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Insolente à maneira de Xerxes

Xerxes e Leónidas

Segundo notícia do Guardian, as autoridades iranianas, em comunicado lido por um conselheiro do presidente Ahmadinejad, investiram agora contra a indústria ocidental de cinema, que acusam de ter atacado injustamente o povo iraniano e a sua revolução. Ao mesmo tempo exigem que Hollywood peça «desculpas aos iranianos pelos insultos e acusações feitos nos últimos 30 anos». Uma vez mais, aquela que poderia ser uma crítica justa a perspectivas etnocêntricas, em forma de propaganda, que podem produzir maus resultados, transformou-se numa acusação agressiva e arrogante contra a liberdade de criação e de expressão nefastamente «ocidental» que o governo iraniano considera desprezível. Um dos exemplos apontados, acusado de ter descrito os persas como bárbaros e de ser «uma completa mentira», é o filme 300, de Zack Snyder – construído a partir da banda desenhada de Frank Miller e Lynn Varley, e, claro, do relato de Heródoto – cujo argumento se serviu do combate desigual, travado em 480 a.C. no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado de três centenas de combatentes espartanos, contra as tropas de Xerxes, numericamente muito superiores, que haviam invadido a Grécia central.

Deve dizer-se que o filme, estreado nos inícios de 2007 e rapidamente proibido no Irão, ensaia principalmente um devaneio, com uma fortíssima carga plástica, sobre o lugar de Esparta num combate «pela liberdade» – embora na realidade Esparta fosse dirigida por uma oligarquia militarista – contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Um filme que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que mais parecem caricaturas do bestiário de Tolkien, e representa os medo-persas como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Para além disso, trata-se de uma obra graficamente concebida como uma espécie de jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco de aventuras, a tender, como milhares de outras do mesmo género, para o extremar da separação política entre bons e maus, heróis e vilões. Com os do lado de lá do Mar Egeu a desempenharem, naturalmente, o papel desagradável.

Percebe-se no entanto, pelo menos em parte, o «argumento» iraniano contra este filme, pois os espartanos eram gregos, e os exércitos gregos defrontaram durante séculos aqueles que se organizavam para lá da Anatólia para os combater. Num e noutro sentido: Ciro, Dario e Xerxes avançado para cá, Temístocles e Alexandre o Grande marchando para lá, num espadeirar longínquo que alimentou ressentimentos para muitos séculos. Tudo isso deixou um rastro profundo na memória colectiva. Porém, o que aqui Ahmadinejad verdadeiramente pretende agredir é o modelo de cultura ocidental que tem no mundo grego – ainda que neste os espartanos fossem uns párias, embora uns párias temidos – o seu torrão fundador.

A história é bem conhecida, mas pode ser relembrada. Tudo começou nos séculos VI e V a.C, quando, em poucas gerações, os gregos inventaram a tragédia, o debate democrático, a cultura científica, o relato histórico, a reflexão filosófica. Tendo a perfeita consciência de estarem a criar valores e liberdades que não existiam em mais lado algum. Aos restantes povos chamavam eles de «bárbaros» que não eram senão «todos os outros», aqueles que não falavam a língua grega e que não viviam como cidadãos, sem leis comuns e submetidos a déspotas. Foi esta noção de possuírem aquilo a que hoje chamaríamos uma identidade própria, mais humana do seu ponto de vista, o que de mais profundo os gregos legaram aos romanos e que, através destes, se espalhou depois pelas regiões «a Ocidente», isto é, do lado no qual o sol se põe para quem circula por terra e por mar em redor da península balcânica. Pelo lado de lá, a Oriente do Ocidente, principalmente nas áreas por onde os iranianos procuram hoje impor a sua hegemonia, distribuíam-se – a expressão foi usada por Marx antes de Weber a retomar – formas múltiplas de um execrado «despotismo oriental» que reduzia a grande massa dos seus naturais ao estado servil e, por vezes, dela se servia como máquina de guerra. Dois universos, ambos imperfeitos mas absolutamente opostos, com destinos históricos também eles contrários, padrões de desenvolvimento muito diversos e, ao contrário daquilo que um dia Montesquieu desejou, experiências de vida comum que se foram sempre confrontando. É este cenário, definido durante séculos com um vencedor um tanto arrogante e um vencido por vezes humilhado, que Ahmadinejad, insolente à maneira de Xerxes, pretende agora fazer reverter.

