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Euro-2016: anatomia de uma paixão

Fotografia de Kristina Truluck
Fotografia de Kristina Truluck

De cada vez que acontece um grande torneio ou se celebra uma vitória memorável, emergem nas redes sociais – goste-se ou não, com os seus defeitos e capacidades, o lugar onde circula hoje a opinião mais autónoma e plural –, muitas vozes que rejeitam o futebol como desporto de massas e celebração de um prazer ou de uma paixão. Pode ser apenas a demonstração verbal de um legítimo desinteresse por algo de que se não gosta, ou então a rejeição dos gastos e dos negócios obscenos que envolve, ou ainda o natural protesto pelo destaque exagerado e obsessivo que nessas alturas o jogo ocupa nos meios de comunicação.

Outras vezes, porém, é mais que isso, surgindo em certos casos como expressão de repulsa ou mesmo de ódio. Um ódio irracional e agressivo, como todos os ódios, que é diretamente projetado sobre quem o acolhe como praticante ou como adepto. Os argumentos são sempre os mesmos: o futebol será manifestação de despolitização ou de incultura, o reino negro do dinheiro sujo e do desperdício, recreio para rapazes estúpidos ou para fanáticos, pura perda de tempo quando tanto há de «verdadeiramente importante para fazer». Ainda que a vida seja feita também dos vícios e dos nadas que a tornam mais complexa e emotiva. (mais…)

    Atualidade, Etc., Olhares

    Vulgaridade e fama

    Fotografia de Frederic Gaillard
    Fotografia de Frederic Gaillard

    Passou-me há dias pelas mãos um número já com algum tempo da revista New Yorker que trazia um texto do crítico Giles Harvey onde este abordava um curioso nicho do mercado livreiro dos Estados Unidos. O título do artigo, «Cry me a river», que traduzo muito livremente por «Um rio de lágrimas», era uma óbvia paráfrase de parte do refrão da popular canção sobre um amor frustrado, escrita em 1953 por Arthur Hamilton para a voz poderosa de Ella Fitzgerald, na qual a intérprete pede insistentemente que com ela choremos o seu destino. «Come on and cry me a river, cry me a river / ‘Cause I cried a river over you», ali implorava aquela à qual um dia alguém chamou «a primeira dama da canção». A escolha da frase ajustava-se de uma forma perfeita ao artigo de Harvey. (mais…)

      Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

      O sentido do tempo e a lição de Abril

      O filósofo italiano Giorgio Agamben afirmou em entrevista recente: «A minha perspetiva do tempo histórico não pode deixar de ser descontínua. Nunca se sabe onde vai parar a ideia de um tempo contínuo. A antiguidade tomou-o como um círculo. O cristianismo, como uma linha. Por mim, prefiro a interrupção. O momento da liberdade de ação».  Quem possua uma visão dinâmica do percurso histórico – não me refiro à sequência à qual chamamos cronologia, mas ao movimento que percorre as sociedades – decerto aceitará este ponto de vista. Uma perspetiva que não reconhece o valor e a necessidade dos momentos de viragem, é imobilista e incapaz de explicar a torrente dos dias. No fundo, é essa a origem última do pensamento conservador. Seja qual for o quadrante político – existe também, é sempre bom lembrá-lo, um conservadorismo de esquerda – no qual este se inscreva. (mais…)

        Democracia, Ensaio, Olhares, Opinião

        Palavras em luta

        Fotografia de Enrique Jardim
        Fotografia de Enrique Jardim

        A propósito do projeto de resolução do Bloco de Esquerda que visa sugerir uma designação mais inclusiva para o Cartão de Cidadão, tenho lido e escutado posições que me têm deixado estarrecido. Muitas chegam de pessoas de quem gosto, com quem partilho muitas opiniões, e que considero sensíveis, sensatas e inteligentes, mas que neste caso mostraram um lado intempestivo e desnecessariamente agreste que desconhecia, colocando-se até ao lado de gente de quem em regra se distanciam. Desde logo pelo tom agressivo e liminarmente depreciativo – porquê tanto fel e sarcasmo por uma matéria destas? –, mas também pela natureza meramente reativa e não racional de alguns dos argumentos e comentários utilizados. (mais…)

          Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

          O 17 de Abril e a «crise de 69»

