamente esta posição, dominante durante décadas, que desarmou os professores e os transformou em alvos fáceis, retirando-lhes instrumentos necessários para poderem exercer de forma digna, livre e democrática a sua missão. O tema deveria, por isso, ter um peso importante na agenda dos partidos da esquerda e dos sindicatos do setor. E não ficar nas mãos da direita.

          Atualidade, Ensino, Olhares, Opinião

          Duarte Belo / Páginas Tantas

          Esta segunda-feira, dia 6 de fevereiro, pelas 18H30, decorre a segunda sessão do programa Páginas Tantas, organizado em Coimbra pelo TAGV – Teatro Académico de Gil Vicente e pelo Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Nele se irá falando de livros e de literatura, das artes e dos artistas, e de outras coisas úteis. Em cada sessão estará presente um/a convidado/a que irá conversar com o público sobre o seu trabalho. Desta vez será Duarte Belo (Lisboa, 1968), autor de extensa e importante obra na fotografia portuguesa contemporânea. Esta centra-se principalmente no levantamento fotográfico da paisagem e das formas de ocupação do território, sendo de destacar as obras Portugal — O Sabor da Terra (1997) e Portugal Património (2007-2008). Este trabalho deu origem a um arquivo fotográfico pessoal de mais de novecentas mil fotografias.A partir do dia 6 o TAGV terá em exposição trabalhos do autor. Mais informações no blogue do programa.

            Fotografia, Novidades, Olhares

            Wislawa Szymborska

            Wislawa Szymborska

            Hoje cedo, de manhãzinha, morreu Wislawa Szymborska (1923-2012). Na sua casa de Cracóvia, tranquila, enquanto dormia, se querem saber. Mas isso agora já pouco importa.

            Herdamos a esperança –
            o dom de esquecer.
            E tu verás como damos
            à luz no meio de ruínas.
            (de «Uma expedição não realizada aos Himalaias»)

              Olhares, Poesia

              Nós, os outros

              «Je pourrais être votre grand-mère», «Eu poderia ser a vossa avó», é o título de uma curta-metragem de Joël Catherin – nesta fotografia com Ioana Geonea, imigrante romena em Paris ali no seu próprio papel – sobre o universo humano dos sem-abrigo. Um filme arrebatador, que tem ganho diversos prémios, sobre a capacidade que temos para ignorar os outros e, de repente, de nos surpreendermos com a sua existência e a sua proximidade connosco. O cartaz rabiscado da fotografia insinua – «toi» convertido em «toit», «ti» em «teto» – o primeiro verso de um conhecido poema de Louis Aragon publicado em Le romain inachevé e que um certo dia Jean Ferrat interpretou.

              O filme completo pode ser visto no no. 2 de Rue89 avec les doigts, uma aplicação gratuita para iPad.

                Apontamentos, Democracia, Olhares

                Primavera dos Povos (o regresso)

                Barricadas em Paris (1848)

                Quanto mais o tempo passa e os acontecimentos se sucedem em catadupa sem o vislumbre de uma solução, mais se confirma uma certeza: não existe, para a Europa, alternativa aos demónios do nacionalismo que não passe por um forte esforço federalista, por muito que se encontrem em aberto as modalidades que este possa tomar. Como escreveu o medievalista californiano Patrick J. Geary no excelente O Mito das Nações (editado pela Gradiva), «os europeus têm de reconhecer a diferença entre o passado e o presente se quiserem construir um futuro». Isto é, têm de saber que a preservação a todo o custo dos velhos modelos da identidade nacional os pode empurrar para o abismo. Ou então a lutarem entre si até que o mais forte seja capaz de estabelecer uma nova ordem em seu benefício. O «perigo alemão» está a tornar-se real e não será o restabelecimento das fronteiras vigiadas ou uma nova guerra (fria, morna ou quente) que o impedirão de afirmar-se. Será antes, todos temos de perceber isso e mobilizar vontades para o conseguir, a construção de uma Europa federada, paritária, solidária e realmente democrática. Conseguida pelo erguer vigoroso das consciências e das vontades, no irromper, agora necessariamente concertado, de uma nova «primavera dos povos». Parece a sua consideração um vestígio dos ideais de 1848? Pois parece. E daí? O tempo é outro, existem novos e pesados condicionalismos, o passado não pode comandar o que está para vir, mas os contornos essenciais da nuvem ameaçadora – governos autocráticos, crises económicas, perda dos direitos das classes médias, desemprego crescente, leis do trabalho insidiosas, agressividade dos nacionalismos – têm um desenho muito parecido com o daqueles anos tumultuosos. E requerem medidas rápidas. Em 48 foi o próprio Alexis de Tocqueville que lançou na Câmara dos Deputados de Paris: «Nós dormimos sobre um vulcão… Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez?»