    Atualidade, Cinema, Democracia, História

    Lenine, Krupskaia e Tzara

    Lenine e Krupskaia

    Não sei onde foi a revista Os Meus Livros buscar a ideia segundo a qual o escritor e ensaísta francês Dominique Noguez acaba de publicar um livro que «coloca em causa o pensamento e a obra de Lenine», afirmando, «após anos de aturada pesquisa» que afinal este era um dadaísta. A verdade é que Lenine Dada, um híbrido de ensaio histórico e de ficção, foi publicado há já vinte anos, em 1989, na Robert Laffont. Imaginando a possibilidade um instante único na história contemporânea da Europa: o encontro de 1916 no Cabaret Voltaire, em Zurique, entre o poeta romeno-francês Tristan Tzara, paizinho do Dada, e Vladimir Illitch, o já então inflexível chefe dos bolcheviques. Em 1916, Lenine e Nadezda Konstantínovna Krupskaia viveram de facto, de casa e pucarinho, a dez minutos a pé do Cabaret Voltaire, mas jamais se deram com semelhante gente. O livro não é novo e não coloca em causa coisíssima nenhuma. Uma nota destas apenas deixa ficar mal a publicação e levanta algumas suspeitas sobre o rigor da informação que fornece.

      História

      Vento de leste

      O Muro

      Mesmo depois de 1974 (a nossa marca para o lançamento de uma actividade editorial aberta) e de 1989 (a marca deles, os «do lado de lá», para o arranque pós-Muro de uma torrente de publicações não censuradas), a história da Europa de Leste – excluída deste espaço a antiga União Soviética, melhor explorada – manteve-se praticamente escondida para a larga maioria dos leitores portugueses. Para além de algumas referências em obras de natureza generalista, a observação do que aconteceu no meio século de história recente das «democracias populares» da Albânia, da Bulgária, da Hungria, da Polónia, da RDA, da Roménia, da Checoslováquia e da Jugoslávia, permaneceu confinado aos escritos da propaganda pró e anticomunista, à leitura ocasional de alguns livros importados, ou à mera referência a episódios circunstanciais. Essa enorme falha acaba de ser preenchida com a publicação, pela Teorema, de uma História da Europa de Leste da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias da autoria de Jean-François Soulet, o especialista francês em história da sociedade civil e em história comparada do mundo comunista que traça neste livro o longo e complexo percurso, simultaneamente nacional e comum, que parte da invasão da Polónia pela Alemanha nazi e encerra com a adesão de alguns daqueles países à União Europeia no ano de 2004. Informação elementar, é certo, mas para quem não possui praticamente nenhuma é mesmo por aí que se deve começar. Segue já para as bibliografias recomendadas.

        História

        O ovo da serpente

        Douch

        Com o princípio do julgamento de Kaing Guek Eav, o camarada Douch, responsável pela prisão de Suoel Sleng, em Phnom Penh, por onde passaram cerca de 16 mil pessoas, das quais apenas 20 dali saíram com vida, tornam a ser evocados alguns episódios do genocídio metodicamente organizado pelo regime khmer vermelho que governou o Cambodja entre 1975 e 1979. Procurando produzir, a partir do retorno ao grau zero do desenvolvimento económico, uma paraíso sem cidades, sem dinheiro, sem hospitais, sem universidades, sem livros e sem história, o «ultramaoísmo» dos khmers vermelhos recuperou e levou ao limite a lógica feroz da Revolução Cultural chinesa, conferindo-lhe uma base agora exclusivamente rural e depurando algumas das hesitações que terão feito com que esta não tivesse sido capaz de completar a sua missão. O resultado, calculam estimativas benevolentes, foi a morte de entre dois a três milhões de cambodjanos – a variabilidade dos números dá também uma medida da dimensão de uma política que em menos de quatro anos apagou do registo dos vivos cerca de um terço da população do país – e a destruição total tanto dos serviços públicos como dos sectores da produção não dependentes da economia de subsistência mais básica. De vez em quando aponta-se o dedo aos criminosos, nomeados um a um sempre que morrem de velhice ou são presentes a tribunal, mas deixa-se em paz o cimento ideológico, de recorte apocalíptico e supostamente redentor, edificador de humanidades «novas» sem alma, que deu coerência a uma doutrina transformada em arma de agressão e de terror. Esse continua a chocar o ovo da serpente.

