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Primavera dos Povos (o regresso)

Barricadas em Paris (1848)

Quanto mais o tempo passa e os acontecimentos se sucedem em catadupa sem o vislumbre de uma solução, mais se confirma uma certeza: não existe, para a Europa, alternativa aos demónios do nacionalismo que não passe por um forte esforço federalista, por muito que se encontrem em aberto as modalidades que este possa tomar. Como escreveu o medievalista californiano Patrick J. Geary no excelente O Mito das Nações (editado pela Gradiva), «os europeus têm de reconhecer a diferença entre o passado e o presente se quiserem construir um futuro». Isto é, têm de saber que a preservação a todo o custo dos velhos modelos da identidade nacional os pode empurrar para o abismo. Ou então a lutarem entre si até que o mais forte seja capaz de estabelecer uma nova ordem em seu benefício. O «perigo alemão» está a tornar-se real e não será o restabelecimento das fronteiras vigiadas ou uma nova guerra (fria, morna ou quente) que o impedirão de afirmar-se. Será antes, todos temos de perceber isso e mobilizar vontades para o conseguir, a construção de uma Europa federada, paritária, solidária e realmente democrática. Conseguida pelo erguer vigoroso das consciências e das vontades, no irromper, agora necessariamente concertado, de uma nova «primavera dos povos». Parece a sua consideração um vestígio dos ideais de 1848? Pois parece. E daí? O tempo é outro, existem novos e pesados condicionalismos, o passado não pode comandar o que está para vir, mas os contornos essenciais da nuvem ameaçadora – governos autocráticos, crises económicas, perda dos direitos das classes médias, desemprego crescente, leis do trabalho insidiosas, agressividade dos nacionalismos – têm um desenho muito parecido com o daqueles anos tumultuosos. E requerem medidas rápidas. Em 48 foi o próprio Alexis de Tocqueville que lançou na Câmara dos Deputados de Paris: «Nós dormimos sobre um vulcão… Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez?»

    História, Olhares, Opinião

    Está caladinho

    o conformista
    Jean-Louis Trintignant em «Il Conformista», de Bernardo Bertolucci (1970)

    Da crónica de hoje, a última de Pedro Rosa Mendes para a última semana de «Este Tempo», o programa da Antena 1 que a administração da RDP entendeu fazer calar por conter vozes incómodas, deixo um fragmento que pode servir-nos para aferir do estado cataléptico em que a nossa democracia se encontra. Do qual este episódio é apenas mais um sinal. Um panorama demasiado assustador? Talvez o seja. Mas os mais velhos ensinaram-nos que não há como sustos e adversidades para aprender a crescer e a rasgar caminhos. Aqui ficam então, também para que se não diluam rapidamente no éter, as palavras de Rosa Mendes que sublinhei.

    «Quatro décadas de democracia produziram, afinal, uma sociedade asfixiada por valores do silêncio, da cobardia, do bajulamento e dessa gangrena da nossa pátria que é a inveja social. Por junto, uma cultura mesquinha em que quase sempre não há ninguém que diga aquilo que todos sabem, mas que todos devem calar. Uma terra onde, finalmente, se instalou o medo e uma noção puramente alimentar da dignidade individual. Traduza-se: está caladinho, para guardares o trabalhinho.»

      Atualidade, Democracia, Olhares, Recortes

      O lugar da cobardia

      A frase «dos fracos não reza a História» assinala a infâmia daqueles que não enfrentam as dificuldades ou se vergam diante do mais forte. Sublinha a vileza sem remissão de toda a cobardia. Estigmatiza sem piedade a sua lembrança. O seu uso supõe no entanto uma condição: a de que se observe o tempo como tribunal e como teatro diante do qual cada um é julgado pela forma como representou o seu papel. Com a crescente depreciação da História enquanto espaço para um julgamento equitativo da experiência, com a sobrevalorização do imediato e do valor de mercadoria, a expressão parece hoje deixar de fazer sentido. A valorização da cobardia e da apatia diante da força não é nova, mas estava antes confinada aos oportunistas, aos agiotas, aos tiranos e aos tolos. Agora parece por vezes transformar-se em bússola do bom cidadão, exilando-se quem pensa no longo prazo, ou defende a necessidade da resistência diante da injustiça, para o campo minado da irrelevância ou mesmo do crime. No entanto tudo isto obedece a ciclos, a etapas em rápida corrente e contracorrente, e inevitavelmente será a própria História a tratar do assunto pela medida seletiva de sempre. Em nome da coragem e do futuro, é sempre bom sabê-lo. Ou pelo menos acreditar nessa possibilidade.