          Coimbra69 – Fot. Fernando Marques «Formidável»

          Foi numa quinta-feira, 17 de Abril, que em Coimbra, quando da inauguração do Edifício das Matemáticas pelo almirante Thomaz, teve lugar o episódio que deu início à «crise de 69». Falo dessa etapa da luta estudantil que marcou a vida da cidade e da sua Universidade, ajudando a ampliar a base social de rejeição do regime e, de certa forma, integrando as circunstâncias que conduziriam ao seu derrube. Os factos, bem conhecidos, não ocorreram por acaso. Resultaram de uma importante mudança que começara a ocorrer no meio estudantil universitário português a partir da viragem para a década de 1960 e tivera já um primeiro momento crítico em Lisboa no ano de 1962.

          Ao contrário do que acontecera nas décadas anteriores, o associativismo estudantil, em consonância com uma tendência gradual de parte importante da sociedade portuguesa para se afastar do regime, começava a deter uma componente crescentemente autonomista e reivindicativa. A esta não era alheio o rápido crescimento da própria população estudantil, agora com um número cada vez maior de alunos provenientes da classe média, uma presença também cada vez mais importante de mulheres (na altura da «crise» rondavam já os 50%) e uma crescente imersão na nova e pujante cultura juvenil internacional dos anos sessenta. (mais…)

            Democracia, História, Memória, Olhares

            Ter graça ou ser engraçado

            Mark Twain considerava o riso a arma humana mais poderosa. O filósofo Henri Bergson explicou o motivo dessa enorme força: ele é um instrumento de socialização, naturalizando momentos e acontecimentos que de outro modo não saberíamos explicar. Bergson dava o exemplo do riso provocado pelo tropeção de alguém numa pequena pedra: aquilo que nos leva a rir perante essa situação é a incapacidade humana para se desviar da pedra e o aspeto descomposto que o corpo toma no momento da queda, mas é o riso que nos permite aceitá-la. Como numa daquelas sequências do desastrado personagem Charlot no início da história do cinema. Por isso é sempre tão difícil esclarecer o motivo pelo qual rimos, pelo qual achamos graça a um gesto falhado ou a uma frase inesperada. O riso, na realidade, substitui a explicação.

            Existe, no entanto, um abismo separando o «ter graça» e o «ser engraçado». Conhecemos bem o sensato adágio português, transmitido de geração em geração sem alterar uma vírgula, que sublinha essa diferença entre as duas atitudes, enaltecendo a primeira, que é natural, ou pelos menos materializada sem esforço, como uma qualidade rara e positiva, e denegrindo a outra, sempre artificial e forçada, como um vulgar defeito. (mais…)

              Devaneios, Olhares, Opinião

              Brixton Boy

              David Bowie por Annie Leibovitz
              David Bowie por Annie Leibovitz

              Como aconteceu com tantos milhões de pessoas de diversas gerações, credos, gostos e modos de estar, a morte de David Bowie não me deixou indiferente. Aliás, mesmo que eu o quisesse, isso seria impossível, dada a catadupa de notícias, memórias, entrevistas, vídeos, documentários, fotografias, músicas, dossiês temáticos e muito, muito mais, projetando por todo o lado a vida, a morte e a presumível imortalidade do «Brixton Boy».

              Admito que não o fui, não sou, um absoluto incondicional de Bowie. Terei gostado muito de boa parte do que fez como músico, ator, performer, «artista visual» (como lhe chamou Annie Leibovitz), e outras coisas mais, mas terei ficado razoavelmente indiferente a algumas outras. Em cada álbum, por exemplo, escolhi sempre três ou quatro temas, deixando os restantes mais ou menos de parte. E não, não viajei até ao sétimo céu com as palavras do Major Tom em Space Oddity. Em 1969, aliás, as viagens espaciais que me ocupavam eram outras. (mais…)

                Artes, Atualidade, Memória, Música, Olhares

                Ler jornais (ou não)