          Democracia, História

          O Expresso tresvaria

          O comissário desaparecido

          Num acesso de extremo ridículo, o Expresso compara a saída de Joana Amaral Dias da direcção do Bloco de Esquerda a uma purga à maneira de José Estaline. E para ilustrar o absurdo – num apontamento que intitulou de um modo supostamente irónico «Do passeio no Volga à Convenção do Areeiro» – nada melhor que relembrar a recorrente prática estalinista de fazer desaparecer dirigentes dos lugares que ocupavam no Partido, na vida e na história, ilustrando a referência com uma conhecida imagem manipulada na qual ocorreu o apagamento de Nicolai Yezhov, desta maneira apresentado como um mártir da liberdade. Saberá o relator anónimo de tal apontamento quem era o seu momentâneo herói Yezhov, mais conhecido por «o Anão», Comissário do Povo para os Assuntos Internos e responsável entre 1936 e 1938 pela chamada «Yezhovschina», a fase mais aguda do Grande Terror durante a qual centenas de milhares de comunistas e de quadros do Estado soviético foram torturados, executados ou, com um pouco mais de sorte, condenados a um exílio siberiano geralmente sem retorno? Yezhov ousou a dada altura chantagear figuras próximas do «Pai dos Povos» – começara mesmo a reunir material para chantagear o próprio Estaline – acabando por ser substituído pelo nosso bem mais conhecido Lavrentiy Beria. Foi executado em 1940. A analogia estabelecida pelo «semanário de referência» é demasiado absurda para parecer cómica. O Bloco lá terá os seus defeitos, mas não consta que Joana Amaral Dias tenha saído aos empurrões e sido enviada para uma abjecta masmorra. Ou apagada, credo!

            Apontamentos, História, Opinião

            Noutro século

            Novo século

            Fabrice d’Almeida é especialista em história da propaganda pela imagem e director do Institut d’Histoire du Temps Présent de Paris. Esta condição é essencial para se compreender melhor o seu interesse por um tempo curto, extremamente próximo do nosso, que pode parecer de uma quase impossível materialização histórica. Mas é justamente esse o seu desafio na Breve História do Século XXI (Teorema): num texto arrojado, D’Almeida parte de alguns acontecimentos relevantes da segunda metade do século de Novecentos para mostrar de que maneira passámos de facto, sem que para tal fosse necessária a intervenção simbólica introduzida pela viragem de milénio, de uma época para outra. O livro apresenta-se como um primeiro ensaio de história geral do século XXI, construído a partir de algumas questões simples que orientam o trabalho do autor: quando e como acabou o século passado? em que preciso momento começou realmente um novo? de que forma pode o historiador trabalhar já sobre este, com que fontes e seguindo que métodos? Para responder ao desafio, procede então a uma revisão da nossa forma de observar o mundo, insistindo em como é preciso desviar o olhar do trágico século XX, que tanto pesa ainda nas nossas consciências, contornando a parasitagem mediática e procurando em todos os documentos possíveis, incluindo-se nestes os mais anódinos, as novas matrizes e os renovados paradigmas que estão já a penetrar a nossa forma de olhar o mundo e de reflectir sobre ele.

              Atualidade, História

              Retaliação

              A gaulesa Encyclopaedia Universalis, edição de 2009, contém uma entrada sobre Luiz Nazario de Lima Ronaldo e outra sobre Ronaldo Assis de Moreira «Ronaldinho». Não tem uma sobre Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Penso que se trata ainda de uma retaliação pelo facto de, durante a Guerra da Sucessão de Espanha (1702-1714), termos apoiado um Habsburgo contra um Bourbon. Estes franciús são muito vingativos.

