Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire,«tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»
Half a league, half a league, / Half a league onward, All in the valley of Death / Rode the six hundred. “Forward, the Light Brigade! / “Charge for the guns!” he said: Into the valley of Death / Rode the six hundred.
Alfred Tennyson, 1885
Comecei ontem Crimea: The Last Crusade, o último livro de Orlando Figes, que comprei em versão e-book para poupar espaço na estante e descansar algum músculo, pois sempre são mais 600 páginas. Leio-o pelo prazer de saber mais sobre um acontecimento que conheci cedo, através de descrições em «livros de quadradinhos», e me atraiu logo por situá-lo então num território vagamente epopeico de acção e aventura, com episódios como a Carga da Brigada Ligeira, durante a batalha de Balaclava, o cerco de Sebastopol ou a acção humanitária de Florence Nightingale. Mas leio-o também por poder seguir de novo um historiador que tem o dom raro e invejável de combinar o rigor e a profundidade da pesquisa com uma capacidade narrativa absolutamente magnética. (mais…)
Em 1941, Mircea Eliade, o professor e escritor reconhecido como um dos fundadores da história moderna dos mitos e das religiões, foi nomeado adido cultural e de imprensa junto da embaixada da Roménia em Lisboa. Por aqui se manteve até 1944, vivendo por isso em Portugal um dos períodos mais agitados da história europeia do século passado, incluindo-se nesta agitação a vivida então no seu conturbado país, cujo governo por essa altura colaborava activamente com a Alemanha de Hitler. Nesta «terra incógnita» para o romeno comum, vem encontrar um «oásis de tranquilidade», e uma acalmia na sua própria vida, que rapidamente associa à lógica de funcionamento do Estado Novo, ao padrão de vida que este impõe à sociedade portuguesa e à figura tutelar, aos seus olhos providente e benevolamente paternal, de Oliveira Salazar. (mais…)
É cada vez maior o número de trabalhos sobre a história recente – a nossa e a dos outros – que recorrem ao depoimento oral como fonte absolutamente decisiva. A tendência não é nova, uma vez que se tornou patente já em meados do século XX quando a irrupção prática e metodológica da abordagem histórica do presente forçou a uma revisão do pressuposto, ainda dominante entre as duas primeiras gerações da Escola dos Annales, segundo o qual um corte com o passado seria garantia essencial para se chegar a um conhecimento seguro do passado. Esta legitimação da oralidade não foi, de início, nada consensual entre a comunidade dos historiadores, para quem os testemunhos, materializados em entrevistas necessariamente mediadas pelo investigador, eram por vezes considerados fantasiosos e tomados como factor negativo de «subjectivação do passado». Jogando um papel decisivo neste processo, os primeiros estudos sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto cedo mostraram que, ao contrário, esse instrumento representa uma forma de recuperação do vivido que nenhum outro documento, seja ele um diário, um relatório, um livro ou uma imagem, está em condições de colocar à disposição dos investigadores e dos leitores. (mais…)
Vamos lá a uma cena um bocado retro. O ano era 1968, com toda a certeza. Do mês não me recordo bem, mas sei que tinha faltado às aulas para ir à matinée. Como já estava um bocado de calor, podemos supor que era Maio. Soa bem contar que isto aconteceu, e provavelmente aconteceu, no final de uma tarde de Maio. De 68. Um casal de namorados, que se tinha sentado umas filas à frente, não aguentara as desafinações de Bob Dylan em Don’t Look Back e fora-se embora a resmungar em surdina. O projeccionista escondia-se no seu cubículo, protegido pelo foco de luz. O arrumador desaparecera. E enquanto em Paris se erguiam barricadas e se marchava pelas ruas aos gritos – «Ce-n’est-q’un-début-continuons-le-combat!» –, fiquei absolutamente só, espectador único na sala escura de um cinema de província malcheiroso e desconfortável, a imaginar mundos possíveis. No Verão, estava decidido, iria estoirar as economias a comprar uma guitarra e uma harmónica. E mudaria de vida. Eu tinha quinze anos e Robert Allen Zimmerman, o rapaz do ecrã, raios o partam, deus o abençoe, faz hoje 70.
