Arquivo de Categorias: Olhares

Cozido «à angolana»

Isto vem a propósito de nada. É apenas um episódio quase divertido que nunca contei em público e hoje resolvi partilhar. Lembrei-me dele quando, ao almoço, fui atendido, num balcão de self-service, por uma mulher africana, muito simpática e sorridente, com fortíssimo sotaque caluanda, vestindo uma t-shirt azul-escura com o dizer «cozinha portuguesa» desenhado a letras que um dia tinham sido alvas. A memória deu então sinal de si e um pedaço de passado tomou a palavra. (mais…)

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    Catalunha, 27

    LLUIS LLACH, 2015
    LLUIS LLACH, 2015

    «Si estirem tots, ella caurà / i molt de temps no pot durar, / segur que tomba, tomba, tomba / ben corcada deu ser ja.  // Si jo l’estiro fort per aquí / i tu l’estires fort per allà, / segur que tomba, tomba, tomba, / i ens podrem alliberar.» (Lluis Llach, em L’Estaca, 1968)

    Este domingo, 27, é muito provável que os adeptos da independência vençam as eleições autonómicas na Catalunha. Por cá, o tema passa bastante ao lado do interesse público. No passado, quando Franco governava a Espanha «por la gracia de Dios», o apoio aos independentistas – fossem eles catalães, galegos, bascos, andaluzes, valencianos ou outros – era para bastantes portugueses inquestionável. Defender a democracia, era defender a emancipação da tutela de Madrid, logo significava uma posição contra a ditadura e os seus aliados. Salazar, por exemplo. Aliás, esse era um tempo de emancipações, no qual «o direito de cada povo a seguir o seu próprio destino» surgia, para muitos, entre os quais eu me contava, como inquestionável. Tínhamos aliás uma dívida de gratidão: em 1640, fora a revolta da Catalunha que permitira aos portugueses ter uma frente de guerra menos desfavorável e assegurar, após 28 anos de combates, a restauração da independência. (mais…)

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      O viajante equivocado

      Ao contrário dos guias turísticos oficiosos, organizados para impor, como um produto, uma leitura uniforme dos lugares e dos comportamentos daqueles que os habitam, os relatos de viagem, principalmente aqueles escritos pelos viajantes solitários, são sempre desordenados, tendenciosos, plenos de enganos. Observam apenas o que é dado a ver aos seus autores a partir de escolhas forçosamente pessoais e aleatórias, das circunstâncias móveis de uma presença que é fugaz, das trajetórias escolhidas em função daquilo que pode observar quem se desloca por sua conta e risco, sem roteiro estabelecido.

      Este é o aspeto tomado pelos registos nos quais o poeta e viajante escocês Kenneth White (n. 1936) tem vindo a narrar as suas experiências de observação «geopoética» – a um tempo territorial, filosófica e poética – aplicadas aos lugares que entendeu percorrer à sua maneira. Sempre com a certeza de que «o nómada não segue para qualquer lugar», pouco lhe importa o fim, o destino, mas sim a experiência irrepetível do próprio movimento. Aquilo que apenas ele vê. Não deixa, apesar disso, de surpreender a descrição que faz de Portugal num capítulo do seu livro Across the Territories. (mais…)

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        Fumador, mas não perverso

        J.-P. Léaud em Antoine et Colette, de Truffaut
        J.-P. Léaud em Antoine et Colette, de Truffaut

        Sou, sempre fui, aquilo a que se chama um fumador moderado. Não sorvo o fumo – o meu pai, que consumia dois maços por dia e a última coisa que me pediu, dois dias antes de morrer, foi um cigarro, fazia aliás a mesma coisa – e, talvez por isso, sou capaz de passar vários dias sem exercer. Sendo para todos os efeitos um fumador, respeito no entanto os direitos daqueles que o não são, e desde cedo me habituei a perguntar a quem de mim perto estivesse, numa sala, num restaurante ou numa carruagem de comboio, se o meu fumo incomodava. Quando respondiam afirmativamente, nem pensava mais no assunto. Aceito, aliás, algumas das restrições que entre nós entraram em vigor no início de 2008, destinadas a proteger os não-fumadores e a reduzir o consumo do tabaco. (mais…)

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          Europeus porque gregos

          Vassilis Alexakis é um escritor natural de Atenas com alguns prémios de prestígio no currículo, como o Médicis e o da Academia Francesa para o romance. Depois de ter vivido em Paris o movimento de Maio de 68, ficou por França quando a «ditadura dos coronéis» o forçou ao exílio. Acabou por obter a dupla nacionalidade, conservando no entanto uma forte ligação física e cultural ao país onde nascera em 1943. Vassilis tem, aliás, a particularidade de escrever os seus romances em francês e depois de ser ele próprio a vertê-los para o grego, o que parece configurar a forma perfeita de tradução, quando o momento da criação se desdobra em duas línguas sem o recurso a um intermediário espúrio. La clarinette, editado em Fevereiro, é o seu último livro.