                Devaneios, Etc., História

                Mensageiros do apocalipse

                Utopias e companhia

                Publicado numa outra versão na LER no. 76

                John Gray sustenta que a experiência política contemporânea não é senão um capítulo da história da religião, procedendo do cristianismo e da sua concepção linear do tempo. Ela integra a crença num momento e num locus utópico que saiu reforçada com a afirmação, após o triunfo da Revolução Francesa, de narrativas apostadas em conceber a História como trajecto lançado num único sentido, em condições de abrir as portas a um amanhã irrevogavelmente afortunado. Expressão de uma vertigem que sublima o antigo impulso religioso, a retórica pós-revolucionária – nas vertentes jacobina, bolchevique ou nazi – afirmou assim a crença num futuro colectivo, feliz e decisivo, embora se tenha mostrado inapta para promover a sua efectiva construção. Gray considera que ela não fez senão retomar as convicções messiânicas, fundadas na ideia de que a História possui uma intriga subjacente, que cruzaram a Baixa Idade Média e atravessaram os tempos modernos, dando corpo a movimentos milenaristas de natureza religiosa ou secular.

                Em grande parte de A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas, ocorre um esforço para mostrar de que forma em diversas situações contemporâneas – como a ascensão do neoliberalismo e da Terceira Via, o intervencionismo militarista americano, a ascensão dos fundamentalismos islâmico e cristão, ou as tensões em redor das novas formas de terrorismo -, se detecta o mesmo erro básico e funesto, traduzido na convicção de que existe uma espécie de finalidade histórica única, destinada a impor um modelo universal, pela qual alguém deve assumir a responsabilidade. Particularmente visada é a intervenção dos utopistas neoconservadores e religiosos na definição da política externa americana sob a administração de George W. Bush, tanto na sua vertente mais pragmática (procurando, por exemplo, impor um modelo ocidental de democracia para o Iraque), quanto no seu lado assumidamente apocalíptico, destinado a vincar o papel redentor dos Estados Unidos da América.

                Como numa missa negra – Black Mass é o título original da obra, que a tradução portuguesa não seguiu -, verifica-se uma inversão perigosa do objecto sagrado. A dimensão utópica, essencialmente consagrada como positiva e redentora ao longo dos últimos dois séculos, é aqui voltada então do avesso e apontada aos humanos como um ídolo sedento de sangue, destinado a causar logros, desilusões, ou, bem pior, a impor por toda a parte o sofrimento e a morte. As utopias, diz Gray, «são sonhos de libertação colectiva que na vida real se transformam em pesadelos.»

                Nesta obra de filosofia política, patenteia-se uma leitura cínica, embora sedutora, do conceito de utopia. Leitura que passa pela eleição de um antídoto destinado a derrotar o canto de sereia que esta a todo o momento sugere. O autor chama realismo a esse antídoto, definindo-o como a aceitação de que a vida não consiste afinal na demanda de soluções absolutas e salvadoras, mas antes, inversamente, no reconhecimento da existência de problemas insolúveis frente aos quais se devem ir apenas, caso a caso, tomando as decisões possíveis. Contra as utopias que exprimem uma continuação da religião por outros meios, sugere-se pois um contra-veneno. Resta saber se este funcionará e se a atracção pela imaginação utópica não é de facto, como insistiu, entre outros, Ernst Bloch, uma característica recorrente e inevitável, contra a qual a consciência do realismo pouco poderá.

                John Gray, A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas. Tradução de Freitas e Silva. Guerra e Paz, 312 págs.

                  Atualidade, História

                  Riso, crítica e resistência

                  Vladimir Illitch Groucho

                  Publicado numa outra versão na LER no. 76

                  O título, Foice e Martelo, evoca uma publicação militante ou uma daquelas obras mais grosseiramente anticomunistas dos tempos da Guerra Fria. Mas trata-se antes de uma divertida viagem, centrada na proliferação do humor vivida entre 1917 e 1989 nos países da Europa de Leste, que o apresentador de televisão e escritor britânico Ben Lewis desenvolveu a partir de uma extensa pesquisa sustentada na leitura de livros e de artigos de jornal, na consulta de arquivos da polícia e dos tribunais, e na gravação de alguns depoimentos orais.

