Arquivo de Categorias: História

Na primeira pessoa

Vasco Lourenço

A história do 25 de Abril far-se-á sempre recorrendo aos depoimentos daqueles que participaram na sua preparação e que tiveram depois um papel interveniente nas sucessivas peripécias do «biénio revolucionário». Como todo o acontecimento da história recente, que conclama uma memória quente e os sentimentos ainda muito fortes de quem nela participou, os testemunhos dos seus artífices são sempre únicos e frequentes vezes polémicos. É o que acontece também com a longa entrevista de Maria Manuela Cruzeiro – efectuada entre 1992 e 1995 mas só agora publicada – ao coronel Vasco Lourenço, uma das mais relevantes e decisivas figuras do Movimento das Forças Armadas e do «Grupo dos Nove».

Aquilo que este conta é irrepetível, proposto a partir de uma perspectiva intensamente pessoal, inevitavelmente vinculada ao papel central e decisório que desempenhou em numerosos momentos que antecederam e seguiram a «revolução dos cravos». Mas é também polémico, pois contraria frequentes vezes, com grande frontalidade e uma aparente jactância, tanto o testemunho de outros actores do movimento, quase sempre bem identificados, quanto determinadas «versões oficiais» cuja veracidade por vezes contesta ou procura corrigir. Os historiadores do período deverão cruzar as diferentes leituras com as suas circunstâncias, mas esta entrevista de Vasco Lourenço será, sem dúvida, uma das referências a colocar na linha da frente do seu trabalho. [Vasco Lourenço – Do interior da Revolução. Entrevista de Maria Manuela Cruzeiro. Âncora Editora, 576 págs.]

    História, Memória

    Há precisamente setenta anos

    Polónia 1939
    Soldados alemães guardam um grupo de judeus em Sanok, Polónia (Setembro de 1939)

    «Quem foi a primeira vítima de uma guerra que viria a fazer mais de quarenta milhões delas? Um prisioneiro desconhecido de um dos campos de concetração de Adolf Hitler, com toda a probabilidade um criminoso de direito comum. Numa tentativa para apresentar a Alemanha como vítima inocente de uma agressão polaca, vestiram-lhe um uniforme polaco, levaram-no para a cidade fronteiriça alemã de Gleiwitz, e a Gestapo abateu-o na noite de 31 de Agosto de 1939, na estranha encenação de um «assalto polaco» à estação de rádio local. Na manhã seguinte, quando as tropas alemãs começaram a entrar na Polónia, Hitler apresentou, como um dos motivos que justificavam a invasão, “o ataque ao retransmissor de Gleiwitz por tropas regulares polacas”.»

    (in Martin Gilbert, A Segunda Guerra Mundial, editado pela Dom Quixote)

    O resto da história é conhecida. Ou melhor, vai sendo conhecida.

      Apontamentos, História

      Narrativa do Portugal contemporâneo

      Vasco Pulido Valente

      Ainda não desapareceu totalmente a desconfiança perante uma História assumidamente narrativa que dominou a historiografia portuguesa entre os finais da Segunda Grande Guerra e os inícios dos anos oitenta. Por isso, e apesar desta tendência ter vindo a recuar no contexto de uma prática recente mais assumidamente polifónica, a obra de Vasco Pulido Valente permanece entre os da sua geração como um caso raro de opção por aquele modelo. Foi todavia esta preferência que lhe permitiu transformar-se num raro caso de mérito académico associado a aptidão para uma abertura, sem preconceitos, a um público alargado e não-especialista de amantes da História. A Pulido Valente se deve, por isso, a disponibilização a um arco alargado de leitores – sem concessões de maior ao rigor e de um modo simultaneamente atraente e romanesco – de uma abordagem crítica dos últimos dois séculos de vida dos portugueses e de alguns dos seus principais intérpretes. O que não significa uma obra historiográfica metodologicamente incontroversa, por vezes vinculada a interpretações francamente polémicas.

