Arquivo de Categorias: História

Uma outra Revolução Francesa

Liberté, Égalité, Fraternité

Desde as obras clássicas de Carlyle, Michelet e Tocqueville, tem permanecido fortíssima a carga política e ideológica que caracteriza a historiografia da Revolução Francesa. Sendo claro que todo o texto histórico é sempre um texto político, a forte vinculação do tema aos debates e contradições em curso nas sociedades nas quais as diferentes interpretações foram produzidas tem sido uma constante. O bicentenário de 1989, dado o seu forte impacto simbólico, catalisou o combate em torno dos trajetos e dos sentidos da Revolução, contrapondo então, embora com diferentes nuances, as abordagens «progressistas» e «reacionária». Em particular, o modo de tratar dois aspetos precisos – o papel da violência revolucionária e a caracterização conspirativa ou circunstancial dos acontecimentos – continuou então a separar as águas. Cidadãos, de Simon Schama, só agora editado por cá mas publicado justamente nesse ano, não fugiu ao confronto. Todavia, encarou-o de uma forma original, o que valeu ao historiador britânico a incompreensão da maioria dos seus pares e de quase toda a crítica. Mais de vinte anos depois, no prefácio que escreveu especialmente para esta edição portuguesa, lembra com ironia a perturbação que a obra causou: «Roger Chartier classificou-o como ‘reaganismo’ nas páginas do Le Monde, o que significou que fui imediatamente felicitado nas páginas do Le Figaro.» (mais…)

    História

    Guerra e cumplicidade

    isto não é ficção

    A crítica contemporânea da velha ideia de «guerra justa» apoia-se com frequência num erro grosseiro. Parte de um princípio fácil de reconhecer por quem da vida social tenha uma perspetiva não contaminada pela paranoia da violência: todas as guerras são más, todas são devastadoras, todas provocam sofrimento, todas deixam um rasto traumático de medo, perda, mutilação e morte. Por isso, considera essa crítica que absolutamente tudo deve ser feito para que sejam evitadas ou para que cessem. Mas atrapalha-se num equívoco capaz de contrariar as melhores intenções quando sublinha, fundada nos valores do relativismo cultural mais inflexível, a impossibilidade de aplicar à violência armada diferenciados graus de ética e de justiça. Considera então que o justo para uma das partes envolvidas não o é necessariamente para a outra, e, em consequência, desconfia de quem se proponha estabelecer critérios que graduem responsabilidades na aferição do mal.

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      Atualidade, História, Olhares, Opinião

      Três personagens (e mais um)

      Leonardo Padura

      O desígnio comunista, o ideal que se aplica a projectar um mundo mais justo, menos desigual e por isso presumivelmente melhor, convive com um espectro que lhe ensombra as noites e lhe atrapalha as rotas. A compleição colossal deste fantasma compreende três partes que funcionam em conjunto. A primeira integra o corpus teórico que definiu a teoria da luta de classes e a adaptou à tomada e à conservação do poder pelos autoproclamados mandatários da «classe revolucionária». A segunda parte comporta a experiência catastrófica, bestial e vencida do «socialismo real». A terceira inclui a organização e a prática dos partidos e organizações que juram lutar pelo comunismo sem serem capazes de ajustar as contas com a experiência histórica que o perverteu. Enquanto esta massa não for compreendida e desmembrada, dificilmente o ideal comunista recuperará a sua capacidade para conquistar milhões de partidários e de simpatizantes e para gerar futuros desejáveis e plausíveis de justiça e de liberdade. A percepção deste problema – e desta necessidade também – é uma boa chave para a leitura de O Homem Que Gostava de Cães, o último livro do escritor cubano Leonardo Padura. (mais…)

        Atualidade, Ficção, História

        Gares, comboios e o resto

        A partir da década de 1830, com a abertura das primeiras linhas preferencialmente destinadas a passageiros, a Europa e as Américas descobriram no caminho de ferro uma dimensão da utopia. O novo meio de transporte permitia agora percorrer enormes distâncias a velocidades inauditas, construindo, para quem tinha a possibilidade de viajar, uma forma radicalmente nova de apreender o mundo, os mapas, as fronteiras, as paisagens, as relações humanas, os negócios, o conhecimento e até a memória. A literatura oitocentista testemunha mil vezes a participação do comboio e das suas linhas na aceleração dos enredos, na verbalização do fascínio romanesco por uma geografia renovada feita de chegadas, de partidas e de movimento.