          Em entrevista recente ao L’Express, Alexakis sintetizou de forma convincente três mil anos de história grega. Ouçamo-lo: «A Grécia, berço da democracia, permaneceu sempre fora do processo de formação dos Estados europeus, passou ao lado do Renascimento e ignorou o século das Luzes. Foi este o seu drama e o seu paradoxo. Depois saiu da ocupação otomana como se nada tivesse mudado. O Estado permanece como o inimigo, toda a gente procura enganá-lo, só a organização familiar conta. Quanto à riquíssima Igreja, cujo poder espiritual é tão forte quanto o seu poder material, permanece intocável; contestá-la equivale a renegar a pátria e pode mesmo levar quem o faz à barra dos tribunais.» (mais…)

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            A honra, a pobreza e o futuro

            Gérard Castello-Lopes - Lisboa, 1957
            Gérard Castello-Lopes – Lisboa, 1957

            A minha mãe, que tinha boa memória e mais quarenta anos do que eu, contava muitas vezes episódios de uma juventude passada nas duas décadas que separaram as guerras mundiais. Mesmo pertencendo a uma família da classe média, viveu durante todo esse tempo em condições que impuseram uma existência austera, passada sem grandes festas ou luxos. O pão como base da alimentação (um hábito que conservou durante toda a vida), a sardinha partilhada (sempre lembrada por muitos da sua geração), uma dieta que deixava a carne apenas para os dias especiais, semanas praticamente sem domingos, trabalho constante distribuído pela lide da casa e pelos deveres da horta e do pomar. E roupa e sapatos que deviam durar anos, com viagens a pé para levar o almoço ao pai, meu avô, que nem por ter um trabalho administrativo razoavelmente pago se podia dar a despesas supérfluas. (mais…)

              Atualidade, Democracia, Memória, Olhares

              O Muro como metáfora

              Imagem de Aprilspit
              Imagem de Aprilspit

              Terá sido entre as proclamações dos ativistas do Black Power e os graffiti do Maio de 68 que a ideia de que «a revolução não será televisionada» irrompeu de modo programático. Sugeria aquilo que, na época, para muitos parecia óbvio: que o fim do capitalismo e a sua substituição por um sistema reorganizado e perfeito deveria ganhar corpo no calor do combate político, na luta de ideias, na ação direta se necessário, mas jamais ser mediado pela televisão. No ano de 1989, porém, Berlim, Varsóvia, Praga ou Bucareste deram a ver ao mundo a «primeira revolução televisionada», a acontecer em simultâneo nos lares dos pacatos cidadãos. O seu episódio nuclear, pelo efeito produzido e pela dimensão simbólica, ocorreu na memorável noite de 9 de Novembro desse ano. Quem recorda o derrube do Muro seguido em direto pelo aparelho doméstico de televisão, rememora a perceção de algo até ali inconcebível: o fim de um mundo considerado sólido revelado em toda a crueza, como na sequência capital de um filme-catástrofe (mais…)

                Atualidade, História, Leituras, Memória, Olhares

                A fúria do cinzento

                Nos anos 60/70, a dinâmica do parecer servia por vezes, principalmente em ambientes urbanos, para distinguir esquerda e direita. Alguns códigos do vestuário possuíam «marca de classe», ou então enunciavam condições de pertença cultural. A qualidade da roupa, mas também o seu padrão ou o uso de determinados acessórios – como o cachimbo, o isqueiro, o lenço, a pulseira ou a esferográfica – davam-lhe forma. Claro que existiam características excessivamente tipificadas, como algumas associadas a certos mitos sobre a higiene íntima, separando uma direita que podia ter a alma negra mas supostamente se perfumava de uma esquerda cheia de boas intenções para os destinos do mundo e que no entanto se presumia tresandar. Sem entrar em detalhes sórdidos, posso confirmar que por vezes a vida copiava a caricatura. (mais…)