Benghazi, Maio de 2011 | Fotografia de Rodrigo Abd
O título poderia ser: «No século 21 a guerra também é estilo». A reverberação mediática da imagem induz este efeito. Estranho, paradoxal, mas apenas na aparência.
Tomo conhecimento das novas exigências de Frau Merkl a propósito dos dias das férias e da idade da reforma dos portugueses, e ponho-me uma pergunta que não tenho visto suficientemente colocada. A negociação de uma dívida, seja ela de que natureza for, implica uma intromissão na vida familiar do devedor? Se eu pedir dinheiro emprestado para consertar a casa ir-me-á agora o banco forçar a provar que não gasto dinheiro em coisas supérfluas como jornais, espectáculos de teatro ou refrescos de groselha? E uma outra, ainda mais necessária e inquietante: não estamos a assistir a intromissões completamente abusivas em matérias que respeitam ao grau de independência próprio de um Estado soberano? Admito que quem empresta reivindique certas garantias – já os antigos usurários ou os donos dos estabelecimentos de «prego» o faziam, e além disso os bons samaritanos ficaram-se pelos tempos bíblicos – mas tal jamais implicou que a vida de quem se vê forçado a recorrer a esse expediente extremo passe a ser escrutinada, controlada, determinada pela vontade de quem mexe os cordéis da bolsa. Tudo isto começa a ficar parecido, demasiado parecido, com o caldo de cultura do qual saíram as regras autocráticas impostas pela diplomacia de Ribbentrop e a política de ocupação e rapina do Terceiro Reich. Mas foi também por causa delas que a Alemanha perdeu a guerra.
Não, não retirei isto de um romance com as folhas amareladas de Alves Redol ou de John Steinbeck. Quando tinha uns seis ou sete anos costumava acompanhar o meu pai, na altura representante de uma companhia de produtos químicos, em visitas periódicas às fábricas de lanifícios da minha região. Lembro-me muito bem, muito bem mesmo, de entrar em instalações antigas, algumas ainda com grandes máquinas a vapor, que alimentavam negócios aparentemente prósperos devido aos baixos salários e às péssimas condições de trabalho impostas aos operários. Não havia sequer «hora do almoço» tal como a concebemos hoje: bastavam uns minutos para eles comerem, controlados pelo encarregado, uma marmita de arroz acompanhada de pão e de uns goles de vinho. Tudo começava e acabava ao som de um apito – ainda o oiço perfeitamente –, ali, no soalho de pedra ou na relva, ao lado da máquina durante o inverno, ou do lado de fora, à sombra de um eucalipto, quando o tempo aquecia.
Hoje mesmo, num centro comercial amplo e moderno, paredes meias com a área da restauração onde fui comer com todo o conforto um almoço rápido, vi um grupo de mulheres idosas e vestidas de escuro, acompanhadas por algumas crianças, visivelmente chegadas de um Portugal que parecia de outras eras. Sentadas também no chão, com a complacência dos empregados da empresa de segurança, comiam calmamente, as sandes de broa de milho com chouriço e as laranjas que traziam consigo embrulhadas em lenço. O que mais me impressionou, aquilo que mais temo, é que esta cena não me pareceu configurar um vestígio raro e anacrónico de um passado em vias de desaparecer, mas sim desenhar, como num último ensaio, a antevisão daquilo que aí vem.