        Esta dependia em larga medida do traçado em rede, que dava azo a que as antigas jornadas lineares, normalmente por etapas, ganhassem agora novas configurações, mais complexas e ao dispor da vontade e da bolsa dos viajantes que se multiplicavam. Mas não servia apenas para os levar a conhecer mundos, uma vez que esses mundos podiam também desembarcar nas cidades. Eça fala-nos do alvoroço dos estudantes que peregrinavam semanalmente até à estação de Coimbra para verem chegar, e logo ali serem abertos, os caixotes contendo as últimas novidades literárias da admirada Paris. O Sud Express surge então como parte do que se acreditava poder vir a ser uma linha continental capaz de unir Lisboa a São Petersburgo. Foi a expansão dos nacionalismos, culminando com as duas guerras mundiais e a afirmação dos Estados autoritários assentes no controlo dos cidadãos, que tornou impossível, e por vezes pintado de negro carregado, o devaneio oitocentista. O medo e o desespero apoderaram-se então das gares e das carruagens, tantas vezes «rigorosamente vigiadas», como evocava o filme de Jirí Menzel.

        O fim das ditaduras e o derrube do Muro poderiam ter deixado que a utopia ferroviária retomasse o seu caminho, mas entretanto o uso das estradas já se havia tornado determinante. A linha de comboio, no entanto, não deixou de continuar associada a um certo padrão de viagem, tendo ao longo de décadas ajudado milhões de jovens a descobrirem o seu continente e gerações de trabalhadores a ganharem as suas vidas. Habitando o nosso imaginário colectivo, ela está agora em condições de ajudar a resolver muitas das dificuldades de transporte que a crise económica está a impor à maioria dos cidadãos. O comboio tomado – excepto para quem continue a comprar os pacotes turísticos que simulam os míticos Expresso do Oriente ou o Transiberiano – já não como espaço previsível de «aventura e descoberta» mas como uma necessidade e um veículo para ir traçando sucessivas linhas da vida. Assim o considerem as autoridades públicas, antes que os carris abandonados fiquem cobertos de pedregulhos, ervas daninhas e ninhos de serpentes.

        Fotografia: Marta Bevacqua, The Train

          Apontamentos, Atualidade, História, Olhares

          O troco da memória ofendida

          memória

          A partir de «Em Angola era o paraíso», um post da Isabela Figueiredo sobre o hate mail que lhe chega conectado com o Caderno de Memórias Coloniais, aterro num tema que se tem cruzado regularmente com o meu trabalho. Em grande parte por ser historiador e por nessa condição – ou na de crítico, ou na de cidadão opinante, que regularmente também exerço – me ocupar sobretudo de um tempo recente, próximo, ainda quente, testemunhado por muitas pessoas que, mais ou menos novas, permanecem vivas, confronto-as, e vejo-me confrontado porque eu mesmo fui parte do tempo que observo e do qual falo, com uma constatação que a todos perturba. É fácil identificá-la: quando alguém remexe no nosso passado, ou no passado que vivemos em colectivo, constrói dele uma descrição que jamais é a nossa. Enquanto passear pelo simples facto, pelo episódico, o problema não é grave, podendo até ajudar a recuperar fragmentos de memória perdida ou a corrigir certezas infundadas. No entanto, se passamos à fase de construção de uma narrativa razoavelmente complexa, coerente e documentada, tudo se torna muito difícil.

          A partir dessa altura começamos a abalar a bela encenação, cheia de verdade e fantasia, que essas pessoas construíram – ou nós mesmo construímos – do passado do qual todos participámos e no qual, quase invariavelmente, na nossa épica rememoração desempenhámos, enquanto actores ou figurantes, um papel se não heróico pelo menos positivo. Ver despedaçar o romance que construímos a partir da nossa própria experiência, da vivência do que convencionámos terem sido os nosso melhores anos – e ver que nos escaparam muitas coisas, que nem sempre aconteceram como as recordamos, e ver que certas vezes andámos enganados, que só percebemos uma parte, que tudo foi muito mais complexo e provavelmente menos idílico – não cai assim muito bem em toda a gente. Quem se dedica a remexer nas vidas dos que ainda respiram sabe muito bem que não se pode dizer a alguém que aquele instante particular, para essas pessoas tão forte e tão importante, pode afinal não ter acontecido bem assim como elas têm a «absoluta certeza» que aconteceu. Pode não ter valido aquilo que elas hoje pensam ou precisam pensar que valeu. Pode ter acontecido de diferentes maneiras. Ou melhor: lá dizer, pode dizer, mas sujeita-se a levar com o troco da memória ofendida.