                  Sob os regimes do «socialismo real», coexistiram quase sempre dois tipos de humor. Um, mais variado e dependente das circunstâncias, era o das anedotas clandestinas, populares, anónimas, vocacionadas para a paródia das falhas ou das iniquidades do sistema. O outro, oficial, abrangia algumas revistas, o cinema, a rádio e o espectáculo musical, procurando servir-se da sátira, ainda que de forma contida e centrada numa lógica de «humor positivo», para obter o apoio das populações ou para as educar de acordo com objectivos políticos categóricos. O primeiro tipo é, naturalmente, muito mais rico e interessante, surgindo com frequência como veículo de resistência, ou pelo menos de crítica, embora comportasse riscos muitíssimo elevados para quem dele se servia. Milhares de cidadãos foram detidos, enviados para campos, expulsos dos empregos, ou ficaram sem os seus bens, por haverem contado pequenas anedotas, ou dito piadas que envolviam dirigentes do Partido e do Estado, muitas das quais pouco mais eram, como se pode hoje provar, que meros jogos de palavras, inofensivos até aos olhos de alguns dos condenados. Mas era tão forte e constante a sua presença que até membros do aparelho partidário ou da polícia por vezes as contavam aos seus próximos.

                  Um dos indícios da força dessa presença pode associar-se ao facto de muitas das historietas terem cruzado as fronteiras dos diversos Estados e atravessado gerações. Lewis constrói uma cronologia desse processo, mostrando o modo como a multiplicação do humor não-oficial, ou a alteração dos temas utilizados e das figuras caricaturadas, correspondeu a tempos muito precisos, sendo claro que as décadas de 1930-1940, a da mais dura e repressiva fase do governo de Estaline, foram aquelas nas quais as anedotas se tornaram mais dúbias, enquanto o período do «degelo» krutcheviano, e depois a década que antecedeu o termo das democracias populares, viu este padrão de humor instalar-se como uma «segunda linguagem» em todo o bloco socialista e participar, de uma forma em alguns casos manifesta, no seu desmantelamento.

                  Um livro desta natureza, comportando um esforço de contextualização e de interpretação do anedotário anticomunista nativo, vale também, e provavelmente em primeiro lugar, pelas inúmeras piadas que oferece. Algumas delas com um forte sentido da ironia. Como aquela na qual à pergunta «qual o sexto sentido que toda a população soviética desenvolveu?» se responde com a frase sacramental «um profundo sentido de gratidão para com o Partido.»

                  Ben Lewis, Foice e Martelo. Tradução de Susana Serrão. Guerra e Paz, 368 págs.

                    História, Memória, Olhares

                    Antes morrer de pé

                    Luisa de Gusmão

                    Na secção «Escrito na pedra», o P2 do Público atribui hoje a Luísa de Gusmão, mulher de D. João IV e primeira rainha da nossa Quarta Dinastia, a frase «antes morrer reinando do que acabar servindo». Os historiadores do período sabem que nada prova ter tal frase sido pronunciada, para além daquilo que escreveu na Historia de Portugal Restaurado Luís de Menezes, o 3º conde da Ericeira, homem consabidamente dado a algumas invenções. Mas não deixa de ser curiosa a preservação da fábula, pelo menos parcialmente justificada pelos profundos sentimentos antiespanholistas que se foram enraizando entre nós a partir de 1640, e que depois o salazarismo não só aproveitou como relançou. A frase «é melhor ser Rainha por um dia, do que duquesa toda a vida», também foi erradamente imputada a D. Luísa. Aliás, foi-lhe atribuída ainda a lenda de ter armado cavaleiros os seus próprios filhos para que estes pudessem «combater» no dia 1º de Dezembro (quando o mais velho não tinha se não 5 ou 6 anos). Na escola primária ofereceram-me outra versão – «antes morrer de pé do que viver de joelhos» -, que mais tarde vim a saber ser imputada a Emiliano Zapata, a Dolores Ibarruri (a Pasionaria), a Franklin Delano Roosevelt, ao «Che» Guevara, e a não sei quantas mais pessoas que a terão ou não feito ecoar algum dia em algum lugar. Claro que a última versão é a mais harmoniosa e a politicamente correcta. E com ela a rainha Luísa nada teve também a ver.