A Coca-Cola fez ontem 125 anos de existência nas bocas do mundo. Até chegar a «água suja do imperialismo» ou ao poderoso diurético um dia recomendado numa entrevista intimista de Lula, o caminho foi longo. Começou cedo, a 8 de Maio de 1886. Com a designação altamente suspeita de «Pemberton’s French Wine Coca», foi inicialmente anunciada como uma bebida para intelectuais, revigorante do cérebro e tónica para os nervos fragilizados. Mas rapidamente arrancou para uma história de sucesso, cujos contornos mais pitorescos podem ser conhecidos no fascinante Made in America, de Bill Bryson (da Bertrand). Por aqui, a efeméride é evocada num colorido relato apresentado por Maria Filomena Mónica em «Trinta anos que mudaram Portugal. 1961-1991», texto incluído na sua colectânea Cenas da Vida Portuguesa, publicada há uma dúzia de anos pela Quetzal. Sabendo que a sua completa fiabilidade histórica requeria uma identificação da fonte que não encontrei, não resisto, ainda assim, a reproduzir o episódio relatado pela popular socióloga. Aqui vai: (mais…)
Maurice Nadeau está quase a fazer cem anos. Parisiense de quatro costados, filho de um merceeiro morto na batalha de Verdun, antigo militante do PCF tornado trotskista, foi e continua a ser muitas coisas, quase sempre ao mesmo tempo: professor, escritor, crítico literário, director de colecções e de revistas, militante, e, talvez acima de tudo, editor. Foi próximo de Benjamin Péret e de André Breton – com quem viria a romper em 1945 após publicar uma Histoire du Surrréalisme da qual o poeta não gostou – e depois responsável pela página literária do Combat, o jornal da Resistência dirigido por Albert Camus. Fundou e ainda dirige o bimensário La Quinzaine Littéraire. Descobriu e acompanhou os primeiros movimentos na edição de Céline, Dagerman, Bataille, Barthes, Michaux, Miller, Sciascia, Quenaeau, Gombrowicz, Koestler, Perec, Leiris… Chega? Só lamenta, diz ainda hoje, ter um dia recusado… Samuel Beckett. Quando olhamos trajectos destes corremos sempre o risco de nos tomarmos por pessoas pouco úteis e com uma vida um tanto ou quanto aborrecida.
Segundo o seu autor, este livro é o testemunho de um fracasso. Mas será melhor não o tomarmos demasiado a sério. Acontece apenas que Anatomia de um instante foi concebido como um romance e acabou por não o poder ser. Javier Cercas percebeu-o de imediato quando começou a recolher dados sobre o acontecimento que resolvera ficcionar e se viu confrontado com um volume surpreendente de informação. Percebendo que nessas condições seria um enorme desperdício abordar o tema na perspectiva da pura construção romanesca, decidiu reorientá-lo para o campo do ensaio. E assim apareceu esta aliciante história do dia 23 de Fevereiro de 1981, quando, como parte de uma conjura militar contra a «transição democrática», um destacamento da Guardia Civil espanhola, comandado pelo teatral tenente-coronel Tejero Molina, ocupou pelas armas o Congresso dos Deputados. Sequestrando-os a todos, bem como ao executivo, que ali se encontrava presente para a tomada de posse de Leopoldo Calvo Sotelo, o sucessor de Adolfo Suárez na presidência do governo. Gravado pelas câmaras da TVE, propagado de imediato pelos telejornais do mundo inteiro, o drama impôs-se por si mesmo, revelando, na intervenção dos actores principais, as dificuldades e os paradoxos com os quais convivia na altura a jovem democracia espanhola. (mais…)
Três investigadores noruegueses juntaram-se para organizar este volume sobre o historial duradouro e violento do anti-semitismo. Como ponto de partida, consideraram ser uma definição simplista ligá-lo ao ódio aos judeus só por estes o serem, atribuindo-lhe um sentido bem mais amplo: tomam-no como expressão de rancor em relação aos judeus, sem dúvida, mas mais fundada no imaginário das características que lhes são atribuídas do que no seu lugar social concreto. Dito de outro modo, o anti-semitismo é, para os autores da obra, um processo de transformação dos judeus reais em «judeus» imaginários, conduzindo à sua demonização e à defesa de medidas repressoras ou punitivas contra a sua presença, onde quer que esta se faça sentir. Avançam pois, de certa maneira, com uma argumentação análoga à usada entre nós por António José Saraiva quando qualificou a Inquisição portuguesa como uma «fábrica de judeus», descobrindo-os, inventando-os, onde eles de facto não existiam. Toda esta História, exaustiva na detecção de sucessivos exemplos da afirmação de ideias e de práticas de natureza anti-semita, segue este princípio: à caracterização do «judeu» têm sido demasiadas vezes associadas particularidades inteiramente ficcionadas que mascaram ou moldam a realidade.