      Portugal – Ensaios de História e de Política é uma colectânea de artigos dispersos, publicados entre 1983 e 2006 em revistas e jornais, que confirma esta tendência, disponibilizando um conjunto de viagens literárias através das quais podemos tomar contacto com momentos e ambientes nucleares para um reconhecimento do nosso trajecto comum nestes últimos dois séculos. Sobressaem três estudos mais extensos: um sobre as vicissitudes do liberalismo português no período que antecedeu a Regeneração, um outro sobre as circunstâncias, as voltas e os desvios da «República Velha», desde 1910 até ascensão meteórica mas fugaz de Sidónio Pais, e um terceiro, já antes parcialmente publicado em livro, sobre a vida e o trajecto político de Marcello Caetano. Os restantes textos têm um carácter mais avulso, atravessando a biografia e a autobiografia. Em todos eles, um lugar destacado atribuído a personalidades reconhecidamente nucleares do século XX português: Afonso Costa, Sidónio, Salazar, Marcello, Spínola e Cunhal. Apenas Mário Soares – que surge recorrentemente em artigos e crónicas do autor de um modo tão fugaz quanto Hitchcock nos seus filmes – permanece aqui numa imerecida penumbra.

      Como comum marca de água, o tom por vezes irónico, outras vezes quase impiedoso, reconhecido no autor também da sua actividade como cronista, que pode suscitar de imediato a contradição, ou desagradar aos resistentes adeptos de uma história supostamente «neutra», mas que sugere sempre interpretações incapazes de nos deixarem indiferentes. O artigo sobre o «25 de Abril», divulgado aquando do trigésimo aniversário da revolução, e provocatoriamente provido de aspas, é disso claro exemplo. A História que Vasco Pulido Valente nos vai oferecendo não deixa ninguém indiferente.

      Vasco Pulido Valente, Portugal – Ensaios de História e de Política. Alêtheia Editores, 336 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Julho-Agosto]

        Etc., História

        Lembrar

        Mulheres iranianas
        Direcção da Associação Patriótica das Mulheres (1922-1932). Farrokhroo é a primeira sentada à esquerda.

        Palavras de Farrokhroo Parsa, antiga ministra persa da Educação condenada à morte e fuzilada em 1980 pelo regime do ayatollah Khomeini – que em 1968 considerara a actividade política das mulheres equivalente a prostituição – escritas na prisão em carta dirigida aos filhos: «Estou disposta a receber a morte de braços abertos em vez de viver na vergonha e ser forçada a usar o véu. Não vou ceder aos que esperam que eu lamente 50 anos de esforços pela igualdade entre homens e mulheres. Não estou disposta a usar chador a recuar na história.»

        [A partir do artigo sobre a activista iraniana Mahnaz Afkhami saído no caderno P2 do Público.]

          Democracia, História, Memória

          Do Cadillac ao Trabant

          Trabant

          Iván de la Nuez, ensaísta e crítico de arte cubano residente em Barcelona, percorre, na prosa singular desta Fantasia Vermelha, alguns dos ecos da Cuba revolucionária recolhidos por muitos daqueles para quem esta um dia constituiu um importante factor de atracção. Ao mesmo tempo, oferece uma reflexão estimulante sobre a sua própria condição do intelectual de esquerda na era pós-comunista. No centro do esforço, uma tentativa de rastrear a mitografia construída em redor da paixão e da esperança projectadas a longa distância pela insurreição dos barbudos caribenhos. No termo do exercício, o autor acabará por questionar a perda dessa expectativa e por procurar uma saída para o impasse.

          Um velho Cadillac serve de metáfora e ponto de partida, indiciando um olhar projectado sobre a Cuba «de charme» que os guerrilheiros da Sierra Maestra combateram e depois herdaram. Muitos anos depois, reparado sabe Deus como com peças de fabrico soviético, e circulando com formidável estrépito do motor pelas ruas de Havana, o velho automóvel evoca os problemas reais que o regime inaugurado em 1959 jamais foi capaz de solucionar. Em redor, entretanto, uma fantasia imensa foi sendo construída. Esta é olhada por de la Nuez não como imagem enganosa, mas, na senda da proposta de Peter Sloterdijk, como «uma teoria da imaginação produtiva, (…) uma ficção operativa», capaz, a partir de fora, de transformar a ilha num espaço sobre o qual se projectaram sucessivas representações de um mundo que se cria único e admirável. Gente tão diversa quanto Jean-Paul Sartre, Régis Debray, Giangiacomo Feltrinelli, Oliver Stone, Sydney Pollack, Wim Wenders, Ry Cooder ou David Byrne – entre «centenas de atletas da esquerda ocidental» que viajaram até Cuba à procura da sua utopia pessoal – colaborou então, com apego e eficácia, nessa construção tão fictícia quanto poderosa. Prolongada hoje através de uma reinvenção – no trilho dos ambientes de O Nosso Homem em Havana, de Graham Greene – do mundo pré-revolucionário: «carros vintage, vestuário de época, sabor tropical, regresso de sonoridades típicas», que o organismo director do turismo cubano procura aproveitar ao máximo, associando-lhes frequentemente uma evocação voluntariosa do regime e a incondicional admiração por uma endeusada gerontocracia «portadora da verdade». Ficção não partilhada pela generalidade dos cubanos, que, insiste o autor, nela têm participado fundamentalmente como espectadores ou meros figurantes.

