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Isaac Babel e as canções desafinadas

A reminiscência de Isaac Emmanuilovich Babel chegou-me através de um triplo reflexo. Primeiro aquele que deixava vislumbrar o escritor e jornalista combatente, antigo opositor ao czarismo e membro da primeira geração da intelligentsia bolchevique, que durante a guerra civil russa esteve com o Exército Vermelho como oficial, funcionário do comissariado da educação, tradutor e repórter. Depois, o que revelava ter ele sido um dos muitos intelectuais soviéticos, assumidos comunistas, brutalmente perseguidos durante as purgas lançadas por Estaline nos anos trinta. Finalmente, o que iluminava um vestígio do que poderia ter sido a aplicação do ideal revolucionário no campo da literatura e das artes se este não tivesse sido pervertido e transformado num mero instrumento de propaganda, numa correia de transmissão do modelo violento, centralista e despótico que foi tomando gradualmente conta do poder soviético.

Filho de uma família de judeus ortodoxos, Babel nasceu em 1894 em Odessa, a atual cidade da Ucrânia que fizera parte do Império russo desde que fora erguida praticamente do nada no tempo de Catarina, a Grande, para se afirmar como um notável centro cosmopolita e multiétnico aberto, como ponte fronteiriça, a oriente e a ocidente. Em alguns contos com a cidade como centro reunidos em livro em 1931 mas escritos durante os anos vinte, o escritor testemunhou o princípio do fim desse mundo caleidoscópico e essencialmente tolerante um dia habitado por Puchkine e descrito com admiração por um Mark Twain de passagem. Num desses contos, o personagem Benya Krik, o rei brigão do gangue judaico que chegara a controlar parte da cidade, surge representado como os contornos fisionómicos e psicológicos do autor: alguém com «os óculos redondos no nariz e o outono na alma». Charles King, autor de uma recente biografia de Odessa, lembra Babel como «um homem de fronteira que passou a maior parte da sua curta vida movimentando-se entre mundos: o judaico e o russo, o czarista e o bolchevique, o militar e o artístico.» (mais…)

    Biografias, História, Memória

    Outubro como realidade imaginada

    Outubro
    Projeto de cartaz para o filme «Outubro» que foi rejeitado.

    A reconstrução do passado a partir de realidades imaginadas que se apoderam dos factos, alterando o seu eco e dando-lhes um novo sentido, é um expediente conhecido que podemos fazer regredir pelo menos até ao começo do tempo histórico. Muitos dos mais recuados textos escritos ocupavam-se justamente com o retrato ampliado, em regra delirante, dos atos de guerra levados acabo pelas populações das cidades sumérias e principalmente das iniciativas que se supunham assombrosas dos seus chefes, numa escala de grandeza que os historiadores reconhecem como ampliada e em muitos casos inventada. E, no entanto, durante séculos, os primeiros tempos da História que acompanharam a invenção da escrita foram descritos com base nessa informação adulterada, moldando de maneira imperfeita o entendimento que dela foram tendo sucessivas gerações. Um processo contínuo, aplicado de modo recorrente a diferentes tempos e lugares, projetado sobre um passado que passou a ser aquilo que dele se disse que foi e não aquilo que realmente foi. Afinal falamos de representações do real, que partem deste mas o transcendem, avançando em mil direções, algumas das quais verosímeis, apesar de mais ou menos devaneadas.