A obra segue ao detalhe quatro momentos na cronologia do anti-semitismo: o anti-judaísmo com motivações religiosas, forjado pelo cristianismo, que pode ser encontrado desde a Idade Média até ao período das Luzes; o anti-semitismo moderno que se desenvolve nos finais do século XIX com base em supostas bases científicas, conduzindo no limite ao Holocausto; o anti-semitismo pós-Auschwitz associado a teorias negacionistas que visam reinterpretar o destino dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial; e, finalmente, um anti-sionismo contemporâneo, supostamente «de esquerda», fundado na condenação sem direito de resposta do «objectivo judeu» do Estado de Israel. Em Jesus da Nazaré, recentemente publicado, Bento XVI ilibou «o povo judeu no seu conjunto» da morte premeditada de Cristo, uma atitude que tem uma óbvia intenção política: a anulação do princípio fundador do anti-semitismo que é a sua abjecção, ao longo de séculos, por parte do cristianismo. A necessidade sentida pelo papa de se pronunciar publicamente sobre o tema realça a subsistência deste ódio orientado na nossa vida colectiva e, consequentemente, o interesse deste livro.
Uma advertência sobre a tradução: mesmo sem cotejar o texto com o original norueguês, percebe-se a imprecisão de muitas frases e termos, estorvando a clareza das ideias e atenuando um pouco o prazer da leitura.
[Trond Berg Eriksen, Hakon Harket e Einhart Lorenz, História do Anti-Semitismo. Edições 70. Trad. de João António Correia de Sousa Araújo. 694 págs. Publicado na revista LER de Abril de 2011.]
Retomo a série de livros deixados para trás e que num destes finais de semana recuperei do silêncio. Volto aos sublinhados a lápis e dou de frente com um outro eu (ainda assim, lá muito no fundo e limpando bem a poeira, provavelmente o mesmo).
Alexandre Serafimovitch, A Torrente de Ferro [Edições Maria da Fonte, 1977]
Acreditava que, dada a data da edição portuguesa, já me teria chegado no refluxo da crença total num modelo finalista de evolução da humanidade e na dimensão redentora da Revolução de Outubro. Mas afinal parece que este romance-panfleto, publicado pela primeira vez em 1924 por A. Serafimovitch (1863-1946), um antigo cossaco reconvertido em jornalista e escritor que o regime soviético elevou aos limites da fama e das honras públicas, ainda tocava uma qualquer corda sensível.
«Os homens transmitem uns aos outros, palavras, fragmentos de frases tomadas aos oradores, sem saber muito bem o que dizem, mas sentindo que, separados do mundo pelas estepes imensas, pelas montanhas intransponíveis, pelos bosques espessos e obscuros, realizaram, na parte modesta que lhes cabia, o mesmo que se executava na Rússia, aos olhos do mundo inteiro, sem qualquer ajuda. Realizaram-no eles, sozinhos. Não o compreendem bem. Sentem-no e não sabem exprimi-lo.
Os oradores sucederam-se e falaram até sobrevir o azul do crepúsculo. Gradativamente, crescia em todos um sentimento de felicidade impossível de conter: o sentimento do vínculo novo que os unia com aquela imensidão tão conhecida e tão ignorada de todos, que se chama a Rússia dos Sovietes.»
Se tivesse permanecido entre nós, Félix Nadar (1820-1910) – o valente figurão, o fotógrafo de Baudelaire, de Courbet, de Delacroix, de Verne, de Dumas, de Bernhardt, de Clemenceau, de Doré, de Nerval, de Liszt, de Sand, de Gautier, de Thiers – completaria hoje a bonita idade de 191 anos. Sem ele a memória visual da cultura europeia de Oitocentos teria sido outra. Bem mais pobre e cega, sem dúvida.
Não acredito na absolutização da ideia mil vezes proclamada como grandiosa de «escrever para a gaveta». Mesmo o escritor não publicado – ou aquele que sabe ter escassas ou nulas hipóteses de vir a sê-lo – escreve sempre para outro alguém. Será, se para mais ninguém for, para a/o amante, para um amigo cúmplice ou para o leitor ideal que um dia cairá do céu. Em contrapartida, não têm conta os escritores condicionados pela censura ou pelo medo do julgamento público impiedoso que escreveram a maior parte da obra, se não toda ela, sem a perspectiva de que esta pudesse vir a ser editada. Em «Amar Dostoievski», um artigo de Susan Sontag integrado na compilação póstuma Ao Mesmo Tempo, evoca-se o caso peculiar de Leonid Tsípkin (1926-1982).