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                  Talvez Natal

                  Fotografia de Zofia
                  Fotografia de Zofia

                  Estamos em Dezembro e por isso na época em que se abusa do Natal, tantas vezes transformado, embrulhado em insuportáveis clichés, num tempo de hipocrisia ou de um insano consumismo. Atitudes que nada têm a ver com o sentido original do instante fundador do cristianismo e da sua mensagem de paz e humildade. Devem, todavia, evitar-se as generalizações, pois são muitas as almas, crentes ou nem por isso, que nas culturas de raiz fundacional cristã procuram observar a quadra demonstrando um genuíno cuidado para com o seu semelhante próximo ou distante. Para não falar das distantes paragens, ou dos ambientes menos observáveis à luz do dia, nos quais o momento muitas vezes serve o conforto dos fracos ou de minorias silenciadas e oprimidas.

                  E no entanto muitos são os adeptos de um discurso autocensurado, «correto», que evitam pronunciar sequer a palavra «Natal», substituindo-a por eufemismos como «festas», «quadra» ou outros. Parece-me um processo de automutilação cultural. Sendo homem sem fé, nada me incomoda apresentar a outro, sobretudo se presumir ser alguém crente sincero de uma qualquer religião, ou que com ela conviva numa relação tranquila, os votos de um Bom Natal. Como, noutros momentos ou lugares, apresentaria os de Feliz Hanukkah, de Tranquila Hijra, de Óptima Joya Kane, de Próspero Losar, de Reconfortante Diwali. A assertividade das convicções não reside no policiamento da língua nem se alimenta da fuga ao real social. E o respeito pelo outro passa também pelas palavras que usamos para falar com ele.

                  Feliz Natal, pois, para quem o viver ou desejar.

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                    Dos desconhecidos

                    Fotografia de Kris K. G.

                    «Sou uma escrava das palavras… Tenho uma absoluta fé nas palavras. Presto sempre atenção às palavras que os outros pronunciam, mesmo as dos desconhecidos. Principalmente as dos desconhecidos. Dos desconhecidos podemos sempre esperar ainda alguma coisa.»

                    Do testemunho de Maria Voïtechonok, 57, em La Fin de l’Homme Rouge (Actes Sud, 2013), uma impressiva e plural coletânea de testemunhos sobre os anos finais da União Soviética e os tempos conturbados que se lhe seguiram, da autoria da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexievitch.

                      Apontamentos, Olhares, Recortes

                      Nos 90 anos de Soares

                      Na história política do século XX português há as figuras, as figurinhas e os figurões. Das de segundo e terceiro tipo geralmente não reza a História. Chegam, tomam a palavra, e logo partem para ser esquecidas. De entre as primeiras existe, porém, uma linha da frente que perdurará para além das representações de natureza benévola ou negativa que sobre elas e a sua obra possam ser feitas: Afonso Costa, António O. Salazar, Álvaro Cunhal e Mário Soares. A característica comum aos quatro reside no facto de jamais alguém lhes ter sido ou permanecer indiferente. Todos carregaram e continuam a carregar paixões e ódios. E todos souberam, cada um à sua medida, mobilizar vontades e deixar lastro.

                      Concorde-se ou não com ele, goste-se ou não das suas escolhas, apreciem-se apenas algumas (é o meu caso) ou todas as decisões que tomou, louve-se ou não o seu intenso hedonismo (deste, tão raro nos profissionais da política, eu gosto mesmo), Mário Soares, que perfaz hoje 90 anos de vida continuando nas bocas do mundo, está aí, felizmente, para mostrar a falta que fazem políticos com coragem e um selo próprio. Que saibam pôr no lugar as caixas de repetição e se tornem inesquecíveis. A vida das repúblicas, e em particular a das democracias, não pode depender apenas das personalidades fortes, raras e imprevisíveis, mas não se constrói sem elas. Sem elas desfalece de tédio.