                      História, Memória, Olhares

                      «Falar» na polícia

                      Tortura

                      A partir de hoje e durante toda esta semana, Caminhos da Memória irá publicar um longo texto de Diana Andringa dedicado a um dos temas mais difíceis e silenciados – mas incontornável pois determinou muitos dramas humanos e reviravoltas políticas das quais ainda hoje podemos colher certos ecos – da história da oposição ao Estado Novo.

                        História, Memória

                        Anastasia

                        Anastácia

                        Tal como aconteceu com tantas outras pessoas do mundo inteiro, em criança fazia-me impressão a vida dramática da princesa Anastácia. Refiro-me a Anastasia Nikolaevna Romanova, a filha do czar Nicolau II que em 17 de Julho de 1918 teria supostamente sobrevivido ao massacre da família real russa levado a cabo pelos bolcheviques, seguindo depois uma vida errante e aventurosa, sempre à espera de um reconhecimento público que jamais chegou. A sua história foi desde cedo utilizada na propaganda anticomunista, tendo aparecido em livros, folhetos e histórias de banda desenhada, e servido também de argumento a canções. Uma delas, de Pat Boone, foi um êxito mundial nos idos de 50, e Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, faz-lhe referência («Anastasia screamed in vain»). Funcionou também como base do enredo de diversos filmes: o mais conhecido, com Ingrid Bergman, é de 1956, e o último, em técnica de desenho animado, foi estreado em 1997. Em Shadow Hearts: Covenant, um jogo para PlayStation 2, Anastácia aparece também como personagem. Pois bem, a Procuradoria-Geral da Federação Russa concluiu agora, após estudos especializados, poder «afirmar categoricamente» que os seus restos mortais estavam entre aqueles que, em 1991, foram recolhidos como sendo os dos abatidos em Iekaterinburgo. Mas como concluiu ao mesmo tempo que o Conselho dos Comissários do Povo e o Comité Executivo Central, na altura os principais organismos governamentais russos, não aprovaram a execução, fica sempre no ar uma suspeita de «limpeza da História» muito comum por aquelas paragens. Num certo imaginário romanesco, a imagem da princesa Anastásia continuará a pairar.

                          Atualidade, História, Memória

                          Eles

                          Eles

                          A tese não é nova, como se sabe: ela sugere uma leitura da política do governo americano para Portugal durante o biénio revolucionário de 1974-75, insistindo na divergência das interpretações mantidas pelo ex-Secretário de Estado, que chegou a considerar a inevitabilidade da tomada do poder pelos comunistas, e pelo antigo embaixador em Lisboa, que insistiu na necessidade de apoiar as forças moderadas. A substância de Carlucci vs. Kissinger. Os EUA e a Revolução Portuguesa, de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá (Dom Quixote), reside, pois, não tanto na «descoberta» de uma situação conhecida, mas antes na análise detalhada de fontes primárias que a comprovam e detalham. A partir de telegramas trocados entre a capital portuguesa e Washington, de memorandos de conversas mantidas entre altos dirigentes, e da transcrição de conversas telefónicas, revelam-se pormenores sobre a debilidade do sistema de informações americano na fase inicial do processo, sobre a tentativa de utilizar a União Soviética para moderar a atitude do PCP, sobre o apoio oferecido ao Grupo dos Nove, ou, talvez como testemunho mais sonoro, sobre a possibilidade real, declinada por Franco, de uma intervenção militar espanhola. A narrativa acompanha muito de perto os documentos, fugindo no entanto a um esforço interpretativo complexo ou a uma abordagem dos reflexos da intervenção americana fora dos círculos do poder, mas integra, sem qualquer dúvida, informações cruciais para a história do período.