                  História, Olhares, Opinião

                  Está caladinho

                  o conformista
                  Jean-Louis Trintignant em «Il Conformista», de Bernardo Bertolucci (1970)

                  Da crónica de hoje, a última de Pedro Rosa Mendes para a última semana de «Este Tempo», o programa da Antena 1 que a administração da RDP entendeu fazer calar por conter vozes incómodas, deixo um fragmento que pode servir-nos para aferir do estado cataléptico em que a nossa democracia se encontra. Do qual este episódio é apenas mais um sinal. Um panorama demasiado assustador? Talvez o seja. Mas os mais velhos ensinaram-nos que não há como sustos e adversidades para aprender a crescer e a rasgar caminhos. Aqui ficam então, também para que se não diluam rapidamente no éter, as palavras de Rosa Mendes que sublinhei.

                  «Quatro décadas de democracia produziram, afinal, uma sociedade asfixiada por valores do silêncio, da cobardia, do bajulamento e dessa gangrena da nossa pátria que é a inveja social. Por junto, uma cultura mesquinha em que quase sempre não há ninguém que diga aquilo que todos sabem, mas que todos devem calar. Uma terra onde, finalmente, se instalou o medo e uma noção puramente alimentar da dignidade individual. Traduza-se: está caladinho, para guardares o trabalhinho.»

                    Atualidade, Democracia, Olhares, Recortes

                    O lugar da cobardia

                    A frase «dos fracos não reza a História» assinala a infâmia daqueles que não enfrentam as dificuldades ou se vergam diante do mais forte. Sublinha a vileza sem remissão de toda a cobardia. Estigmatiza sem piedade a sua lembrança. O seu uso supõe no entanto uma condição: a de que se observe o tempo como tribunal e como teatro diante do qual cada um é julgado pela forma como representou o seu papel. Com a crescente depreciação da História enquanto espaço para um julgamento equitativo da experiência, com a sobrevalorização do imediato e do valor de mercadoria, a expressão parece hoje deixar de fazer sentido. A valorização da cobardia e da apatia diante da força não é nova, mas estava antes confinada aos oportunistas, aos agiotas, aos tiranos e aos tolos. Agora parece por vezes transformar-se em bússola do bom cidadão, exilando-se quem pensa no longo prazo, ou defende a necessidade da resistência diante da injustiça, para o campo minado da irrelevância ou mesmo do crime. No entanto tudo isto obedece a ciclos, a etapas em rápida corrente e contracorrente, e inevitavelmente será a própria História a tratar do assunto pela medida seletiva de sempre. Em nome da coragem e do futuro, é sempre bom sabê-lo. Ou pelo menos acreditar nessa possibilidade.

                      Atualidade, História, Olhares

                      Guimarães 2012

                      Foi fácil encontrar a melhor maneira de abrir este parágrafo. Começa assim: Eu gosto muito de Guimarães, já quase lá vivi, e as memórias que guardei são em geral boas ou muito boas. Também por lá passei fome quando andei clandestino, mas isso foi há tanto tempo que agora parece lenda ou episódio de romance. Gosto de alguns dos seus naturais e de os ouvir abrir as vogais, acho bonita uma boa parte da cidade e em Janeiro costuma fazer por ali um friozinho matinal que gela os pés e desperta a alma. Não partilho, não só por isso mas também por isso, da maledicência congénita de quem da empresa da Capital Europeia da Cultura apenas declara ou espera o pior. Como não aceito o bairrismo incontinente de quem descobre agora uma energia esquecida de propósito para poder ser revelada. Qualquer um sabe que a grande parte daquilo que está feito ou do que vai acontecer não saiu de um tesouro esquecido nas fundações de um velho edifício. É esforço comum, aberto quando ainda todos ingenuamente nos julgávamos escandinavos. O que não representará um mal, antes pelo contrário, se, no fim de tudo, quando os holofotes se apagarem, quando as ruas forem limpas e as secretárias esvaziadas, sobrar obra feita e pessoas e coletivos e a cidade e o seu termo ficarem a mexer. O que significará a ler, escrever, pintar, dançar, tocar. A expor, fazer teatro, ver cinema, debater este mundo e criar o outro. A fazer o sete, ou trinta por uma linha, sem precisar de um valente empurrão. Mas por enquanto ainda estamos de esperanças. Oxalá então tudo corra pelo melhor. Cá estaremos para aplaudir ou pedir contas.

                        Apontamentos, Cidades, Memória, Olhares

                        Perfilados de Medo

                        [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=OzwdYxxhwPc[/youtube]

                        Sobre uma fotografia de sentido expressivo petrificante, tirada ontem durante a cerimónia oficial de abertura do Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, e uma troca de comentários no Facebook a respeito da mesma (e apenas dela, não do evento), recupero uma canção de José Mário Branco com cerca de quarenta anos composta sobre um soneto de Alexandre O’Neill com mais de cinquenta.

                        Perfilados de medo, agradecemos
                        o medo que nos salva da loucura.
                        Decisão e coragem valem menos
                        e a vida sem viver é mais segura.

                        Aventureiros já sem aventura,
                        perfilados de medo combatemos
                        irónicos fantasmas à procura
                        do que não fomos, do que não seremos.