            História, Memória, Olhares

            Memória dos tempos que hão-de vir

            T. Roszak

            Quem se interesse por perceber o percurso dos velhos sixties, superando a visão nostálgica ou aquela que se lhe opõe, tomando-os como um desperdiçado tempo de desordem e retrocesso, ouviu por certo falar de um livro chamado The Making of a Counter-Culture, subintitulado Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition, e que foi publicado logo em 1969, ainda os sons de Woodstock ressoavam vagamente pelos ares. Nesta obra, como tantas outras mais citada do que lida, o professor californiano Theodore Roszak abordou a origem americana, rapidamente alargada aos ambientes urbanos das sociedades dos países capitalistas avançados, da contracultura como ferramenta da ruptura e da contestação cultural, e como instrumento de rejeição da tirania imposta pelo sistema educativo e pela autoridade familiar produzidos pelo triunfo histórico do capitalismo. (mais…)

              História, Memória, Opinião

              O que aconteceu a Patty Hearst

              Patty Hearst

              Do arquivo dos meus blogues-antes-deste. Escrito em Outubro de 2005.

              Há cerca de três décadas, quando as correntes «de raiva e esperança» dos sessentas haviam suavizado já o furor, foram muitos os que desistiram dos planos para mudar o mundo a troco da aceitação silenciosa das regras conviviais do neoliberalismo. Só uns quantos obstinados procuravam ainda resistir-lhe. Portugal vivia na altura o transe da sua doméstica metamorfose, mas mais além, do lado de cá do Dniepre como da outra banda do Atlântico, cresciam ou radicalizavam-se os movimentos, autoproclamados como vanguardas, que se propunham inverter os ventos através da acção directa das minorias esclarecidas e activas. Mostrando-se como exemplo ou servindo de rastilho para o que acreditavam poder ser um retorno da acção redentora «das massas». Integravam a arquitectura de um terrorismo – à época selectivo, e quase benigno quando comparado com o que hoje conhecemos – que os governantes procuravam conter. E se não conquistavam grandes adesões, convocavam alguma simpatia da parte daqueles a quem o sistema imposto pelos vencedores da ressaca «sessentista» parecia realmente odioso. (mais…)

                História, Memória, Olhares

                República, Estado e Igreja revisitados

                Jesuíta
                Medição antropométrica da cabeça de um jesuíta.

                Se tivermos em conta os contributos aparecidos nos últimos dois anos em redor da passagem do seu centenário, a República Portuguesa saída do 5 de Outubro de 1910 é agora um dos períodos da vida nacional mais inquiridos pelos historiadores. Esta circunstância não invalida porém – é esse aliás o principal interesse de toda a História viva –, a possibilidade de ocorrerem interpretações inovadoras, por vezes a contracorrente, que sistematicamente alertam para os limites de leituras estereotipadas e condicionadas por respostas previamente escolhidas. Aquilo que de marcadamente inovador contém A Separação do Estado e da Igreja, de Luís Salgado de Matos, é pois a sua capacidade, apoiada numa investigação pormenorizadíssima e numa argumentação liberta de apriorismos, para ler com outras lentes aquilo que já foi repetidamente abordado e sobre o qual tudo pareceria estar dito e escrito.