Este médico russo de origem judaica viu a família ser repetidamente atingida pela repressão estalinista, e a ele próprio debaixo de constante suspeita, tendo por isso resolvido escrever apenas para os mais chegados. Recusando-se até, com medo de problemas insolúveis com o KGB, a deixar que os seus originais circulassem clandestinamente. Da sua perseverança contida diz a dado passo Sontag: «Escrever sem esperança ou perspectiva de ser publicado – que reserva de fé na literatura isso não implica?». Acabaria no entanto por aceder a publicar no estrangeiro Verão em Baden-Baden, romance construído em volta de um episódio da vida de Fiódor Dostoievski. A 13 de Março de 1982, um semanário nova-iorquino começou a publicá-lo sob a forma de folhetim. A 15 de Março, uma segunda-feira, Tsípkin foi despedido do instituto médico moscovita onde trabalhara a maior parte da vida. A 20 de Março sentiu-se mal quando estava em casa a traduzir um artigo; deitou-se, chamou pela mulher e morreu. Mas durante sete dias foi «autor publicado».
Há cerca de uma semana passei uma tarde a arrumar livros que tinham ficado para trás, na casa onde nasci, onde me criaram e onde não voltarei a dormir. A casa está agora desabitada. Está muda, vazia. Imagino que à noite se oiça, ainda mais, a chuva sobre o velho telhado, o vento empurrando os ramos da laranjeira contra a janela do meu quarto, o ruído dos motores acelerando estrada fora até se calarem ao longe. Mas só o posso imaginar, pois já lá não estou. Do que ali vivi sobra apenas a memória. Algumas fotografias também. E sobretudo os livros que li no tempo em que lá dormia, quando ali morava a minha segura retaguarda. Foram eles, os livros, os sinais que fui deixando ficar, como aviso de que não havia partido para sempre. Agora que tudo acabou, trouxe-os comigo. Os últimos, que não couberam na mala do carro, virão na próxima jornada. São um elo, são muito do que fui, são um pouco do que sou, deixei de ser ou jamais serei. Percebo-o agora quando regresso, com ou sem surpresa, aos sublinhados obstinados, seguros, ingénuos ou dementes.
Lenine, Como iludir o povo com os slogans de igualdade e de liberdade [Centelha, 1974]
Lido em algum momento durante os meses do PREC, provavelmente ainda em 74. Uma obra de referência na reconhecível escrita martelada de Lenine, que o rasto da Revolução de Outubro transformaria em template universal e intemporal. Na época, como mais de cinquenta anos antes na Rússia soviética – fora originalmente um discurso pronunciado em Maio de 1919, nitidamente decalcado de O Estado e a Revolução – este texto simplificava o complexo para dissipar a dúvida das almas bolcheviques menos firmes na recusa da democracia parlamentar.
«Quando só houver no mundo trabalhadores e as pessoas se esquecerem de pensar em como era possível ser um membro da sociedade e não um trabalhador – isto não acontecerá tão cedo, e a culpa é dos cavalheiros burgueses, assim como dos cavalheiros intelectuais burgueses – então seremos pela liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reunião significa liberdade de reunião dos capitalistas, dos contra-revolucionários. Lutamos contra eles, e havemos de abolir essa liberdade.
Estamos numa batalha – é este o significado da ditadura do proletariado. Passaram os dias do socialismo ingénuo, utópico, fantasista, mecânico e intelectual, quando se pensava que bastava convencer a maioria das pessoas e pintar um belo quadro da sociedade socialista (…).
A Humanidade só pode atingir o Socialismo através da Ditadura do Proletariado. Ditadura é uma palavra crua, séria, sangrenta e terrível, e tais palavras não devem ser atiradas levianamente. Se os Socialistas lançaram um tal slogan é porque sabem que a classe dos exploradores só cederá em resultado duma luta desesperada e sem piedade e tentará disfarçar o seu domínio por meio das mais variadas palavras agradáveis.»
