Cozido angolano

Fotografia Juha Valimaki

Isto vem a propósito de nada. É apenas um episódio quase divertido que nunca contei em público e hoje resolvi partilhar. Lembrei-me dele quando, ao almoço, fui atendido, num daqueles balcões de self-service, por uma mulher negra, muito simpática e sorridente, com fortíssimo sotaque caluanda, vestindo uma t-shirt azul-escura com o dizer «cozinha portuguesa» desenhado a letras que um dia tinham sido brancas. A memória deu então sinal de si e um pedaço de passado tomou a palavra.

Foi em março ou abril de 1975, em Luanda. A polícia tinha desaparecido das ruas, fechada nos seus postos, e a ordem pública era mantida por unidades de intervenção mistas, compostas por militares do exército português e por guerrilheiros dos três movimentos de libertação. Eu comandava então – comandava supostamente, pois alguns dos comandados sabiam mais de guerra a dormir que eu de olhos abertos – um pelotão dessas forças. E foi nessa qualidade que fui chamado intervir junto de um restaurante da Maianga, pouco imaginativamente chamado «Lisboa», onde uma simples refeição da hora do almoço fora transformada em ruidoso tumulto. Pratos partidos, cadeiras pelo ar, gritaria, e um volume crescente de populares a avançar ameaçadoramente para dentro do estabelecimento.

Lá conseguimos repor a ordem com alguns tiros atirados para o ar – expediente que por motivos que não preciso explicar produz sempre um rápido e eficaz efeito –, ao que se seguiu um breve inquérito para tentar compreender aquilo que realmente se tinha passado. Acontece que o restaurante, que por um acaso eu até frequentava de vez em quando, tinha colocado no menu «Cozido à Portuguesa», e muitos daqueles que protestavam consideravam que essa era uma marca de colonialismo que deveria ser rápida e liminarmente apagada.

Cozido sim, sem problemas. Com batata cozida, couve lombarda, arroz agulha bem húmido, chouriços de sangue e de lombo, farinheira, morcela, feijão branco, carne de porco e de vaca, toucinho, orelheira, frango, cenoura, nabo e tutti quanti. Mas nacionalizada deles, «à angolana», como pediam os manifestantes. Claro que lhes disse que tinham toda a razão – e à sua maneira, ou à medida daquele tempo, até tinham – e que ia procurar resolver o assunto de maneira pacífica com o proprietário. Conversa fechada, o prato foi então, e para todo o sempre, eliminado da ementa. Mas confesso que, como cliente, deixei de frequentar o Restaurante Lisboa. É que, farto do esparguete da tropa, eu ia lá só mesmo por causa do Cozido.

Fotografia: Juha Valimaki

    Apontamentos, Devaneios, Memória, Olhares.