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As humanidades e o pensamento crítico

As humanidades (a literatura, a história, a filosofia, as artes, a teoria musical, entre outras), e também, ainda que em escala só ligeiramente menor, as ciências sociais (como a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciência política ou o direito), fazem parte daquele território de saberes e de modos de reconhecer o mundo que tem vindo a ser crescentemente desvalorizado nas sociedades assentes no poder do dinheiro e no fetiche da produtividade. Longe vai o tempo do prestígio e da influência política do «homem de letras» – quando quase apenas homens as possuíam – e da intervenção dos intelectuais. (mais…)

    Democracia, Ensaio, Olhares, Opinião

    A esperança contra a indiferença

    A História não se repete. Foram há muito superadas as teorias de Danilewski e de Spengler que a julgavam apoiada em rígidos e inevitáveis ciclos civilizacionais, e mesmo a mais moderada ideia de Arnold Toynbee, para quem a obrigatória repetição dependeria um pouco mais do fator humano, está hoje descartada. Aquilo que se rejeita nessas doutrinas não é, no entanto, a possibilidade de determinadas situações da vida das sociedades se poderem assemelhar, mas a noção de tal acontecer de forma regular e implacável. Como se estas fossem regidas por um destino, por um fado, que as determina. (mais…)

      Atualidade, História, Olhares, Opinião

      Agradecer basta

      É justo e de bom-tom agradecer algo que nos dão ou um serviço que nos prestam, por mais insignificante que este seja. Pode ser uma convenção, mas não o é apenas: representa sempre um gesto de cortesia e de civilidade que sela uma espécie de pacto de entreajuda entre pessoas que se entendem e respeitam. E é também o reconhecimento do esforço do outro. Sempre o fiz e continuo a fazer, mas o inverso – agradecerem-me por aquilo que ofereço a alguém – tem vindo ultimamente a ocorrer cada vez menos vezes, em especial com interlocutores que detêm uma conceção utilitarista da vida social ou têm dos outros uma imagem instrumental. (mais…)

        Atualidade, Olhares, Opinião

        1917: o céu, o inferno e a esperança


        Devido à passagem do seu centenário, a Revolução de 1917 – a de Fevereiro, que derrubou a autocracia czarista e implantou um regime democrático incapaz de solucionar os graves problemas e conflitos que atravessavam a Rússia, e principalmente a de Outubro, que abriu caminho, através da intervenção dos bolcheviques, para a primeira grande experiência socialista da História –, está a ser objeto de uma atenção particular. Acontece por todo o lado, dada a repercussão histórica do acontecimento, das alterações políticas que determinou, e das hipóteses que projetou e continua a projetar. Aqui também, naturalmente.

        Uma grande parte dos artigos de jornal, dos textos de opinião, das comunicações académicas, dos suplementos de revistas, das intervenções em sessões de evocação, observa-a, porém, a partir de posições extremas. Sejam aquelas marcadas por uma rejeição absoluta, de pendor fortemente anticomunista e, de caminho, voltadas contra toda a esquerda – veja-se o que aconteceu em Portugal com as insólitas acusações de «bolchevismo» lançadas a propósito da constituição da atual maioria parlamentar –, ou inversamente, numa posição puramente celebratória e muitas vezes nostálgica das experiências do antigo «socialismo real», cantando panegíricos e omitindo erros colossais. Retomando até leituras ultrapassadas, sem um esforço crítico de análise ou atenção à investigação histórica recente. (mais…)

          Atualidade, Democracia, História, Memória, Olhares

          Medo e liberdade

          Amigos sinceros, combatentes, por vezes com provas dadas de militância em causas e momentos decisivos, algumas vezes em horas bem difíceis, quando foi preciso correr riscos e suportar as consequências da escolha, apesar de não aceitaram as proclamações daquele lado da esquerda que não se exime de defender «ditaduras justas», calam-se ou recuam demasiadas vezes na afirmação das suas posições. Por medo de consequências pessoais se o não fizerem. Por medo, repito. Não de serem presos ou silenciados, obviamente, pois vivemos em democracia, mas de serem incomodados, isolados ou, pior, confundidos com a direita, pois uma das estratégias dessa gente, com décadas de triste tradição, consiste precisamente em classificar tudo o que divirja dos seus dogmas de ser «objetivamente de direita». O que lhes peço é que persistam, que não temam, que não se verguem ao medo e ao silêncio. Que falem de forma tranquila mas assertiva, substantiva, sólida – mas também emotiva, quando for preciso – em nome da sua consciência, de uma justiça justa e do bem essencial da liberdade. Ser de esquerda também é, ou essencialmente é, isto.