          Qual o sentido tomado então neste livro pela segunda metáfora, aquela que evoca o ronceiro Trabant, «o pior carro do mundo»? Na actualidade, os velhos automóveis, outrora fabricados na Alemanha de Leste, circulam apenas como curiosidade, continuando a trabalhar graças a peças fabricadas agora por empresas capitalistas. No último capítulo, de la Nuez evoca então alguns dos contornos de um imaginário pós-comunista que identifica como cenário para a construção de uma esquerda domesticada, que já não passa pela utopia um dia reflectida pela revolução cubana. Real mas hoje fora do tempo, como um Trabant.

          Iván de le Nuez, Fantasia Vermelha. Os intelectuais de esquerda e a revolução cubana. Tradução de Ana Bela Almeida. Angelus Novus, 142 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Julho-Agosto]

            Atualidade, História

            Woodstock (ainda)

            Woodstock

            Gosto de ler o Novo Mundo (como já anteriormente seguia o Mundo Perfeito). O que não me compromete, claro, com as opiniões ou a sensibilidade da sua autora. Aliás, acho particularmente estúpido, e até um bocadinho doentio, ler apenas os blogues de quem pensa como nós e «desarriscá-los» à primeira discordância ou descuido verbal. Mas penso que a Isabela Figueiredo se deixou enredar, no post «Eu também não estive em Woodstock», pelas ciladas do anacronismo e da parcialidade.

            Eu explico-me, mas para o fazer preciso evocar um episódio. Há anos atrás, Bettina Roehl, filha desnaturada da radical Ulrike Meinhof, provavelmente abalada na personalidade pela infância complicada que teve, decidiu investir contra tudo aquilo que fossem ícones dos sixties e, claro, que lhe pudessem fazer recordar a mãe. Um deles foi Daniel Cohn-Bendit. Encontrou uma fotografia deste tirada em plena ressaca de 68, quando para ganhar a vida trabalhou num jardim-de-infância, e vendo-o nela a brincar com crianças, algumas sem roupa, serviu-se da imagem para o acusar de práticas pedófilas. Claro que existia um equívoco básico no qual a moça Bettina caíra: na época, os meados da década de 1970, vivia-se no ocidente uma fase de permissividade na exibição e na experiência do corpo, educando-se mesmo as crianças no sentido de o olhar e de o tocar com naturalidade, e era nessas condições, sem dúvida hoje pedagogicamente datadas, que o nosso «judeu alemão» surgia na imagem rodeado de nuas criancinhas.

            Voltando então ao post da Isabela, também aqui o anacronismo sugere uma leitura um pouco deslocada. O melhor mesmo é ler o post, pelo que adianto só o meu comentário. É evidente que o festival de Woodstock de 1969 não foi um megaconcerto à maneira daqueles que hoje conhecemos. Parece que se previam 200.000 pessoas e apareceram mais de 500 mil. As condições de comodidade eram praticamente nulas, evidentemente, e a higiene pior que péssima, o apoio médico inexistente (ainda assim apenas morreram dois participantes, um por overdose de heroína e outro atropelado por um tractor, mas para compensar nasceram dois bebés). E nem toda a música foi de qualidade igual. No entanto, o culto sixtie da natureza, associado à juventude dos participantes e ao ambiente da época, tornava a situação tolerável: os famosos «banhos de lama» foram mesmo improvisados, e não como aqueles que em 1999 foram ritualizados para as câmaras num patético remake do festival. Afinal, também ninguém se depilava ou usava desodorizante, perfume só se fosse indiano, e além disso choveu gloriosamente. Quanto ao ar de tédio, cansado, pedrado, notório nos participantes num festival que durou de 15 a 18 de um quente mês de Agosto, quem se mantém em tais condições fresco como uma alface?