Há uns meses fui desafiado pela Plataforma Anti Praxe Académica, de Coimbra, a escrever um texto para editar no seu P.A.P.A.zine. Saiu aquilo que abaixo se transcreve. Sei que não é fruta da época – já passou a Latada e ainda não chegou a Queima, datas-magnas da vida estudantil para grande número de universitários – mas talvez por isso mesmo, porque seja tempo de menos adrenalina movida a superbock, seja também a altura de o divulgar aqui. Didactismo e panfletarismo qb, que há gostos para tudo.
Para a maioria dos estudantes que nas décadas de 1960-1970 frequentaram a Universidade de Coimbra – nas outras o problema nem se punha –, a praxe académica não tinha grande peso. Simplesmente porque estava a desaparecer. Antes do «luto académico», decretado em 1969 para responder à repressão dos estudantes, já a maioria destes pouco se preocupava com esse tipo de prática simbólica. O desenvolvimento do associativismo estudantil e o alastrar de uma concepção tendencialmente democrática e igualitária da sociedade, a recusa de um certo «espírito de rebanho» que as autoridades apreciavam, iam transformando a praxe, como rotina de base corporativa e elitista, em algo de suficientemente anacrónico para ser ignorado por um número crescente de alunos. Até mesmo o uso do traje académico vivia uma fase de claro recuo, embora alguns ainda dele se servissem casualmente. Ao fechamento da batina, imposto pela decisão colectiva do «luto», seguiu-se por isso, em poucos meses, o seu quase completo desaparecimento.
O que aconteceu nessa altura foi assim a confirmação de uma transformação de facto: não se fez desaparecer a praxe do dia-a-dia estudantil, pois aí ela já quase não existia, mas acabou-se com a festa académica tradicional e com a ostentação pública da imagem elitista do aluno universitário. Esta mudança serviu para unir os estudantes contra o governo da altura, aproximando-os do cidadão comum e mostrando que consideravam existirem situações muito mais importantes do que a ocasional exibição do destaque social e da capacidade para consumir álcool. A presença de um número cada vez maior de mulheres na academia acentuaria aliás a metamorfose, limitando o «prestígio» da boémia masculina e da «autoridade da moca» na qual se fundava parte da velha ordem estudantil. Os estudantes não se viram assim «privados da praxe», como li há meses num artigo de jornal: a larga maioria deles descartou-a porque já não a sentia como sua, servindo-se do que dela restava apenas para a sua luta anti-regime e anti-sistema. Por isso durante mais de dez anos, e com a Revolução de Abril pelo meio, ninguém mais pensou no assunto. Ele simplesmente parecia morto e enterrado. (mais…)
Custa pouco mais do que um maço de cigarros o livro de Stéphane Hessel, best-seller em França, que chegou agora às nossas livrarias. Indignai-vos! é a declaração de um imperativo, escrita por alguém que tem suficiente autoridade moral para o fazer: aos 93, herói da Resistência francesa, sobrevivente dos campos de concentração nazis e um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor continua lúcido e tão atento aos motivos para a indignação do nosso tempo quanto aos dos anos durante os quais, em vez de se calar, de pactuar, de desistir, arriscou a vida por causas imprescindíveis.
Alguns destes motivos são colocados pela necessidade de resistência à barragem de informação que se tem esforçado por fazer-nos acreditar não existirem alternativas ao mundo no qual vivemos: «Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos das medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada?» Tal é possível, conclui, «apenas porque o poder do capital nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado.» E continua: «Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.»
A fantasia segundo a qual não é possível actuar contra esta situação de desigualdade tem no entanto os seus agentes, responsáveis directos pelo disseminar de uma convicção de que as coisas «são como são» e de que o que há a fazer é cada um tentar arranjar maneira de passar à frente dos outros. O antigo resistente propõe então «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos.» Por isso, mesmo no coração das democracias – onde não é preciso atirar pedras ou pegar em armas para fruir do direito à palavra – indignar-se é preciso. Desde logo contra esta ditadura da inevitabilidade, responsável pela disseminação sedativa do princípio da desigualdade «natural». Foi isto que, ao aproximar-se do final da vida, Hessel sentiu que ainda era importante dizer. «A todos aqueles e aquelas que irão fazer o século XXI.»
Stéphane Hessel, Indignai-vos! Objectiva. Prefácio de Mário Soares. Trad. Paula Centeno. 52 págs.