          Publicado originalmente no Facebook

            Apontamentos, Atualidade, História, Olhares, Opinião

            Empirismo e conhecimento

            Quem se dedica profissionalmente a temas de história ou de ciência política que se ocupam do mundo contemporâneo sabe que tem, frequentes vezes, de escutar pessoas que acreditam, pelo facto de terem vivido determinado tempo, ou lido dois ou três livros sobre o tema, saber mais deles que aquelas que os estudam durante anos e conhecem trabalhos atualizados. É a lógica oca da «universidade da vida». Costumo contar este episódio: certa vez, depois de ter terminado a minha intervenção numa conferência sobre o movimento estudantil nos anos 60/70, veio ter comigo uma pessoa do público que me disse mais ou menos isto «gostei muito da sua intervenção, mas olhe, nada do que disse é verdade, porque eu estive lá e sei que não foi assim». A minha reação foi convidá-la para um café e explicar-lhe onde tinha ido buscar a dose de verdade documentada com a qual se confrontava a sua longínqua memória. No final deu-me razão e pediu desculpa. Disse-lhe que não tinha nada de pedir desculpa, pois não tinha a obrigação de saber aquilo que eu sabia por esforço próprio e dever de ofício.

            Publicado originalmente no Facebook

              Apontamentos, História, Olhares

              Hipocrisia e oportunismo

              Não sendo mais-que-perfeito, tenho uma a atitude social que considero positiva. De início, provavelmente por atavismo. Depois por educação, escolha política e motivos de natureza ética. Consiste em tratar os outros sempre da mesma forma, independentemente da sua condição social ou lugar profissional. Tratar o rico e o pobre, o presidente da junta e o varredor, o general e o soldado, homens e mulheres, de modo idêntico, sempre o mais democrática possível. Procurando, salvo quando o interlocutor não age da mesma forma, fazê-lo de maneira afável e respeitosa. (mais…)

                Apontamentos, Olhares, Opinião

                Coimbra e os álbuns de retratos

                Nos últimos anos costumo ver, sobretudo nas redes sociais, onde este estado de espírito mais facilmente se revela, a expressão precoce, por parte de muitos alunos da Universidade de Coimbra que frequentam o último ano da sua licenciatura, de declarações inflamadas sobre a «saudade» que já sentem da cidade e da vida que nela real ou ficticiamente levaram. Fazendo-o ainda que aqui contem prosseguir os estudos de pós-graduação. Estão a viver o seu «tempo» – hoje tão curto, por comparação com o dos antigos cursos de quatro ou cinco anos –, e já têm saudade dele. O que é, de certo modo, um contra-senso: agem como se a sua vida se encontrasse em suspenso, pois ainda não é o que será, mas já não é o que foi. Alguns arrastam este estado de espírito ao longo de todo o último ano letivo. (mais…)

                  Apontamentos, Cidades, Coimbra, Olhares

                  O veneno do tabloidismo

                  Parafraseio de forma muito livre a tantas vezes citada frase com a qual abre o Manifesto Comunista, publicado por Marx e Engels em Fevereiro de 1848: um espectro ronda o mundo da informação, esse é o espectro do tabloidismo. Por toda a parte os jornais mimetizam o modelo de publicação, surgido em meados do século passado, que visava conquistar novos públicos privilegiando o espetacular, o fácil, o fútil, o breve, o colorido e ilustrado, fundado no escândalo, no sexo, na violência e na dor dos outros. E quanto mais, melhor, pois supostamente mais vende. Mas se a tendência existe há largas décadas, ela permaneceu durante algum tempo confinada a certas margens, ou a públicos específicos. Isto fazia com que existissem publicações diferentes para diferentes pessoas, cada uma com voz própria e vocacionada para comunidades de leitores que partilhavam distintos interesses, escolhas, linguagens ou expectativas. (mais…)

                    Democracia, Jornalismo, Olhares, Opinião

                    O incêndio e a calamidade como arma

                    Hesitei um pouco ao escolher o tema desta crónica. Não porque não valha a pena falar ainda do grande e terrível incêndio que há cerca de uma semana devastou parte significativa dos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, e tanta destruição e morte trouxe àquela região. Mas porque a forma como este tem sido tratado leva a considerações sobre escolhas e comportamentos dos quais me agrada pouco falar. Porém, como é hábito dizer-se, o que tem de ser tem muita força. (mais…)