                Os sinais não são de agora, mas ganharam particular relevo nos últimos tempos. A maioria dos grandes jornais especializados na atualidade, no comentário político, na informação generalista e na vida cultural, vive uma fase crítica e tem vindo a perder leitores de forma rápida e exponencial. E não apenas no que respeita às edições em papel, uma vez que o crescimento do digital, notório nos anos mais recentes, parece também ter parado. As razões são múltiplas e complexas e têm uma dimensão global, centrada em particular nos países nos quais a indústria do entretenimento e a proliferação da informação rápida e superficial têm sido mais fortes e constantes. Em termos relativos, aliás, lêem-se hoje menos jornais na Itália ou no Japão que na Índia ou na Costa do Marfim. (mais…)

                  Democracia, Leituras, Olhares, Opinião

                  A maldição da felicidade

                  Fotografia Andrés Gámiz
                  Fotografia Andrés Gámiz

                  Num livro dedicado ao «dever de felicidade» que se tem vindo a impor ao longo das últimas décadas, Pascal Bruckner interroga-se sobre o valor daquilo a que chama «essa ideologia (…) que conduz a tudo avaliar sobre o prisma do prazer e do desagrado, esse convite à euforia que lança na infâmia e no sofrimento aqueles que não lhe correspondem». Toma-a como a completa perversão daquela que foi uma das mais belas faces da proposta iluminista: a afirmação, ainda que mais metafísica do que no plano das conquistas sociais, do «direito à felicidade». Mirabeau, em carta datada de 1738, considerava essa afirmação o mais importante dos deveres de cada indivíduo, a razão última de qualquer vida que valesse a pena ser vivida, tal como, nos séculos que o haviam antecedido, a maior e mais absoluta das inquietações e o primeiro dos deveres individuais tinham apontado para a salvação da alma.

                  Trinta anos depois, nas Confissões, Rousseau escreveria sem ambiguidade que «o propósito da vida humana é a felicidade de cada homem». Embora não se atrevesse a atribuir um sentido claro e universal à forma de a obter, estimava já, num plano estritamente pessoal, que era na prática da escrita criadora e no deleite da imaginação que dela se podia ir aproximando. A fome e a doença, bem como o desdém e a perseguição, dos quais tanto se queixava, podiam ser suplantados por um estado de felicidade íntima que tudo ajudava a ultrapassar. (mais…)

                    Devaneios, Ensaio, Olhares

                    Pessoal e transmissível

                    Imagem de Victor Bezrukov
                    Imagem de Victor Bezrukov

                    Nestes dias de pausa e expectativa em que se pode respirar alguma esperança e se inicia um processo de reconfiguração política do país, e quando aquilo que possa escrever já não será interpretado como um apelo à dúvida ou à divisão, chega o momento de fazer um curto balanço pessoal das minhas escolhas políticas dos últimos anos.

                    Entre 1999 e 2014 fui simpatizante, colaborador e sempre eleitor do Bloco de Esquerda. Por duas vezes cheguei mesmo, em eleições autárquicas, a ser seu candidato independente. Só não fui militante porque sou naturalmente avesso a afirmar certezas quando tenho dúvidas e a militância partidária ativa exige alguma capacidade para delas publicamente abdicar. Respeito quem pensa de forma diferente e se dispõe a agitar bandeiras, mas tomo para mim, como uma espécie de princípio orientador, a afirmação de Camus segundo a qual «se existir um partido dos que não têm a certeza de ter razão, eu farei parte dele.» Tal não significa, porém, que negue a importância da atividade partidária, absolutamente nuclear em democracia, e me recuse a com ela confluir. Como não significa a ausência de um pertinaz empenho nas barricadas comuns do combate por uma sociedade mais justa, mais livre, mais igualitária e mais feliz, no qual me mantenho desde 1969. Na realidade, durante quase todos aqueles quinze anos, do BE apenas me separaram algumas, pouquíssimas, posições no campo da política internacional. Divergências políticas mais sérias, só as comecei a sentir em 2011, quando o Bloco e o PCP, por causa das implicações do PEC4, votaram a queda do governo socialista de José Sócrates, abrindo objetivamente caminho à vitória da direita e não aceitando depois fazer a autocrítica desse passo. (mais…)

                      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                      Cozido «à angolana»

                      Isto vem a propósito de nada. É apenas um episódio quase divertido que nunca contei em público e hoje resolvi partilhar. Lembrei-me dele quando, ao almoço, fui atendido, num balcão de self-service, por uma mulher africana, muito simpática e sorridente, com fortíssimo sotaque caluanda, vestindo uma t-shirt azul-escura com o dizer «cozinha portuguesa» desenhado a letras que um dia tinham sido alvas. A memória deu então sinal de si e um pedaço de passado tomou a palavra. (mais…)