        Atualidade, História, Olhares

        Guimarães 2012

        Foi fácil encontrar a melhor maneira de abrir este parágrafo. Começa assim: Eu gosto muito de Guimarães, já quase lá vivi, e as memórias que guardei são em geral boas ou muito boas. Também por lá passei fome quando andei clandestino, mas isso foi há tanto tempo que agora parece lenda ou episódio de romance. Gosto de alguns dos seus naturais e de os ouvir abrir as vogais, acho bonita uma boa parte da cidade e em Janeiro costuma fazer por ali um friozinho matinal que gela os pés e desperta a alma. Não partilho, não só por isso mas também por isso, da maledicência congénita de quem da empresa da Capital Europeia da Cultura apenas declara ou espera o pior. Como não aceito o bairrismo incontinente de quem descobre agora uma energia esquecida de propósito para poder ser revelada. Qualquer um sabe que a grande parte daquilo que está feito ou do que vai acontecer não saiu de um tesouro esquecido nas fundações de um velho edifício. É esforço comum, aberto quando ainda todos ingenuamente nos julgávamos escandinavos. O que não representará um mal, antes pelo contrário, se, no fim de tudo, quando os holofotes se apagarem, quando as ruas forem limpas e as secretárias esvaziadas, sobrar obra feita e pessoas e coletivos e a cidade e o seu termo ficarem a mexer. O que significará a ler, escrever, pintar, dançar, tocar. A expor, fazer teatro, ver cinema, debater este mundo e criar o outro. A fazer o sete, ou trinta por uma linha, sem precisar de um valente empurrão. Mas por enquanto ainda estamos de esperanças. Oxalá então tudo corra pelo melhor. Cá estaremos para aplaudir ou pedir contas.

          Apontamentos, Cidades, Memória, Olhares

          Perfilados de Medo

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          Sobre uma fotografia de sentido expressivo petrificante, tirada ontem durante a cerimónia oficial de abertura do Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, e uma troca de comentários no Facebook a respeito da mesma (e apenas dela, não do evento), recupero uma canção de José Mário Branco com cerca de quarenta anos composta sobre um soneto de Alexandre O’Neill com mais de cinquenta.

          Perfilados de medo, agradecemos
          o medo que nos salva da loucura.
          Decisão e coragem valem menos
          e a vida sem viver é mais segura.

          Aventureiros já sem aventura,
          perfilados de medo combatemos
          irónicos fantasmas à procura
          do que não fomos, do que não seremos.

          Perfilados de medo, sem mais voz,
          o coração nos dentes oprimido,
          os loucos, os fantasmas somos nós.

          Rebanho pelo medo perseguido,
          já vivemos tão juntos e tão sós
          que da vida perdemos o sentido…

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            A repulsa

            dois

            Para Orwell, «não existe sentimento de simpatia e antipatia tão essencial quanto um sentimento físico». Superamos mais facilmente as divergências de opinião, os confrontos de ordem moral, a distinção da língua ou da pele, a diferença de estatuto – até mesmo, para muitos, os vínculos mais fundamentais da fé – do que aquela distância, invisível mas rígida, incerta mas intransponível, que é imposta pela repulsa física. O olhar que se desvia repentinamente, o odor estranho que logo afasta, o toque ou a voz que apenas incomodam, provocam a exclusão imediata e quase sempre definitiva. A química do ódio – como a do erotismo ou a do amor, também elas súbitas – jamais será explicada pelos tratados de ciência certa ou pelo a-bê-cê da luta de classes. Nunca será considerada nos manuais de civilidade ou nas páginas do código penal. Mas persiste para nos separar sem remissão.

              Apontamentos, Etc., Olhares

              A laranja e a luta de classes

              É provável que muitos portugueses, mais preocupados com a aparente traição de Irina Shayk ao namorado Cristiano ou com as desculpas esfarrapadas do capitão do navio italiano que se deixou naufragar, não tenham ainda tomado consciência das alterações consumadas hoje nas leis do trabalho. E que demorem até a compreender verdadeiramente a situação agora criada. Mas estas mudanças configuram a primeira alteração radical da orientação seguida desde os anos de 1974-1975 e modificam de maneira profunda as relações entre patrão e empregado com as quais nos habituámos a conviver ao longo de tantos anos. Junte-se a isto, como lembra José C. Nogueira a título de exemplo do que vai acontecer, que mesmo a pequena parte que conheceu as relações pré-Revolução nunca viu uma indemnização por despedimento tão baixa como a que entra agora em vigor para os novos contratos de trabalho. Este é, sem dúvida, o momento decisivo da Contra-Revolução, aquele pelo qual, desde há perto de quarenta anos, gerações de empresários de vistas curtas e de políticos de uma direita débil, cobarde e envergonhada tanto esperaram, conseguindo agora o que sempre quiseram, e de mão-beijada, por intervenção da crise financeira, dos mandatários do capitalismo internacional e, que fique para a História, da iniciativa da atual geração de dirigentes do PSD (já que o CDS segue a bordo por circunstâncias particulares e apenas ajuda à festa). (mais…)