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                  História

                  O PCP entre Abril e Novembro

                  PCP

                  Simplificando propositadamente, pode dizer-se que o biénio revolucionário português de 1974-1975 representou um Fevereiro de 1917 sem o subsequente Outubro. A tese central deste livro de Raquel Varela – na origem a sua dissertação de doutoramento – sublinha que, se este esteve perto de chegar, tal não aconteceu, ao contrário do que é frequentemente propagado, em larga medida devido às escolhas e aos métodos adoptados na altura pelo Partido Comunista Português. Deixa ainda claro que o fim daquele período de rápida mudança e de grandes expectativas, e a subsequente passagem a um regime democrático-liberal, foram pacíficos e ocorreram com escassa resistência devido à posição e às acções do mesmo partido. Em consonância com esta ideia, procura mostrar, uma vez mais ao contrário das interpretações dominantes, que bem ao invés das intenções revolucionárias e golpistas que lhes têm sido atribuídas nos momentos decisivos os comunistas escolheram governar com o Partido Socialista, procurando contornar as clivagens e as circunstâncias que pudessem pôr em causa essa linha estratégica.

                  A História do PCP na Revolução dos Cravos inscreve-se no campo de investigação próprio da história do presente, o qual oferece inúmeras possibilidades de pesquisa mas escapa aos domínios relativamente assépticos e mais facilmente consensualizáveis no qual trabalham os historiadores que se dedicam a épocas mais recuadas. Relaciona-se com interesses e preocupações ainda próximos, cuja energia se não diluiu, e incorre por isso em análises inevitavelmente controversas, sujeitas a confrontações, o que acontece neste caso. A abordagem documental da política do PCP face ao desenvolvimento do processo revolucionário e às posições dos socialistas e do MFA é exaustiva e permite contornar muitas das eventuais objecções, mas os limites colocados à investigação das fontes, em particular os erguidos pelo próprio PCP, não sendo da responsabilidade da historiadora deixam sempre em aberto a possibilidade do enredo escolhido vir a precisar de alguma afinação. Poderá, por exemplo, revelar-se útil uma inquirição das iniciativas e das pulsões revolucionárias experimentadas pelos sectores do partido mais directamente envolvidos nos movimentos de massas. Não é este no entanto o ângulo de análise deste trabalho, assumidamente centrado na intervenção do núcleo dirigente reunido em volta de Álvaro Cunhal. Neste sentido, nenhum estudo futuro poderá contornar a investigação exaustiva que lhe serviu de fundamento e o valor da dose de informação que oferece.

                  Raquel Varela, A História do PCP na Revolução dos Cravos. Bertrand Editora. 400 págs. Publicado na LER de Junho de 2011.

                    História, Memória

                    Guevara e Theroux

                    Che

                    Conta Pierre Kalfon, um dos seus mais isentos biógrafos (poucos entre muitos), que numa tarde de Abril de 1964, durante uma breve passagem por Paris – a caminho da União Soviética em missão diplomática da então jovem revolução cubana – Ernesto Guevara almoçou numa pizzaria da Boulevard Saint-Michel. Passeou depois por meia hora pelas imediações do Collège de France e da Sorbonne, que muito antes conhecera de leituras e de filmes. Relatará o próprio «Che» que de repente, na Rue des Écoles, um sujeito reparou no seu inconfundível aspeto – barba rala e desalinhada, a boina preta estrelada e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que o acompanhava: «Vê bem a lata daquele tipo ali, a imitar o Che Guevara!» Desde muito cedo a figura do argentino viu-se de facto colada ao ícone que excedia já o seu corpo físico, definindo-se muito para além do lugar datado e material que a História lhe reservou.

                    De início, e durante bastantes anos, ela ganhou vida no espectro das crenças insurretas que interpretavam as possibilidades de erguer um mundo melhor, mais igualitário e mais justo. Conquistado no entanto, se preciso fosse, a tiro de bazuca e de metralhadora. Esse é o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com sentido de missão ou necessidade de ratificação tribal, ainda transportam consigo, como vestígio de uma real ou imaginada insolência, em medalhas, autocolantes e t-shirts. Quase sem de tal se aperceberem, rompem porém as configurações da rebeldia e do desespero, associando-as a algo de mais amplo que integra o conjunto de sinais dos quais se servem habitualmente os imaginários de fuga. Aproximando-se do logótipo dos velhos cigarros Camel, do mapa irregular de uma ilha das Caraíbas gravado na publicidade colorida de uma marca de rum, das capas tentadoras dos livros de Bruce Chatwin ou de Paul Theroux. Para os quais olhamos sem grandes conjeturas, projetando a ideia da viagem, da partida, associada a uma vaga e errática noção de liberdade.