                        Apontamentos, Devaneios, Memória, Olhares

                        Catalunha, 27

                        LLUIS LLACH, 2015
                        LLUIS LLACH, 2015

                        «Si estirem tots, ella caurà / i molt de temps no pot durar, / segur que tomba, tomba, tomba / ben corcada deu ser ja.  // Si jo l’estiro fort per aquí / i tu l’estires fort per allà, / segur que tomba, tomba, tomba, / i ens podrem alliberar.» (Lluis Llach, em L’Estaca, 1968)

                        Este domingo, 27, é muito provável que os adeptos da independência vençam as eleições autonómicas na Catalunha. Por cá, o tema passa bastante ao lado do interesse público. No passado, quando Franco governava a Espanha «por la gracia de Dios», o apoio aos independentistas – fossem eles catalães, galegos, bascos, andaluzes, valencianos ou outros – era para bastantes portugueses inquestionável. Defender a democracia, era defender a emancipação da tutela de Madrid, logo significava uma posição contra a ditadura e os seus aliados. Salazar, por exemplo. Aliás, esse era um tempo de emancipações, no qual «o direito de cada povo a seguir o seu próprio destino» surgia, para muitos, entre os quais eu me contava, como inquestionável. Tínhamos aliás uma dívida de gratidão: em 1640, fora a revolta da Catalunha que permitira aos portugueses ter uma frente de guerra menos desfavorável e assegurar, após 28 anos de combates, a restauração da independência. (mais…)

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                          O viajante equivocado

                          Ao contrário dos guias turísticos oficiosos, organizados para impor, como um produto, uma leitura uniforme dos lugares e dos comportamentos daqueles que os habitam, os relatos de viagem, principalmente aqueles escritos pelos viajantes solitários, são sempre desordenados, tendenciosos, plenos de enganos. Observam apenas o que é dado a ver aos seus autores a partir de escolhas forçosamente pessoais e aleatórias, das circunstâncias móveis de uma presença que é fugaz, das trajetórias escolhidas em função daquilo que pode observar quem se desloca por sua conta e risco, sem roteiro estabelecido.

                          Este é o aspeto tomado pelos registos nos quais o poeta e viajante escocês Kenneth White (n. 1936) tem vindo a narrar as suas experiências de observação «geopoética» – a um tempo territorial, filosófica e poética – aplicadas aos lugares que entendeu percorrer à sua maneira. Sempre com a certeza de que «o nómada não segue para qualquer lugar», pouco lhe importa o fim, o destino, mas sim a experiência irrepetível do próprio movimento. Aquilo que apenas ele vê. Não deixa, apesar disso, de surpreender a descrição que faz de Portugal num capítulo do seu livro Across the Territories. (mais…)

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                            Fumador, mas não perverso

                            J.-P. Léaud em Antoine et Colette, de Truffaut
                            J.-P. Léaud em Antoine et Colette, de Truffaut

                            Sou, sempre fui, aquilo a que se chama um fumador moderado. Não sorvo o fumo – o meu pai, que consumia dois maços por dia e a última coisa que me pediu, dois dias antes de morrer, foi um cigarro, fazia aliás a mesma coisa – e, talvez por isso, sou capaz de passar vários dias sem exercer. Sendo para todos os efeitos um fumador, respeito no entanto os direitos daqueles que o não são, e desde cedo me habituei a perguntar a quem de mim perto estivesse, numa sala, num restaurante ou numa carruagem de comboio, se o meu fumo incomodava. Quando respondiam afirmativamente, nem pensava mais no assunto. Aceito, aliás, algumas das restrições que entre nós entraram em vigor no início de 2008, destinadas a proteger os não-fumadores e a reduzir o consumo do tabaco. (mais…)

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                              Europeus porque gregos

                              Vassilis Alexakis é um escritor natural de Atenas com alguns prémios de prestígio no currículo, como o Médicis e o da Academia Francesa para o romance. Depois de ter vivido em Paris o movimento de Maio de 68, ficou por França quando a «ditadura dos coronéis» o forçou ao exílio. Acabou por obter a dupla nacionalidade, conservando no entanto uma forte ligação física e cultural ao país onde nascera em 1943. Vassilis tem, aliás, a particularidade de escrever os seus romances em francês e depois de ser ele próprio a vertê-los para o grego, o que parece configurar a forma perfeita de tradução, quando o momento da criação se desdobra em duas línguas sem o recurso a um intermediário espúrio. La clarinette, editado em Fevereiro, é o seu último livro.