                Atualidade, Olhares, Opinião

                Independência

                Uma das virtudes de ser politicamente independente, embora comprometido com a vida na cidade, está em podermos muitas vezes servir-nos de impressões, de imprecisões, de incómodos, ao lado do que conhecemos através da experiência e da reflexão, para definir e projetar os nossos juízos. Sem preocupações de maior com aquilo que pode pensar o vulgar cidadão eleitor, com a aferição das ideias que expomos pela medida de um programa escrito, com o consenso obrigatório e razoável que os nossos argumentos construam, ou, em última análise, com a conformidade que separa rigorosamente, a partir de um risco no chão, o bem do mal e o que pode ser dito daquilo que deve calar-se. Nestas condições, a nossa própria noção de liberdade, associada à autonomia do pensamento, da palavra e da ação, representa o único limite. Mesmo quando lhe associamos, como já os filósofos da existência ancorados na rive gauche do Sena recordavam, uma medida de responsabilidade social que compatibiliza as nossas escolhas com os imperativos que vamos partilhando. Ou quando temos a consciência, à medida de Guy Debord, de que as escolhas, todas as escolhas, são desde o princípio determinadas pelos outros. Mas até nestas condições serão sempre nossos, essencialmente nossos, a última palavra e o gesto definitivo. Dizer ou calar, fazer ou não fazer.

                  Apontamentos, Olhares

                  Naufrágio

                  Sei que o drama vivido pelos naufragados não aconselha a brincadeira e que a minha formação básica de livre-pensador (não confundir com a do pedreiro-livre), de racionalista crítico e de pragmático materialista me impede de aceitar influências chegadas do domínio do sobrenatural, mas é preciso reconhecer a devida importância ao facto de na cerimónia de batismo do Costa Concordia a garrafa de champanhe não se ter quebrado. Quando assim acontece, diz a crença que o navio não terá grande sorte. Ao mesmo tempo, em Film Socialisme, de Jean-Luc Godard, numa grande parte rodado a bordo do Costa, falava-se metaforicamente do fim do capitalismo e desta Europa política que se afunda agora perante os nossos indefesos olhos. Uma óbvia premonição. O desastre marítimo ao largo do arquipélago Toscano representa assim um golpe duplo nas certezas de quem não acredita em bruxas.

                    Apontamentos, Artes, Cinema, Olhares

                    Elizabeth e Hazel

                    Se existe atitude pela qual tenho um afeto particular, é ela a capacidade de regeneração que certas pessoas conseguem aplicar ao seu aparente destino, assumindo mudanças de atitude, de crença e de sensibilidade que contrariam as imposições do meio, a tradição familiar, os códigos impostos no ambiente de trabalho, o quadro político que um dia adotaram, os padrões que julgaram inquestionáveis. Talvez mesmo o código genético que sentem na boca mas que se esforçam por contrariar. Esta é no entanto uma escolha difícil e geralmente mal entendida, apesar do aforismo segundo o qual «só os burros não mudam». A maioria das pessoas, é esta a verdade, arruma o seu mundo em gavetas e prateleiras, cola etiquetas identificadoras nos outros e em si própria, e reage mal a uma mudança profunda, que vê sempre como gesto de oportunismo, falha de personalidade ou sinal de uma patologia esquiva. Está comprovado que existem traços de sensibilidade e de feitio, princípios de ética, gestos de etiqueta, modalidades de gosto ou de desgosto, que geralmente se conservam inalteráveis, mesmo quando quem os detém muda de cara ou de quadrante. A frase, tantas vezes dita, «isso é mesmo dele», ou «é mesmo teu», traduz esse elo de continuidade que, como a pele e as sobrancelhas, transportamos ao longo da vida. Mas, para além desta permanência, existe sempre um mundo de possibilidades capaz de levar um homem ou uma mulher a mudar o seu destino. (mais…)