                          Embora num outro formato, também na LER No. 75

                            Atualidade, História

                            Salónica: uma cidade e o seu labirinto

                            Salónica

                            Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

                            Até 1909, o ano da fundação de Tel Aviv, Salónica era a única cidade do mundo na qual a principal língua utilizada era de matriz judaica. Por essa altura, a maioria da população falava ainda o ladino, ali estabelecido nos inícios do século XVI com a diáspora sefardita, mas viviam-se os últimos tempos de um espaço policromo, no qual cristãos, muçulmanos e judeus tinham podido conviver na diferença, apesar dos conflitos pontuais e das situações de desigualdade perante a lei otomana. É verdade que ela se parecia mais com uma justaposição de pequenas aldeias, nas quais turcos, judeus, gregos, búlgaros, albaneses, ocidentais e ciganos preservavam os seus territórios, mas nada de semelhante podia ser observado em qualquer outra grande cidade. Mark Mazower, especialista em história da Grécia e dos Balcãs, traça em Salónica – Cidade de Fantasmas o seu percurso único e fascinante, prestando uma particular atenção ao longo lapso de tempo que começou em 1430, com a tomada da cidade ao poderio bizantino-veneziano pelo sultão Murad II, e encerrou já em pleno século XX com a reinstalação, em território turco, dos últimos membros da comunidade muçulmana que nela haviam permanecido após a sua conquista pelos gregos. Durante todos esses anos, foi traçado um percurso sinuoso e complexo que Mazower descreve com uma profusão de informações capazes de trazerem à vida um passado do qual já quase não restam hoje vestígios materiais.

                            O epíteto de «cidade dos fantasmas» diz essencialmente respeito ao total desaparecimento, ocorrido já no último século, de duas daquelas comunidades. O primeiro teve lugar imediatamente após o fim da dependência da cidade do estado turco, com a evacuação forçada da maior parte da população de origem muçulmana. O segundo, particularmente rápido e brutal, aconteceu em 1943, quando os ocupantes nazis enviaram para Auschwitz cerca de 50.000 salonicenses, dos quais apenas dez por cento viriam a sobreviver. Para além do enorme impacto humano no mapa da cidade, este facto ficou ainda associado à responsabilidade de numerosos cristãos gregos na repressão anti-semita que facilitou o trabalho dos ocupantes alemães. Alguns críticos consideram, aliás, que nesta obra o historiador menosprezou conscientemente a importância desse episódio vergonhoso da história contemporânea da Grécia.

                            Salónica oferece uma leitura apaixonante, por intermédio da qual a evocação do passado, ali extremamente bem documentada e apresentada de forma consistente, confirma o trajecto único de uma cidade que não possuindo hoje o fascínio e o património monumental da rival Istambul, nem por isso deixa de simbolizar um reencontro que a história recente dos Balcãs tornou particularmente exemplar e perturbante.

                            Mark Mazower, Salónica. Cidade de Fantasmas. Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950. Tradução de José Pinto Sá. Pedra da Lua, 576 págs. ISBN: 978-989-8142-10-8.

                              Cidades, História, Memória

                              Vozes do silêncio

                              Slavenka Drakulic

                              Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor foi escrito durante o ano de 1991, numa altura em que o volume de estudos, de memórias e de reportagens sobre a Europa de Leste crescia muito rapidamente, com um crescente público de leitores à procura de um universo que lhe era desconhecido ou que fantasiara. Resultado da experiência pessoal, familiar e profissional da autora – Slavenka Drakulic é uma jornalista croata que antes e após o início da fragmentação da Jugoslávia teve a oportunidade rara de visitar diferentes países de ambos os lados da «Cortina de Ferro» – nele se descrevem aspectos de um quotidiano com muitas características partilhadas na generalidade dos países que viveram a experiência do «socialismo real», questionando-se ao mesmo tempo, a partir do interior, a afirmação de um modelo que se autodefinia como triunfante. Ao mesmo tempo, nos 19 ensaios aqui reunidos, fá-lo a partir de uma perspectiva feminista, singular e relevante quando se sabe que o feminismo era praticamente inexistente naquele universo, e que as vozes femininas eram ali geralmente subordinadas a um discurso colectivista que excluía a sua representação autónoma.