            Claro que tudo isto teve um tempo, e a generalidade das pessoas que alinharam nos festivais da época não aguentaria agora tal ritmo: afinal, os cidadãos dessa geração que ainda vão a estas coisas dão só uma escapadela, apenas para ouvirem y ou z, dormem em hotéis com lençóis imaculados, cumprem a laboriosa higiene diária enchendo o corpo de cremes, comem refeições quentes em bons restaurantes, e regressam a casa a tempo de alimentarem o cachorro ou de verem o jogo. Mas, apesar da diferença, as pessoas das gerações mais novas que vão agora com toda a energia aos festivais de música, quase sempre em condições muito melhores do que aquelas existentes em Woodstock, sabem bem que «no meio da humidade, do fedor e do sobrepovoamento» existem momentos que recompensam tudo o resto.

            A Isabela Figueiredo não concordará com a minha leitura. E, mesmo que pertencesse à geração que foi a alguns desses primeiros festivais (quase pertence, eu sei), provavelmente continuaria a discordar de mim, que ainda fui a uns quantos. Gostos diversos, diferentes formas de estar, eram, como continuam a ser, coisa normalíssima. Já fazer juízos morais, e em tonalidades quase absolutas, sobre as sensibilidades e as práticas dos outros porque não são idênticas às nossas, é que me parece tão contestável agora quanto há quarenta anos. A estação tola, quase a terminar, também serve para estes pequenos desabafos, e no fundo do fundo all we need is love.

              História, Memória, Opinião

              A Leste, longe do paraíso

              Havel 1979

              Recebo sempre emotivamente as histórias de resistência vividas a Leste nas décadas terminais do «socialismo real». Uma reportagem de Alexandra Prado Coelho sobre os «resistentes da RDA», realizada em Berlim e saída ontem no caderno P2 do Público, trouxe-me de volta esse estado de espírito. Poderia ter sido em Praga, Budapeste ou Varsóvia que o resultado seria idêntico. Mas sei muito bem qual a origem dessa emoção.

              Por um lado, escuto invariavelmente relatos que chegam daqueles lados e associam pulhice e heroísmo: o nascimento da dissidência quase sempre determinado por uma necessidade básica de liberdade e pela recusa do militarismo, a intervenção sistemática da polícia política e dos delatores, a venalidade dos que traíam colegas e amigos, as carreiras profissionais destruídas daqueles que saíam da fila, os estratagemas sempre arriscados, e muitas vezes falhados, para os opositores se poderem encontrar sem irem parar à prisão ou a sítio bem pior. Ao mesmo tempo, oiço as histórias que os sobreviventes têm sempre para contar, observo os seus rostos tensos em fotografias da época, reparo nos intelectuais, nos jovens, nos artistas, por vezes quase me parece conseguir captar os ambientes de uma resistência que parece algo épica. Visito também as suas canções de protesto, as aventuras dos músicos de jazz e dos rockers para obterem uma sala, as tipografias clandestinas, os grupos razoavelmente independentes de teatro, as reuniões em lugares ermos e inóspitos, e tudo aquilo me parece familiar.

              E familiar será, sem dúvida, para quem, na mesma altura, combateu os fascismos ibéricos. Uns e outros regimes caducos, paralisados, decrépitos, pesadamente dirigidos por gerontes, que cada vez mais tinham contra si o grosso da inteligência, da criação, da juventude. Nem uma daquelas pessoas que a leste os combateram, todavia, percebia aqueles que, do lado ocidental, travavam idênticos combates. Tal como, desta parte, uma grande parte dos resistentes antifascistas ou anticapitalistas desprezava aqueles jovens de longos cabelos, escritores de barbas proféticas, cantores algo bárbaros, moças de camisolão e minissaia ou rapazes de um único e sagrado par de jeans, que do lado lá combatiam regimes e ideologias que lhes pareciam ainda exemplares. O que verdadeiramente perturba é essa incompreensão mútua de décadas, apenas possível porque, de ambos os lados, sistemas autistas e policiais zelavam para que as pontes permanecessem minadas.