                      Apontamentos, Democracia, História, Olhares

                      Democracia e trivialização da maçonaria

                      Muito antes da atual polémica pública se instalar, ocorreu-me uma ou outra vez escrever sobre a maçonaria, os seus caminhos, atalhos, desvarios e remanescentes sinais da antiga e agora decaída grandeza. Ao longo dos anos 80 e 90, algum trabalho académico levou-me a encontros laterais mas regulares com a sua história muitas vezes heróica, algumas outras menos edificante, sempre rica em peripécias, escrita no curso dos últimos três séculos. Talvez por isso pudesse ter qualquer coisa de razoável a dizer sobre o assunto. Pareceu-me, no entanto, que muito do que poderia escrever iria acertar em pessoas concretas, algumas conhecidas e aos meus olhos inteiramente respeitáveis, que pertenciam honesta e convictamente à instituição maçónica. Além disso, vivia-se uma época na qual, para além dos cidadãos diretamente envolvidos, apenas os entusiastas das práticas esotéricas se interessavam pelo tema. Entendi por isso, pesando o interesse do caso, que a polémica na qual me iria meter não valeria o esforço. E dessa forma fui adiando o que tinha para dizer sobre esse mundo particular que passou agora, pelos piores motivos, para os grandes títulos da imprensa e dos telejornais. Mas não será ainda desta vez que o farei com detalhe, limitando-me a um curto apontamento.

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                        Atualidade, História, Olhares, Opinião

                        Nostalgia e utopia

                        Nostalgia

                        A Priberam acaba de divulgar os dados anuais de acesso ao seu dicionário de português online. A palavra mais procurada em 2011 foi «nostalgia», seguida por «amor», que tinha conseguido o primeiro lugar em 2010, mas cujas buscas foram diminuindo ao longo do último ano. Existe uma leitura simples, linear, desta tendência, que remete sem grandes hesitações para um interesse pelo passado observado, no atual contexto de recuo dos direitos sociais e das expetativas individuais, como uma «idade do ouro» tão quimérica quanto desejável. Mas podemos ir mais longe na observação do conceito. Recordei então um artigo escrito em 2007 e que tem um pouco a ver com isto tudo. Sendo um texto mais académico, encontra-se num registo diverso daquele adotado neste blogue. Transcrevo, por isso, apenas o primeiro parágrafo, remetendo depois para um link externo que leva ao artigo completo. Dada a altura em que foi concluído, não segue as normas do último acordo ortográfico.

                        A experiência contemporânea encerra uma sobrecarga da memória e um interesse pelo passado que adoptam a nostalgia como ferramenta da utopia. Percorremos os jornais e as colecções multimédia que oferecem, observamos a publicidade que apela a reminiscências identitárias, constatamos a atenção da crítica e a crescente popularidade dos filmes, romances, documentários e concursos que se cruzam com o fio da história. Reconhecemos também o revivalismo e as dinâmicas de celebração que integram a política cultural dos governos e das autarquias, ou se revelam em iniciativas públicas de diversas instituições. Ao mesmo tempo que o ensino da história recua nos currículos escolares e se reduz a banalidades, um interesse crescente pelo passado e pela sua carga simbólica emerge e expande-se aos nossos olhos, como via escolhida para a imaginação de uma vida-outra. [O artigo completo em formato pdf está aqui.]

                          História, Memória, Olhares

                          Upgrade da imaginação

                          A máquina de escrever de Nietzsche

                          De acordo com The Iron Whim: A Fragmented History of Typewriting, do canadiano Darren Wershler-Henry, Mark Twain e Friedrich Nietzsche serviram-se com alguma desenvoltura de máquinas de escrever. Daquelas primitivas, ruidosas, difíceis de manipular e cheirando a lubrificante. A verdade é que sempre imaginei qualquer deles a escrever servindo-se com afinco de delicadas penas de pato, o primeiro numa varanda ensolarada à beira do Mississipi, o alemão de Röcken sentado num calmo, soturno e silencioso gabinete, algures entre Sils Maria e Rapallo. Preciso por isso de recorrer a um upgrade parcial da imaginação.