                              Drakulic assevera, a dado passo, que quem tenha crescido na Europa de Leste aprendeu desde muito novo que a política não é um conceito abstracto, mas antes uma força poderosa e omnipresente, «que influencia as pessoas na sua vida de todos os dias». Tal significa que a sua leitura dos quotidianos que relata os insere na ordem política imperante, jamais atribuindo uma grande importância à sua articulação com particularismos históricos ou culturais. Deve reconhecer-se, porém, que a sua perspectiva crítica, por vezes arrasadora, é temperada pela nostalgia de um igualitarismo, entretanto perdido, que suavizava o baixíssimo nível de vida da generalidade das populações. Fá-lo em particular no ensaio que relata o seu confronto com a miséria e o abandono com o qual, quando ali chegou pela primeira vez, veio a deparar nas ruas de Nova Iorque. Mas por outro lado, por detrás da uniformidade de comportamentos percebe-se perfeitamente, na sucessão das informações e dos testemunhos apresentados, que ocorreram cambiantes e mesmo distinções entre os diversos países comunistas e no interior da própria Jugoslávia, o que tempera uma tipificação excessiva dos métodos utilizados pelas autoridades e dos processos utilizados pelas populações para se lhes adaptarem ou os contrariarem. Quando se afirma que «foi no plano da vida quotidiana, mais do que no plano ideológico, que o comunismo realmente fracassou», insinua-se como foi principalmente uma acentuada dificuldade de relacionamento entre governantes e governados que precipitou o seu fim. Assim se escreve a uma dada altura: «se os políticos tivessem olhado, uma vez que fosse, para dentro dos nossos guarda-fatos, caves, armários e gavetas – sem ser para confiscar livros proibidos ou propaganda subversiva –, teriam visto o futuro que estava reservado aos seus magníficos planos».

                              Notável também é a forma poética utilizada por Drakulic no processo da escrita, transformando cada um dos capítulos deste livro numa espécie de vinheta que ilustra a condição do cidadão comum e retrata o seu quotidiano sob a realidade do comunismo. O sentido de humor evocado no título, bastante menos presente afinal do que seria de supor, é assegurado pela maneira acentuadamente sarcástica de descrever o passado e, por parte daqueles que lhe sobreviveram, por um uso irónico da memória. Um livro datado, sem dúvida, mas muito útil.

                              Slavenka Drakulic, Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor. Tradução de Rui Pires Cabral. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-11-5. Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

                                Atualidade, História

                                Xeque ao Boris

                                Boris Pasternak

                                O rumor circulava há já algum tempo, mas agora, escreve o ABC e faz eco o Público, parece que se confirma. Boris Pasternak apenas terá ganho o Prémio Nobel da Literatura de 1958 porque, em cima da data-limite para a divulgação do vencedor, a CIA fez um esforço para que um original do Doutor Jivago impresso em russo – o livro tinha sido proibido na União Soviética e no ocidente apenas saíra em italiano numa edição de Gingiacomo Feltrinelli – pudesse chegar, por vias tortuosas, às mãos dos membros da Academia Sueca. O derrotado na corrida foi nada mais nada menos que Alberto Moravia. De Pasternak conheço apenas o livro citado, que li com algum esforço depois de tanto ouvir falar do filme de David Lean, e também alguns poemas dispersos, fosforecentes e rapidamente esquecidos, mas parece ser mais ou menos consensual que não existe paridade, em termos de valor absoluto ou comparado, entre a obra de um e de outro dos autores. A Guerra Fria estava no seu auge e tudo servia, de ambos os lados, para tirar o tapete ao adversário. É preciso sublinhar, para se medir a dimensão da cartada, que Pasternak, falecido dois anos depois da atribuição do prémio que não pôde receber, jamais terá tido conhecimento do que realmente se passou. Uma nova edição do best-seller do autor laureado, «pela primeira vez traduzido do russo» cinquenta anos depois do seu lançamento, acaba de sair em Portugal pelas mãos da Sextante.

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