                      História, Memória, Olhares

                      Wstawać

                      Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto. Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, depois de descoberta a sua ascendência judia, ser enviado para o campo de extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de memória», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem, com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza – se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento. (mais…)

                        Direitos Humanos, História, Leituras, Memória

                        Elena Bonner

                        Andrei e Elena

                        Desapareceu este sábado em Boston, aos 88, a antiga dissidente soviética Elena Bonner (1923-2011), viúva do físico nuclear e dissidente soviético Andrei Sakharov. Durante os anos cinzentos de Brejnev, muitos se habituaram a vê-la sempre ao lado de Andrei na denúncia comum da corrida ao armamento, da manutenção dos campos do Gulag, da perseguição dos dissidentes. Dado o prestígio internacional do marido, que o protegia um pouco dos excessos da repressão, foi muitas vezes Elena quem mais directamente sofreu com os ataques do KGB motivados pela atitude partilhada de enfrentamento do regime. As autoridades, a sua polícia e os seus porta-vozes gostavam de destacar as suas origens judaicas para acusá-la de estar a serviço de potências estrangeiras e de ter desviado Shakarov – Prémio Estaline de 1954, Prémio Lenine de 1956 e antigo membro da Academia das Ciências da União Soviética – «do bom caminho».

                        Em 1938, na época da mais intensa repressão, Elena vira o pai ser fuzilado e a mãe condenada a oito anos de trabalhos forçados. Ainda assim aderiu ao Partido Comunista, abandonando-o apenas em 1968, quando da invasão soviética da Checoslováquia. Durante a década de 1970 participou em protestos contra as detenções em massa de outros dissidentes, tornando-se numa fonte vital de informações sobre o destino dos detidos e exilados. Viria a receber em Oslo o Nobel da Paz de 1975 concedido ao marido, após Sakharov ter sido proibido de viajar para o estrangeiro. Confinado este, em 1980, à cidade Gorki, a actual Nizhny Novgorod, por protestar contra a invasão soviética ao Afeganistão, Elena tornou-se então no seu único vínculo com o exterior, até que em 1984 foi também ela condenada a cinco anos de exílio interno em Gorki por ter «divulgado sistematicamente informações caluniosas sobre a União Soviética». Depois do fim da URSS, Bonner participou de importantes organizações de defesa dos direitos humanos, tornando-se numa ardente opositora de Vladimir Putin. Até ontem de manhã.

                          Democracia, História, Memória

                          Jorge e o espírito de Buchenwald

                          Jorge Semprún

                          Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire, «tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»

                            Apontamentos, Democracia, História, Memória

                            Na Crimeia

                            Carga da Brigada Ligeira

                            Half a league, half a league, / Half a league onward,
                            All in the valley of Death / Rode the six hundred.
                            “Forward, the Light Brigade! / “Charge for the guns!” he said:
                            Into the valley of Death / Rode the six hundred.
                            Alfred Tennyson, 1885

                            Comecei ontem Crimea: The Last Crusade, o último livro de Orlando Figes, que comprei em versão e-book para poupar espaço na estante e descansar algum músculo, pois sempre são mais 600 páginas. Leio-o pelo prazer de saber mais sobre um acontecimento que conheci cedo, através de descrições em «livros de quadradinhos», e me atraiu logo por situá-lo então num território vagamente epopeico de acção e aventura, com episódios como a Carga da Brigada Ligeira, durante a batalha de Balaclava, o cerco de Sebastopol ou a acção humanitária de Florence Nightingale. Mas leio-o também por poder seguir de novo um historiador que tem o dom raro e invejável de combinar o rigor e a profundidade da pesquisa com uma capacidade narrativa absolutamente magnética. (mais…)

                              História, Memória

                              O romeno que admirava Salazar

                              Mircea Eliade

                              Em 1941, Mircea Eliade, o professor e escritor reconhecido como um dos fundadores da história moderna dos mitos e das religiões, foi nomeado adido cultural e de imprensa junto da embaixada da Roménia em Lisboa. Por aqui se manteve até 1944, vivendo por isso em Portugal um dos períodos mais agitados da história europeia do século passado, incluindo-se nesta agitação a vivida então no seu conturbado país, cujo governo por essa altura colaborava activamente com a Alemanha de Hitler. Nesta «terra incógnita» para o romeno comum, vem encontrar um «oásis de tranquilidade», e uma acalmia na sua própria vida, que rapidamente associa à lógica de funcionamento do Estado Novo, ao padrão de vida que este impõe à sociedade portuguesa e à figura tutelar, aos seus olhos providente e benevolamente paternal, de Oliveira Salazar. (mais…)