                        Apontamentos, Biografias, Democracia, Olhares

                        Do jornalismo como missão

                        Podemos sempre encontrar, num momento recuado das nossas vidas, a projeção de uma profissão a exercer naquele futuro distante ao qual chegaríamos invencíveis e adultos. Dessa fase dos destinos improváveis lembro-me apenas de querer imitar David Crockett, o explorador do Tennessee, insuperável no manejamento do rifle e na caça ao urso. Mas recordo também o desejo de um dia me tornar jornalista. Em parte por causa dos meus heróis da banda desenhada que o eram também, como Luís Euripo ou Tintim. Mas sobretudo devido à influência dos jornais com os quais apreendi a ler: o Diário de Notícias, do qual o meu avô era «agente e correspondente», e O Primeiro de Janeiro, que ele comprava aos domingos e lia de uma ponta à outra totalmente alheado das rotinas da casa. Imerso nas suas páginas sempre renovadas, na aparência infinitas, passei a associar o trabalho daqueles que os faziam a um imaginário de viagem que me atraía e a uma vida que julgava isenta de rotinas. (mais…)

                          Atualidade, Jornalismo, Olhares, Opinião

                          Não há um «leninismo amável»

                          Juan Carlos Monedero

                          Juan Carlos Monedero, politólogo da Universidade Complutense e número dois do Podemos, declarou em entrevista publicada recentemente pelo Jornal de Notícias que vivemos tempos «em que precisamos de um leninismo amável». Como parte de um estrito exercício de retórica política este conceito – parcialmente devedor de uma reatualização da «herança de Lenine» projetada à margem da sagrada cartilha do marxismo-leninismo saído dos anos trinta – pode ter algum impacto. Todavia, tanto no domínio da teoria como num plano mais estritamente prático, ele traduz sensivelmente o mesmo que falar de «islamismo ateu». É pois a expressão perfeita do oximoro. Monedero tem-se servido noutros lugares desse conceito, embora lhe dê um sentido amplo: define-o como o recurso transitório a um assumido populismo, e não à intervenção decisiva do partido de vanguarda previsto por Lenine, como forma de mobilizar a maioria dos cidadãos para desinstitucionalizar a ordem política vigente e lançar as bases de uma outra, inteiramente nova, direta, e por isso revolucionária e integralmente substituta. (mais…)

                            Ensaio, Olhares, Opinião

                            Dezasseis anos depois

                            Uma das amigas do Facebook que não conheço apenas da persona que sugere o seu avatar, lembrou-se de como poucos dos muitos que visitaram a Expo-98 se recordarão hoje do que lá foram fazer. E de que ninguém com menos de 20 anos saberá sequer dizer que coisa foi o evento. Ocorreu-me entretanto que em 2006, para testar a velocidade do esquecimento dos meus alunos, perguntei num curso que acontecimento tivera lugar em Portugal no ano de 1998 que, projetado também numa dimensão internacional, pela positiva ou pela negativa suscitara a atenção da generalidade do país. Nenhum foi então capaz de referir a Expo, e só depois de eu ter revelado a resposta alguns se lembraram de a ter visitado. Embora já quase o tivessem esquecido. (mais…)

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                              O medo que nos tolhe

                              Os medos cuja origem sabemos identificar podem perturbar-nos e geralmente conseguem-no, mas transportam consigo o seu próprio antídoto. Conhecendo as suas causas, identificando o seu rosto, podemos então aprender a resistir-lhes, suavizando o seu embate ou, pelo menos, estabelecendo com eles um pacto de reconhecimento e alguns momentos de tréguas. No final dos anos 70, o historiador Jean Delumeau mostrou como é possível compreender a vida coletiva de um longo período do passado apenas pela observação do modo como aqueles que o habitaram souberam lidar com os seus temores, convivendo com eles mas fazendo por enfrentá-los. A opressão, a fome, a doença, os desastres naturais, a insegurança, a guerra, aterravam os humanos, mas geralmente tinham um rosto reconhecível, anunciavam a sua chegada e sabia-se como atuavam. Por isso podiam ser, se não enfrentados, pelo menos aceites.

                              Os piores medos, porém, não têm rosto. Aparecem associados a esse sentimento difuso, pouco claro, ambíguo e desarmante, que experimentamos sempre que somos confrontados com algo que não sabemos identificar, ver ou prever, reduzindo por isso a margem de manobra diante do perigo que se pressente. É esta espécie de medo que nos acompanha poderosamente por estes dias, quando somos forçados a conviver com uma imprevisibilidade que começa nas palavras e nos atos desencontrados daqueles que agora nos governam e que ousam falar em nosso nome. Como poderemos dormir descansados, como podemos não experimentar o medo, quando os primeiros a ameaçar-nos, a escalar as paredes das nossas casas e a entrar sem aviso são justamente aqueles que foram por nós eleitos para cuidar da nossa existência e gerir a paz das nossas noites? Já não os reconhecemos e por isso os tememos tanto.