                      Acontecimentos, Democracia, Olhares, Opinião

                      Quanto vale o localismo

                      Ao contrário do que declara o ditado, não existem males que vêm por bem. Uma coisa má não pode ser trocada por outra boa, pois são experiências diferentes que cada um guarda consigo em lugares também diversos da memória e da experiência. Mas, sim, é banal mas verdadeiro: é muitas vezes no meio do pior que emerge o que conseguimos mostrar de melhor, de mais generoso e de mais intensamente humano. (mais…)

                        Acontecimentos, Apontamentos, Atualidade, Olhares

                        Nos 50 anos da Guerra dos Seis Dias

                        Sei dizer com toda a precisão onde me encontrava há exatamente 50 anos. Estava em casa dos meus pais, seguindo através de um velho rádio, em ondas curtas, uma espécie de relato em direto, transmitido por diversas estações internacionais, dos primeiros momentos da Guerra dos Seis Dias. Estou a falar, é claro, do conflito armado que entre 5 e 10 de Junho de 1967 opôs Israel a uma frente de países árabes – Egito, Jordânia e Síria –, apoiados pelo Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Argélia e Sudão, concluído com a derrota humilhante da coligação e com a ocupação israelita de novos e imensos territórios. (mais…)

                          Direitos Humanos, História, Memória, Olhares

                          A pluralidade contra a norma

                          Apesar de subsistirem fatores de desigualdade no acesso à informação, à livre expressão da opinião e à independência perante as várias formas de poder – do económico ao político, do central ao local –, vivemos felizmente numa sociedade na qual ninguém pode ser formalmente coagido a pensar ou a agir como os outros. Apesar da fruição da liberdade não ser rigorosamente idêntica para todas as pessoas, em ambientes democráticos como o nosso cada uma conserva uma margem para pensar, para falar, para escrever de forma autónoma, sem que para tal tenha de limitar-se a reproduzir ou a aceitar acriticamente as ideias, as opiniões e as escolhas que são maioritárias ou se apresentam como consensuais. (mais…)

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                            Nós

                            Nós é um romance distópico, da autoria do escritor russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937), lançado em 1924 quando a revolução bolchevique vivia ainda a fase, que se seguiu de imediato ao termo da guerra civil entre vermelhos, brancos e verdes, em que a criatividade literária, artística e científica era estimulada pelo governo revolucionário. Mas a obra de Zamyatin – exilado em 1905 pelo czarismo, e mais tarde por Estaline, que a pedido de Gorky o deixou partir em 1931 para Paris, onde morreria na maior miséria – preludia já, com grande antecedência, distopias críticas dos sistemas assentes no pensamento único, na repressão de toda a divergência e na extensão do autoridade do Estado absolutamente a todas as esferas da vida, como o foram o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1938), e 1984, de George Orwell (1949). Em Nós ficciona-se, de facto, uma sociedade na qual todos vigiam todos, ao ponto de não restar espaço para a liberdade individual e para qualquer forma de crítica ou divergência. O «eu» desaparece então, esmagado pelo coletivo.

                            Não quero fazer comparações excessivas. Vivemos felizmente numa sociedade democrática, onde, apesar da desigualdade no acesso à informação e ao poder, ninguém coage formalmente alguém a pensar ou a agir como os outros. Mas muitos meios de comunicação social têm vindo a disseminar sinais de um suposto unanimismo que evoca aquele universo opressivo. Num só dia escutei centenas de vezes, na comunicação social, referências a um «nós» que identificava os portugueses, todos eles, com os crentes de uma religião, os adeptos de um clube de futebol ou mesmo aqueles que gostam de uma canção ligeira. É claro que tais conjeturas não passam de generalizações abusivas. Mas são sinais da instalação de uma espécie de norma, tendente a desqualificar quem não pensa igual, não reza igual ou não gosta da mesma coisa, que tem vindo a ganhar curso. O comportamento de algumas pessoas, consciente ou inadvertidamente defensoras da norma, visível em particular nas redes sociais, atesta-o. O totalitarismo, hoje, não se funda necessariamente em regimes de um só partido, apoiados na persuasão ideológica, na censura e na polícia, nem em sistemas sociais que reagem caninamente às imposições dos mercados financeiros: a disseminação mediática da norma também o acalenta. Cuidado com isso.