                                História, Memória

                                Uma história falada

                                História oral

                                É cada vez maior o número de trabalhos sobre a história recente – a nossa e a dos outros – que recorrem ao depoimento oral como fonte absolutamente decisiva. A tendência não é nova, uma vez que se tornou patente já em meados do século XX quando a irrupção prática e metodológica da abordagem histórica do presente forçou a uma revisão do pressuposto, ainda dominante entre as duas primeiras gerações da Escola dos Annales, segundo o qual um corte com o passado seria garantia essencial para se chegar a um conhecimento seguro do passado. Esta legitimação da oralidade não foi, de início, nada consensual entre a comunidade dos historiadores, para quem os testemunhos, materializados em entrevistas necessariamente mediadas pelo investigador, eram por vezes considerados fantasiosos e tomados como factor negativo de «subjectivação do passado». Jogando um papel decisivo neste processo, os primeiros estudos sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto cedo mostraram que, ao contrário, esse instrumento representa uma forma de recuperação do vivido que nenhum outro documento, seja ele um diário, um relatório, um livro ou uma imagem, está em condições de colocar à disposição dos investigadores e dos leitores. (mais…)

                                  História, Memória, Olhares

                                  Esboços da utopia

                                  originalmente publicado em heterodoxias|21

                                  O governo soviético da década de 1920 foi o primeiro da História a deter um poder de tal forma pleno e colossal que lhe permitiu conceber de raiz redes de grandes bairros e até cidades inteiras, determinando rigorosamente o número, a dimensão e o desenho dos edifícios e das ruas, bem como a taxa de ocupação em cada área ou estrutura. Podia também escolher sem constrangimentos onde construir, como projectar o crescimento, como articular os novos espaços dentro de um equilíbrio idealizado entre a cidade e o campo, chegando a conceber e tipificar o aspecto, a exacta localização e mesmo o pormenorizado funcionamento das fábricas, dos escritórios, das escolas, dos hospitais, dos armazéns e dos edifícios destinados à habitação. O planeamento urbano num Estado todo ele planificado – que foi aquilo em que a Rússia soviética se transformou a partir de 1928 com a entrada em funcionamento do 1º plano quinquenal – não era uma ocupação menor; tratava-se, de facto, de organizar em larga escala e a partir da base, num esforço de design macro-comunitário, todo um universo que se pretendia radicalmente novo e profundamente dinâmico. Diante de tal projecto, como não compreender o entusiasmo dos quadros políticos, engenheiros, arquitectos, economistas ou geógrafos a quem foi atribuída essa tarefa gigantesca? (mais…)

                                    Artes, Cidades, História, Olhares

                                    Salazar e a Coca-Cola

                                    Calendar Girl

                                    A Coca-Cola fez ontem 125 anos de existência nas bocas do mundo. Até chegar a «água suja do imperialismo» ou ao poderoso diurético um dia recomendado numa entrevista intimista de Lula, o caminho foi longo. Começou cedo, a 8 de Maio de 1886. Com a designação altamente suspeita de «Pemberton’s French Wine Coca», foi inicialmente anunciada como uma bebida para intelectuais, revigorante do cérebro e tónica para os nervos fragilizados. Mas rapidamente arrancou para uma história de sucesso, cujos contornos mais pitorescos podem ser conhecidos no fascinante Made in America, de Bill Bryson (da Bertrand). Por aqui, a efeméride é evocada num colorido relato apresentado por Maria Filomena Mónica em «Trinta anos que mudaram Portugal. 1961-1991», texto incluído na sua colectânea Cenas da Vida Portuguesa, publicada há uma dúzia de anos pela Quetzal. Sabendo que a sua completa fiabilidade histórica requeria uma identificação da fonte que não encontrei, não resisto, ainda assim, a reproduzir o episódio relatado pela popular socióloga. Aqui vai: (mais…)

                                      História, Memória, Recortes