                Democracia, História, Memória

                Lisboa com bandeira azul

                Bandeira Azul

                Uma mancheia de varonis mancebos «ligados ao blogue 31 da Armada», imbuídos de um compreensível e ilimitado bem-querer pela santa monarquia – pois tal coragem, por certo apenas a varonis mancebos é pela Padroeira outorgada –, trepou heroicamente até à varanda do Paços do Concelho de Lisboa e, com lídimo pundonor, hasteou no mastro da mesma um rectângulo de pano azul e branco. De acordo com os amigos dos jovens trigésimo-primeiristas (mas o que são «pessoas ligadas ao blogue 31 da Armada»? será o 31 da Armada uma ONG? uma seita? um bando? uma comandita?), o feito foi obtido apesar do pesado rumor das botifarras e das armas aperradas alardeado por essa «forte vigilância policial» que, como todos sabemos, percorre «a noite profunda» das nossas vilas e cidades para aterrorizar as famílias no seu honrado descanso. E para impedir que desde o mais insigne dos palácios ao humilde tugúrio do trabalhador estas afixem nos limiares das portas, tal como intimamente desejam, lindos azulejos com o brando semblante do Senhor Dom Duarte. Tais beneméritos da Pátria, a quem faltou apenas aquela Dona Aldegundes que não falhou a Paiva Couceiro – «é avante portugueses/é avante não temer», cantarão entrementes –, apenas podem ter a nossa compreensão. Sempre agitam mais este querido e tonto mês de Agosto que os blogues regimentais. Deus os guarde assim.

                  Atualidade, Devaneios, História

                  Uma vida e filmes vários

                  Villa

                  Johnny Depp será José Doroteo Arango, Pancho Villa, no próximo filme de Emir Kusturica, que tem como título provisório Seven Friends of Pancho Villa and a Woman With Six Fingers e começará a ser rodado em 2010. Terá a companhia preciosa da mexicana Salma Hayek. Promete, claro. Mas já em 2003 Antonio Banderas foi Villa em Starring Pancho Villa As Himself, um documentário sobre a forma como D.W. Griffith e Harry Aitken compraram ao próprio Villa os direitos exclusivos sobre as imagens das batalhas da revolução mexicana, permitindo-lhes montar em 1914 The Life of General Villa, o primeiro filme de acção de Hollywood. A dimensão densamente cénica e cinematográfica das acções e da própria presença física de Villa pode ser avaliada numa descrição deixada por John Reed em México Insurrecto. Aqui fica ela:
                  (mais…)

                    Cinema, História

                    Uma noite inesquecível

                    Man in the moon

                    Sei onde estava há exactamente quarenta anos. A noite era mais fria do que esta, apesar de já ser Julho e determinados mitos urbanos afirmarem agora que os verões eram sempre insuportavelmente quentes. A televisão, uma Blaupunkt a preto e branco (ou seria uma Nordmende?), crepitava de vez em quando, ameaçando desistir. Preparávamo-nos – já só eu e o meu pai teimávamos num serão que se previa longo – para seguir, um tanto cépticos mas bastante excitados, as últimas manobras de alunagem da Apollo 11. Dali a horas, entrava-nos na sala um eco chegado do outro mundo: «That’s one small step for man, one giant leap for mankind». Na estação de Cabo Canaveral urrava-se, pulava-se, celebrava-se. Nós dois permanecemos calados, pensando, zonzos de sono, incrédulos, não passar tudo de um sonho. Fomos deitar-nos sem trocar uma palavra.

                    [audio:http://aterceiranoite.org/sons/armstrong.mp3]
                      História, Memória

                      «Caminharemos de pés nus»

                      Prisioneira não identificada

                      Escrevo durante uma pausa na leitura coerciva de No Inferno dos Khmers Vermelhos, de Denise Affonço (Pedra da Lua). A autora é uma sobrevivente do imenso campo de morte e atrocidades no qual, entre 1975 e 1979, se transformou todo o Camboja. Naqueles quatro anos, pelo menos 1,7 milhões de pessoas, cerca de 20 por cento da população, sucumbiram à fome, às doenças, aos trabalhos forçados, à tortura e às execuções sumárias. O objectivo do poder khmer, apoiado num exército de adolescentes fanatizados e aplicados em impor um sacrifício colectivo purificador, era o regresso imediato, sem qualquer transição ou cedência, a uma vida rural, absolutamente primitiva, assente nos princípios do que consideravam ser o comunismo integral. A construção acelerada da distopia perfeita. O extremo horror pode ser revisitado observando certas normas impostas aos milhões de cidadãos-prisioneiros: «é proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», «é proibido ter saudades do passado», «nunca nos devemos queixar do quer que seja». Ou algumas das apertadas regras relativas à aparência: «nunca devemos usar roupas de cor», «caminharemos de pés nus: acabaram os sapatos e os chinelos», «as pessoas com problemas de vista deixarão de ter direito a usar lentes correctoras», «quando estivermos sentados (…) é proibido cruzar as pernas, sinal exterior do capitalismo», «trabalharão todos os dias do nascer ao pôr-do-sol; sábados, domingos e feriados são abolidos». Um terrífico relato de viagem ao território mais recôndito da impiedade e da maldade humana.