                              Em entrevista recente ao L’Express, Alexakis sintetizou de forma convincente três mil anos de história grega. Ouçamo-lo: «A Grécia, berço da democracia, permaneceu sempre fora do processo de formação dos Estados europeus, passou ao lado do Renascimento e ignorou o século das Luzes. Foi este o seu drama e o seu paradoxo. Depois saiu da ocupação otomana como se nada tivesse mudado. O Estado permanece como o inimigo, toda a gente procura enganá-lo, só a organização familiar conta. Quanto à riquíssima Igreja, cujo poder espiritual é tão forte quanto o seu poder material, permanece intocável; contestá-la equivale a renegar a pátria e pode mesmo levar quem o faz à barra dos tribunais.» (mais…)

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                                A honra, a pobreza e o futuro

                                Gérard Castello-Lopes - Lisboa, 1957
                                Gérard Castello-Lopes – Lisboa, 1957

                                A minha mãe, que tinha boa memória e mais quarenta anos do que eu, contava muitas vezes episódios de uma juventude passada nas duas décadas que separaram as guerras mundiais. Mesmo pertencendo a uma família da classe média, viveu durante todo esse tempo em condições que impuseram uma existência austera, passada sem grandes festas ou luxos. O pão como base da alimentação (um hábito que conservou durante toda a vida), a sardinha partilhada (sempre lembrada por muitos da sua geração), uma dieta que deixava a carne apenas para os dias especiais, semanas praticamente sem domingos, trabalho constante distribuído pela lide da casa e pelos deveres da horta e do pomar. E roupa e sapatos que deviam durar anos, com viagens a pé para levar o almoço ao pai, meu avô, que nem por ter um trabalho administrativo razoavelmente pago se podia dar a despesas supérfluas. (mais…)

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                                  O Muro como metáfora

                                  Imagem de Aprilspit
                                  Imagem de Aprilspit

                                  Terá sido entre as proclamações dos ativistas do Black Power e os graffiti do Maio de 68 que a ideia de que «a revolução não será televisionada» irrompeu de modo programático. Sugeria aquilo que, na época, para muitos parecia óbvio: que o fim do capitalismo e a sua substituição por um sistema reorganizado e perfeito deveria ganhar corpo no calor do combate político, na luta de ideias, na ação direta se necessário, mas jamais ser mediado pela televisão. No ano de 1989, porém, Berlim, Varsóvia, Praga ou Bucareste deram a ver ao mundo a «primeira revolução televisionada», a acontecer em simultâneo nos lares dos pacatos cidadãos. O seu episódio nuclear, pelo efeito produzido e pela dimensão simbólica, ocorreu na memorável noite de 9 de Novembro desse ano. Quem recorda o derrube do Muro seguido em direto pelo aparelho doméstico de televisão, rememora a perceção de algo até ali inconcebível: o fim de um mundo considerado sólido revelado em toda a crueza, como na sequência capital de um filme-catástrofe (mais…)

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                                    A fúria do cinzento

                                    Nos anos 60/70, a dinâmica do parecer servia por vezes, principalmente em ambientes urbanos, para distinguir esquerda e direita. Alguns códigos do vestuário possuíam «marca de classe», ou então enunciavam condições de pertença cultural. A qualidade da roupa, mas também o seu padrão ou o uso de determinados acessórios – como o cachimbo, o isqueiro, o lenço, a pulseira ou a esferográfica – davam-lhe forma. Claro que existiam características excessivamente tipificadas, como algumas associadas a certos mitos sobre a higiene íntima, separando uma direita que podia ter a alma negra mas supostamente se perfumava de uma esquerda cheia de boas intenções para os destinos do mundo e que no entanto se presumia tresandar. Sem entrar em detalhes sórdidos, posso confirmar que por vezes a vida copiava a caricatura. (mais…)

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