                              Crónica publicada no Diário As Beiras

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                                Shakespeare e a tábua das emoções

                                shakespeare2

                                A contemporaneidade de William Shakespeare tem sido particularmente destacada na altura em que se evoca o 450º aniversário do seu nascimento. No início deste ano, em Berlim, um colóquio promovido pelo British Council que envolveu diversos especialistas teve justamente como pressuposto que dentro e fora do universo académico o seu legado «se mantém vivo sob múltiplos aspetos». Todavia a ideia não é nova, pois já em 1961 o encenador Jan Kott publicara em Varsóvia um livro, rapidamente traduzido em diversas línguas, sobre a força dessa ligação. Kott traçava ali uma série de analogias entre as situações dramáticas criadas pelo mais conhecido dos naturais de Stratford-upon-Avon e as cambiantes infernais da vida pública, duplamente subjugada ao impacto do nazismo e do estalinismo, presentes na Polónia do seu tempo. (mais…)

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                                  Carpe diem

                                  Boa parte do que muitas pessoas de diferentes gerações, a minha incluída, aprenderam ao longo da vida, ficou a dever-se, pelo menos na génese, à leitura de revistas e jornais. Não apenas por causa dos acontecimentos noticiados ou de artigos sobre este ou aquele assunto, mas pela própria riqueza dos textos recolhidos. Muitos jornalistas, ou pessoas que colaboravam com as publicações, sabiam fazê-lo com mestria, suscitando sempre o conhecimento ou a curiosidade. Mesmo num pequeno apontamento, numa entrevista, num comentário, sabiam juntar sempre uma nota de saber que assim era transmitida e recolhida de uma forma natural, sem esforço e sem prejudicar a clareza, ajudando a alargar o universo de conhecimento e de interesses do leitor. Faz-nos muita falta agora – porque agora rara, muito rara – essa forma, simples mas eficaz, de passar o saber acumulado.

                                  Lembro isto ao ler num jornal, a propósito da morte de Robin Williams, uma referência ao facto deste ter «celebrizado a expressão ‘carpe diem’». Referia-se a jornalista ao papel de Williams no filme O Clube dos Poetas Mortos, dirigido por Peter Weir e estreado em 1989. Só que o personagem John Keating, o inesquecível professor de literatura que tão bem sabia motivar os seus alunos, citava ali um verso retirado de uma ode de Horácio, o poeta romano do século I a.C., profusamente utilizado no trajeto intelectual do ocidente. Afinal, a ideia de aproveitar o dia, de fruir o momento que passa, não foi «celebrizada» por uma «celebridade», mas retirada de uma tradição com já mais de dois mil anos. Lá escrevia Horácio, «dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem quam minimum credula postero». Como quem diz, traduzindo muito, muito livremente, «enquanto falamos, já terá fugido o invejoso tempo: colhe o dia que passa, confiando menos no de amanhã». As pobres «celebridades» voam depressa e desaparecem no horizonte; o conhecimento, esse fica.

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                                    Quem tem razão vs. Quem tem razão

                                    O conflito israelo-palestiniano é talvez o tema de política internacional que maiores clivagens cria na opinião pública. Ao ponto de toldar pessoas habitualmente razoáveis ou de incompatibilizar outras que pouco antes partilhavam opiniões próximas sobre numerosos assuntos. E isto acontece há décadas. Pelo menos desde as rápidas mas brutais guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), quando os mais duros dos duros militares israelitas, comandados no terreno por homens como Moshe Dayan ou Ariel Sharon, tomaram conta de Israel, ampliando a ocupação sionista do território da Palestina e deitando por terra qualquer possibilidade de um entendimento com a antiga OLP. A sua atitude de impiedade e conquista favoreceu, ao mesmo tempo, o crescimento de setores palestinianos radicalizados que excluíam qualquer acordo, presente ou futuro, com Tel Aviv. A partir dessa altura, a paz transformou-se numa miragem. E o sofrimento, sobretudo o dos mais fracos e desprotegidos, não mais parou, regressando periodicamente aos paroxismos de violência e assassinato em massa como aqueles a que estamos a assistir. (mais…)

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