                        Democracia, História, Memória

                        Piratas ao largo

                        Piratas

                        Em Utopias Piratas, Peter Lamborn Wilson, poeta e ensaísta americano conhecido também como Hakim Bey, toma como figuras centrais determinados esquecidos da História. São os renegados, europeus fugitivos ou inadaptados, convertidos ao Islão por necessidade, que nos séculos XVI e XVII encontraram como porto de refúgio a república de Salé, na costa atlântica marroquina, junto àquela que é hoje a cidade de Rabat. Ali ajudaram a erguer um tipo particular de governo, definido por Wilson como um enclave proto-anarquista, uma micro-sociedade autogovernada por bandidos dos mares, que conseguiu sobreviver à margem das leis e das coroas, permitindo aos seus moradores manter padrões de governação, crenças e estilos de vida que na Europa dos Estados centralizados e da intolerância religiosa e moral jamais lhes seriam tolerados. Daí ter sido transformado em lugar convidativo para alguns salteadores célebres, como o inglês John Ward e o holandês Jan Jaansz (que ali adoptou o nome de Morat Reis), ou para toda uma turbamulta de marinheiros anónimos que confluíam para aquele lugar, ávidos de saques e de uma vida aparentemente fácil e emocionante. Wilson descreve o território de Salé e a sua forma de governo como modelo inicial de um tipo de sociedade que se deslocará depois para a região das Caraíbas e para o Índico, e que pela intervenção posterior da literatura de viagens e do cinema de aventuras integrará rapidamente o imaginário colectivo ocidental. [Peter Lamborn Wilson, Utopias Piratas. Trad. de Miguel Mendonça. Deriva, 180 págs.]

                          História

                          Comunismo hoje

                          On the idea of Communism

                          Organizado pelo Birkbeck Institute for the Humanities, da Universidade de Londres, decorreu em Março passado o colóquio On the idea of Communism. A identidade dos participantes anunciados – Alain Badiou, Slavoj Žižek, Michael Hardt, Toni Negri, Jacques Rancière, Gianno Vattimo, Terry Eagleton, entre outros – apontava para um encontro inédito entre superstars do pensamento contemporâneo interessadas no comunismo não tanto como núcleo programático mas como território da utopia e da experiência da mudança. E fazia também prever debates ardentes. A verdade, porém, é que os ecos foram chegando muito ténues e pouco existe na Internet sobre o acontecimento. Acaba no entanto de sair, no número de Julho-Agosto da revista Philosophie Magazine, uma reportagem crítica do evento, «Communista Social Club», da autoria de Jan Sowa, um jovem intelectual militante da esquerda radical polaca.

                          Sowa apoia-se particularmente nas intervenções de Badiou, Žižek, Rancière e Negri para afirmar que o conjunto não trouxe nada de novo em relação ao que se sabia já do pensamento de cada um dos autores presentes – o que não seria nada de inesperado, pois as fracturas não se produzem em intervenções de trinta minutos voltadas para um público militante de investigadores e estudantes –, estranhando igualmente o facto delas se apresentarem como monólogos, algo cerradas em raciocínios e apriorismos balizados, dos quais ninguém se parece ter esforçado muito por sair. O essencial da sua crítica centra-se porém em algo de muito concreto. Condicionado pela sua própria experiência de filho do «socialismo real», Sowa anota que «a maior insuficiência deste colóquio foi a ausência de uma análise aprofundada do comunismo enquanto regime que existiu realmente». Como se nada de verdadeiramente importante se tivesse passado, diz, entre a revolução de Outubro de 1917 e o triunfo do capitalismo neoliberal nos anos oitenta. Tem sido este, realmente, um dos limites da intervenção da esquerda anticapitalista não subsidiária do esclerosado modelo leninista-estalinista: um excessivo pragmatismo e uma dificuldade em repensar-se a partir de uma abordagem crítica do seu próprio lastro histórico, projectando novas possibilidades através de um processo psicanalítico de diálogo com as origens, as experiências e principalmente os erros.