                        Perfilados de medo, sem mais voz,
                        o coração nos dentes oprimido,
                        os loucos, os fantasmas somos nós.

                        Rebanho pelo medo perseguido,
                        já vivemos tão juntos e tão sós
                        que da vida perdemos o sentido…

                          Apontamentos, Música, Olhares, Poesia

                          A repulsa

                          dois

                          Para Orwell, «não existe sentimento de simpatia e antipatia tão essencial quanto um sentimento físico». Superamos mais facilmente as divergências de opinião, os confrontos de ordem moral, a distinção da língua ou da pele, a diferença de estatuto – até mesmo, para muitos, os vínculos mais fundamentais da fé – do que aquela distância, invisível mas rígida, incerta mas intransponível, que é imposta pela repulsa física. O olhar que se desvia repentinamente, o odor estranho que logo afasta, o toque ou a voz que apenas incomodam, provocam a exclusão imediata e quase sempre definitiva. A química do ódio – como a do erotismo ou a do amor, também elas súbitas – jamais será explicada pelos tratados de ciência certa ou pelo a-bê-cê da luta de classes. Nunca será considerada nos manuais de civilidade ou nas páginas do código penal. Mas persiste para nos separar sem remissão.

                            Apontamentos, Etc., Olhares

                            A laranja e a luta de classes

                            É provável que muitos portugueses, mais preocupados com a aparente traição de Irina Shayk ao namorado Cristiano ou com as desculpas esfarrapadas do capitão do navio italiano que se deixou naufragar, não tenham ainda tomado consciência das alterações consumadas hoje nas leis do trabalho. E que demorem até a compreender verdadeiramente a situação agora criada. Mas estas mudanças configuram a primeira alteração radical da orientação seguida desde os anos de 1974-1975 e modificam de maneira profunda as relações entre patrão e empregado com as quais nos habituámos a conviver ao longo de tantos anos. Junte-se a isto, como lembra José C. Nogueira a título de exemplo do que vai acontecer, que mesmo a pequena parte que conheceu as relações pré-Revolução nunca viu uma indemnização por despedimento tão baixa como a que entra agora em vigor para os novos contratos de trabalho. Este é, sem dúvida, o momento decisivo da Contra-Revolução, aquele pelo qual, desde há perto de quarenta anos, gerações de empresários de vistas curtas e de políticos de uma direita débil, cobarde e envergonhada tanto esperaram, conseguindo agora o que sempre quiseram, e de mão-beijada, por intervenção da crise financeira, dos mandatários do capitalismo internacional e, que fique para a História, da iniciativa da atual geração de dirigentes do PSD (já que o CDS segue a bordo por circunstâncias particulares e apenas ajuda à festa). (mais…)

                              Atualidade, Olhares, Opinião

                              Independência

                              Uma das virtudes de ser politicamente independente, embora comprometido com a vida na cidade, está em podermos muitas vezes servir-nos de impressões, de imprecisões, de incómodos, ao lado do que conhecemos através da experiência e da reflexão, para definir e projetar os nossos juízos. Sem preocupações de maior com aquilo que pode pensar o vulgar cidadão eleitor, com a aferição das ideias que expomos pela medida de um programa escrito, com o consenso obrigatório e razoável que os nossos argumentos construam, ou, em última análise, com a conformidade que separa rigorosamente, a partir de um risco no chão, o bem do mal e o que pode ser dito daquilo que deve calar-se. Nestas condições, a nossa própria noção de liberdade, associada à autonomia do pensamento, da palavra e da ação, representa o único limite. Mesmo quando lhe associamos, como já os filósofos da existência ancorados na rive gauche do Sena recordavam, uma medida de responsabilidade social que compatibiliza as nossas escolhas com os imperativos que vamos partilhando. Ou quando temos a consciência, à medida de Guy Debord, de que as escolhas, todas as escolhas, são desde o princípio determinadas pelos outros. Mas até nestas condições serão sempre nossos, essencialmente nossos, a última palavra e o gesto definitivo. Dizer ou calar, fazer ou não fazer.

                                Apontamentos, Olhares

                                Naufrágio

                                Sei que o drama vivido pelos naufragados não aconselha a brincadeira e que a minha formação básica de livre-pensador (não confundir com a do pedreiro-livre), de racionalista crítico e de pragmático materialista me impede de aceitar influências chegadas do domínio do sobrenatural, mas é preciso reconhecer a devida importância ao facto de na cerimónia de batismo do Costa Concordia a garrafa de champanhe não se ter quebrado. Quando assim acontece, diz a crença que o navio não terá grande sorte. Ao mesmo tempo, em Film Socialisme, de Jean-Luc Godard, numa grande parte rodado a bordo do Costa, falava-se metaforicamente do fim do capitalismo e desta Europa política que se afunda agora perante os nossos indefesos olhos. Uma óbvia premonição. O desastre marítimo ao largo do arquipélago Toscano representa assim um golpe duplo nas certezas de quem não acredita em bruxas.

                                  Apontamentos, Artes, Cinema, Olhares