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                            Islão e direitos humanos

                            Tariq RamadanNão conheço, a não ser por alusões laterais e três ou quatro leituras-relâmpago, o trabalho de Tariq Ramadan, o cidadão suíço, muçulmano praticante e professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos em Oxford, que é também visitante em instituições académicas do Qatar, de Marrocos e do Japão. Por isso, falar aqui sobre o seu trabalho académico parece-me imprudente e de evitar. Sei do lugar importante que desempenha no processo de compreensão de um islamismo ocidental, ou mais especificamente europeu, distinto daquele que, emergindo de forma mais direta da sua matriz histórica, é praticado, sob diferentes rostos, no Médio Oriente e em outras paragens mais a sul e a leste. Foi em parte esta atitude de autonomia cultural, associada à crítica dos regimes islâmicos ditatoriais, que fez com que, até há pouco tempo, fosse considerado heterodoxo e persona non grata em países como a Tunísia, o Egito, a Arábia Saudita, a Líbia e a Síria. Ramadan estará nesta quinta-feira, dia 5, em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, onde ao final da tarde proferirá uma conferência pública. (mais…)

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                              Don Juan e a presidência da França

                              Um número recente da série da Le Point sobre os «grandes mitos» é dedicado a Don Juan. Se seguirmos a definição do Houaiss, podemos considerá-lo a representação ou a súmula do «homem extremamente sedutor, conquistador, mulherengo». Do donjuanismo diz um dicionário popular ser «mania» de quem quer para si, como num ritual de posse, «fêmea após fêmea». Outras fontes associam a figura a uma personagem semilendária que «parece ter vivido em Sevilha», servindo a fantasia da sua existência de inspiração a autores que recorreram ao tipo do «conquistador brilhante, libertino e sem escrúpulos» ao qual as mulheres são incapazes de resistir. Se bem que depois, recorrentemente, como um dever, ele «as engane, despreze e rapidamente esqueça.»

                              Destaco dois artigos deste número da revista. No primeiro, Michel Delon, autor de um estudo recente com um título tão estimulante como Le Principe de délicatesse. Libertinage et mélancolie au XVIIIe siècle, contrapõe Don Juan a Casanova, o aventureiro italiano ao qual é frequentes vezes equiparado. A separação deve-se principalmente, para Delon, ao facto de Casanova arrebatar, por processos de sedução algo artificiais, o amor das mulheres, enquanto Don Juan o obtém naturalmente, pela sua própria maneira de ser. Um, o italiano, jogando sempre nos limites do cinismo, o outro, o espanhol, vivendo cada dia nas margens do absurdo. Num outro artigo, o sociólogo Michel Maffesoli define a figura do conquistador sevilhano como «arquetípica» de uma certa sede de viver o presente de forma total, permanente, que é muito característica do nosso próprio tempo. Aplicado na exaltação da paixão, vivendo cada relação numa espécie de estatuto de inocência, incapaz de considerar experiências anteriores, é, sob essa perspetiva, uma figura extremamente contemporânea. (mais…)

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                                O chalet de Judt

                                Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências. (mais…)

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                                  Natal tramado, porém Natal

                                  Natal 2011

                                  Tenho amigos que quando se aproxima o Natal procuram agir como se ele não existisse. Retiram-lhe a maiúscula, desejam apenas «festas felizes», ou adiantam os votos de «bom ano», deixando às vezes cair um levemente irónico «cuidado com os doces!». Mas do Natal como festa procuram não falar, talvez para se distanciarem dos rituais da Igreja da qual um dia se afastaram. Ou por transportarem um sentimento de culpa pela sua condição de atávicos herdeiros da matriz judaico-cristã. Ou ainda porque a festa natalícia lhes recorda enfadonhas reuniões de família nas quais os ressentimentos do ano impunham longas horas de hipocrisia coletiva. Poderá até ter ocorrido no seu passado uma mal sucedida relação com o Pai Natal e as suas renas. Mas Natal é Natal, o dia escolhido pelos seguidores de Cristo para simbolizar uma ideia de fraternidade e de modéstia que é mais humana do que divina. No que me toca, sendo agnóstico – e até os ateus são agnósticos – continuo a comemorá-lo como um dia especial, acompanhado de peru e vinho tinto, bolo-rei e rabanadas, prendas e efeitos de luz, mas também pela esperança, como acontece desde que, na infância, fugia da mesa da consoada e ia olhar para o céu na procura ingénua de um movimento diferente dos astros. Assim continuará, aliás, a acontecer, ainda que num eventual caso de proibição governamental tenha de praticar a desobediência cívica. Manter-se-á uma altura do ano, talvez um pouco dolorosa por causa dos que faltam, no qual penso um pouco mais nos outros. Principalmente nos que passam frio e fome, ou são silenciados e perseguidos, ou vêm o seu futuro a andar para trás. Desejo um Bom Natal de 2011 a quem se dá ao trabalho de me acompanhar deste lado da jornada. Que apesar de tudo o gozem o melhor possível, pois se as coisas piorarem, como deverão piorar, assim escreveu Nicolau Santos no Expresso, «ainda vamos ter saudades dele».

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