                          Mas isto não significa que o colóquio de Londres se tenha transformado num pântano de vaidades académicas e de vontades dispersas a laborarem, cada uma delas, nas suas utopias pessoais. No final foram avançadas duas conclusões positivas que permaneceram transversais às intervenções de todos os participantes: «primo, o capitalismo não se encontra desprovido de uma alternativa, e secondo, o projecto comunista não é utópico no sentido negativo do termo, isto é, impossível». Porém, e contrariamente à leitura corrente de Marx, a sua afirmação não resulta de uma inevitabilidade histórica, mas sim de uma escolha que as sociedades podem e devem fazer em toda a liberdade. Será este o princípio, fundamental para uma conciliação da vida democrática com a afirmação cíclica de políticas de ruptura, sobre o qual a esquerda deverá continuar o seu trabalho. Combinando uma arqueologia descomplexada com a intervenção diária no processo de edificação de um mundo possivelmente melhor e mais solidário.

                            Atualidade, História, Olhares

                            Memória do ódio

                            Louis Darquier

                            Má-fé é a biografia de um canalha. Louis Darquier (1897-1980), que acrescentaria ao nome próprio um «de Pellepoix», foi um fascista e um anti-semita convicto e militante pelo menos desde os anos 30. Membro da Action Française, da Croix-de-Feu e das Jeunesses Patriotes, atingiu o topo da carreira entre 1942 e 1944, sob a administração nazi, onde, como chefe do Comissariado-Geral para os Assuntos Judaicos, teve a principal responsabilidade na deportação em massa de judeus franceses. Mas viveu também como um escroque (foram sucessivas as fraudes e golpaças nas quais se viu envolvido), um incapaz (viria a ser demitido pelos próprios alemães), um mentiroso (inventando mesmo uma origem social que jamais teve) e um sádico (o livro menciona situações diversas). Foi ainda um pai detestável, abandonando em criança a única filha, Anne, que a autora viria a conhecer por um acaso como psiquiatra, servindo o encontro entre ambas como ponto de partida para este livro. Já perto do final da vida, na Espanha de Franco que o protegeu da extradição e da condenação por colaboracionismo, Darquier tornar-se-ia ainda um dos primeiros negacionistas do Holocausto, ao declarar, em entrevista ao L’Express, que em Auschwitz as câmaras de gás teriam sido utilizadas apenas para exterminar piolhos. Um relato, negro mas dolorosamente útil, centrado na memória do ódio. [Carmen Callil, Má-fé. Uma história esquecida de pátria e família. Trad. de António Belo. Pedra da Lua, 712 págs.]

                              História, Memória

                              O conflito interminável

                              Acre

                              Para Homero gregos e troianos partilhavam valores idênticos, mas para as gerações que definiram as suas identidades e as suas expectativas culturais em torno do mito que nasceu com a Ilíada, a queda de Tróia marcou o princípio de um combate pela supremacia travado entre dois povos e separou definitivamente duas maneiras de viver. Em Mundos em Guerra, Anthony Pagden conta como numa certa manhã, ao pequeno-almoço, a sua mulher, a classicista Giulia Sissa, observando no jornal uma fotografia na qual se podia ver um grupo de iranianos prostrados em oração, comentou: «Que irónico! Foi exactamente este hábito de prostração dos antigos Persas que tanto horrorizou os Gregos.» Neste livro procura-se justamente historiar a génese e o trajecto do afastamento e da incompreensão entre «Ocidente» e «Oriente», ainda tão presente e ateada por estes dias.

                              A possibilidade de um «choque de civilizações», sugerida por Samuel T. Huntington logo após o termo da primeira Guerra do Golfo, foi popularizada, descontextualizada da argumentação do americano, não como metáfora mas enquanto possibilidade, materializável num conflito apocalíptico entre o Ocidente e o Islão, e muitos foram os autores e comentadores que recorreram ao filão nos seus argumentos. Olhando apenas para o título, Mundos em Guerra parece avançar na mesma direcção, mas rapidamente percebemos que o autor não tem esse propósito. Padgen é um reputado historiador da UCLA, e apesar de não manifestar propriamente uma grande predilecção pelo papel da religião na clivagem cavada ao longo de séculos, mostra ser um académico preparado para escrever, apoiado numa dose notável de conhecimento e de reflexão, sobre os múltiplos contornos e os sucessivos episódios que ao longo de 2.500 anos essa separação foi tomando, estabelecendo uma oposição entre europeus e asiáticos inicialmente localizada mas depois planetária. Um trajecto documentado num texto absorvente, no qual a guerra – dos Balcãs da idade clássica ao Afeganistão contemporâneo, tendo a época das Cruzadas como instante particularmente sangrento e traumático – é sempre o princípio e o fim de tudo, causa e consequência de uma sucessão de disputas agravadas, muitas vezes, mais pela incompreensão e pelo medo, culturalmente estabelecidos, do que pela avidez da conquista.