                            Ilustração de Clifford Harper

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                              LIBERDADE (a sério)

                              Só pode dizer que não sente a liberdade quem jamais viveu sem ela. Ou quem não sabe dos lugares do mundo e dos tempos sombrios em que ela foi – em alguns deles continua sendo, convém lembrar – calcada como um bem supérfluo, do qual se pode prescindir em nome de valores supostamente maiores: uma ideologia ou uma religião, uma pátria, o desenvolvimento material, a igualdade formal, o bem-estar pessoal ou coletivo. «A paz, o pão, habitação, saúde, educação», cantados no refrão do Sérgio Godinho, não bastam. De nada servem sem liberdade para os viver e, se necessário, para contestar também o modo como são geridos. Ou para pensar e fazer, até ao limite do possível, o que se escolher pensar e fazer.

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                                Entre o «contra» e o «por»

                                Fot. Pierre Lagarde

                                Em entrevista concedida ao Le Monde a propósito das eleições francesas, Jürgen Habermas considerou que a esquerda «deve deixar de ser um espaço para o ressentimento», sendo essa viragem que poderá torná-la «política e humanamente maioritária.» A palavra «ressentimento» toma aqui o seu sentido mais amplo, incorporando pesar, ofensa ou infortúnio. Tal ideia pode ligar-se a uma outra, proposta por Enzo Traverso a propósito daquilo a que chama «melancolia de esquerda». Esta traduziria uma imersão em projeções utópicas vinculadas ao passado, usando-as como alimento da dose de esperança de que precisa para continuar a viver.

                                Tanto o filósofo alemão como o historiador italiano são homens da esquerda e ambos abordam a dificuldade que esta tantas vezes sente em arquitetar futuros credíveis. Sobretudo futuros imediatos, que mobilizem para a ação e permitam sustentar projetos que não se frustrem logo no primeiro embate com a realidade, como aconteceu recentemente na Grécia com o Syriza. Na paisagem política portuguesa essa dificuldade pode associar-se à atitude geral dos dois partidos parlamentares que, sendo pedra essencial no atual equilíbrio de poder, mas não estando representados no governo, experimentam alguma dificuldade em articular este papel com a sua identidade política, com aquilo que deles espera o seu eleitorado mais fiel e com aquele que é o seu natural desejo de ampliar a influência política. (mais…)

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                                  A demagogia na massa do sangue

                                  Maquiavel na cidade

                                  Na década de 1980 costumava passar três ou quatro aulas em cada ano a estudar com os alunos o pensamento político de Nicolau Maquiavel. Parte do meu esforço consistia em contradizer o sentido então vulgarmente atribuído ao adjetivo «maquiavélico» – nessa época ele ainda era de uso corrente –, demonstrando que não fazia justiça aos ideais mais sinceros e fundamentados do diplomata florentino. Na verdade, como modelo do regime perfeito, Maquiavel apontava o exemplo «democrático» da República Romana, e não o poder tirânico centrado na figura do Príncipe, sugerido na obra homónima, escrita em 1513 num contexto particular. No entanto, foi a justificação do segundo aquela que prevaleceu como seu principal legado. (mais…)

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                                    (Nôtre, leur) France

                                    Merece uma observação um pouco mais longa, mais densa e, tanto quanto possível, arrefecida, mas para já fica o essencial. Diria que, com o desaparecimento físico de Mário Soares, desapareceu também um dos últimos políticos portugueses de primeiro plano que tinham na França, na dimensão mais cosmopolita, laica e progressista de uma parte da sua cultura, no imaginário poético, político e vivencial de Paris, na relação com um universo espacial e geracional essencialmente francófono e francófilo, um padrão de reconhecimento e de intervenção no mundo. Também por isso, as palavras de Baudelaire, retiradas de «Le voyage» e ditas pela filha Isabel na cerimónia mais formal das suas exéquias, soou como uma despedida e um epitáfio. «Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre! / Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! / Si le ciel et la mer sont noirs comme de l’encre, / Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!» Não se trata de um drama – embora para os mais nostálgicos possa sê-lo -, pois a vida prossegue e o mundo não cessa por isso de rolar, mas não deixa de ter algo de trágico. Ou, pelo menos, de sinalizar um render da guarda.
                                    [Originalmente publicado no Facebook]

                                      Apontamentos, Biografias, Olhares