                              No final, o autor deixa uma frase que se não é de pessimista é a de um céptico: «Enquanto houver quem insista que isso faz sentido, a antiga luta entre «Oriente» e «Ocidente» vai continuar. Hoje, pode resumir-se a ataques terroristas ou a manifestações públicas de ódio, mas nem por isso deixa de ser tão azeda e tão inútil como o foi durante os últimos dois milénios.» De facto, a divisão permanece, colocando, de um dos lados, os porta-vozes das democracias ocidentais, convencidos ainda, não muito menos que na época das Luzes, de que os seus valores e programas políticos podem ter uma aplicação universal. Do outro, um Islão combativo, por vezes furioso, que frequentes vezes se lê a si próprio como uma comunidade de crentes destinada a alcançar uma dimensão universal. Parece, pois, que regressámos ao ponto de partida. Que retornámos a Tróia.

                              Anthony Padgen, Mundos em Guerra. 2500 anos de conflito entre o Ocidente e o Oriente. Tradução de Miguel Mata. Edições 70, 596 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Junho]

                                História

                                Em volta do esquecimento

                                Comboio da Memória

                                Depois de em 2005 ter publicado Pós-Guerra, Tony Judt passou a ser um dos historiadores do mundo contemporâneo mais conhecidos fora dos circuitos universitários. Mas O Século XX Esquecido, editado posteriormente, aproxima-se mais de The Burden of Responsability, lançado em 1998, um livro sobre a tradição intelectual francesa do período inaugurado com a vitória dos aliados que se inscreve num dos interesses estáveis de investigação de Judt. A edição portuguesa omite a palavra que se destaca no título original – Reappraisals, reavaliações – e é pena que o tenha feito, pois o volume, agrupando 23 ensaios escritos entre 1994 e 2006, propõe justamente uma série de olhares bastante originais, apoiados por uma excelente capacidade de argumentação e apresentados sob a forma de regressos, de releituras, a realidades relativamente recentes que a vertigem da «era do esquecimento» se tem encarregado de suprimir.

                                Do conjunto emergem duas preocupações maiores de Judt. A primeira enfrenta o «desaparecimento do intelectual» como instrumento de uma consciência crítica do seu tempo, cuja herança não está garantido que sobreviva às mudanças actualmente em curso. A outra diz respeito à aceleração dos processos de esquecimento do passado e de instrumentalização da memória. Ambas atravessam as quatro partes nas quais os ensaios escolhidos foram arrumados. A inaugural apresenta um conjunto de viagens ao «coração das trevas», olhando de perto a trajectória de intelectuais que de diferentes maneiras se confrontaram com a experiência totalitária: Arthur Koestler, Primo Levi, Hannah Arendt e o agora quase esquecido Manès Sperber, inequivocamente observados com um respeito enorme pela dificuldade extrema das suas escolhas e do seu trabalho solitário. Já a segunda parte, ocupando-se do «compromisso intelectual», regressa de uma forma crítica e bastante original à obra de Albert Camus, Leszek Kolakowski, Edward Said, Eric Hobsbawm, Louis Althusser e Karol Wojtyla, os dois últimos glosados de um modo particularmente cáustico.

                                Nas terceira e quarta partes intervêm outros interesses de Judt, que vão da história política e cultural da Europa a partir do pós-Segunda Grande Guerra, narrada ponderando a relação das diferentes experiências nacionais com os seus diversos «lugares da memória» – apropriando-se aqui do conhecido conceito lançado por Pierre Nora – à evolução da sociedade americana desde os tempos duros da Guerra Fria aos anos de George W. Bush e da vertigem neocon. Pelo meio dois importantes artigos relativos à história de Israel – onde Judt, de ascendência judaica, viveu parte de uma juventude militante e idealista envolvida na experiência inicial dos kibutzim – , contendo a crítica de uma arrogância belicista que não parou de crescer a partir da Guerra dos Seis Dias (1967), bem como a defesa de um «Estado binacional». Posições que lhe valeram o ódio e actos de vindicta por parte de organizações judaicas, em particular algumas das sediadas nos Estados Unidos. Quase sem momentos fracos, O Século XX Esquecido é um livro soberbo, cuja leitura nos pode ajudar bastante a decifrar o presente que nos cabe viver.

                                Tony Judt, O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias. Tradução de Marcelo Felix. Edições 70, 464 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Junho]

                                  História, Memória