    Este processo foi particularmente ampliado pela interferência do cinema, uma vez que este não só mistura o real e a fantasia como os mostra a ambos combinados num simulacro de verdade. Enzo Traverso, o politólogo italiano que ensina em Amiens, recorda-nos um caso particularmente marcante, definindo um processo de moldagem do passado que condicionou de maneira profunda o modo de ver a história do mundo durante a maior parte do século XX, chegando até à parte deste que já percorremos. Traverso lembra Outubro, a obra-prima de Sergei Eisenstein, estreada em 1927 para comemorar os dez anos da tomada do poder pelos comunistas moscovitas. Nela um conjunto de acontecimentos, com particular destaque para a tomada do Palácio de Inverno pelas forças revolucionárias, é objeto de um cirurgia destinada a agigantá-los. E então o pequeno golpe de mão que levou os revolucionários a conquistarem simbolicamente a residência oficial do czar, naquele momento desocupada, metamorfoseou-se num insurreição de massas, diretamente dirigida pelo partido de Lenine, que não existiu, de modo algum, da forma ali «mostrada». No entanto, o filme ajudou a que a tomada de poder pelos bolcheviques tivesse passado a ser vista como uma epopeia e até uma jóia da arte militar com um significado universal. Apesar de Vladimir Antonov-Ovseyenko – que comandara o pelotão, voluntarioso mas pequeno e um tanto desordenado, que em 1917 entrou no Palácio e o ocupou – ter sido fuzilado em 1938 durante a fase mais brutal das purgas estalinistas. Lançadas, como se sabe, em nome da «defesa da Revolução de Outubro».

    Adenda: O filme completo (102’) pode ser visto aqui. Entretanto, se pedir nas livrarias (provavelmente terá de encomendar), ou diretamente à editora, ainda pode encontrar Outubro, um livro meu sobre o impacto simbólico da Revolução de 1917.

      História, Memória, Olhares

      11/9, dez anos depois

      O impacto histórico e político do 11/9 começou a ser averiguado logo no dia seguinte ao da combustão das Torres Gémeas. Como ocorre com toda a tentativa empírica de contextualização de acontecimentos recentes, foi acompanhado de observações argutas, interpretações cautelosas ou afirmações disparatadas. Nesta última direção, poucas semanas depois, em Amesterdão, Norman Mailer erguia a voz perante uma audiência arrebatada: «Tudo o que está errado na América conduziu à construção de uma Torre de Babel que, consequentemente, tinha de ser destruída». Desqualificou aliás o ataque, afirmando que este devia principalmente «ser visto como uma crítica». Van Houcke, um jornalista holandês, acrescentou então: «Os sem-abrigo, os destituídos de poder, os aterrorizados, as minorias, estão a usar o terror para ripostar.» O antiamericanismo mais cego, esse não tinha quaisquer dúvidas sobre quem eram os verdadeiros culpados: «estavam mesmo a pedi-las!»

      Com o tempo, no entanto, as explicações foram-se tornando menos precipitadas e simplistas, menos dependentes de fortes convicções e rancores de longa data, construindo-se gradualmente um legado documental e interpretativo rico e diversificado que é, para a década que se seguiu a um facto histórico de tal alcance, dos mais significativos que se conhecem. Em todo o caso, a generalidade das observações foi qualificando sempre o «choque» Ocidente-Islão como inevitável e potencialmente perigoso para a subsistência da paz, tendendo cada um dos «lados», apesar da diversidade das análises, a expurgar o outro da verdade e da razão. A imagem de uma «rua árabe» barbuda e ameaçadora, fundada no ódio e na violência, passou a dominar os média ocidentais, mas, de uma forma só aparentemente paradoxal, passou a dominar também a comunicação, rigidamente controlada pelas autoridades políticas e religiosas, que se fazia ouvir dentro dos próprios Estados islâmicos. E assim nos fomos mantendo até que, em dezembro de 2010, na Tunísia, a Revolução de Jasmim iniciou o rápido processo de transformação do mundo árabe com o qual convivemos.

      A partir desse mês, o islamismo mais intransigente e violento deixou de ser vivido e apresentado como uma tendência dominante e que não podia ser evitada. Como nota David Remnick na New Yorker desta semana, os acontecimentos no Norte de África e no Médio Oriente têm revelado a construção de uma alternativa poderosa aos governos ultra-autoritários e ao terror islamita. Há ainda pela frente enormes lutas a travar – lutas entre a modernidade, a democracia representativa, o fundamentalismo religioso, o tribalismo, aquilo que resta dos velhos regimes ou dos sonhos ainda mais antigos do «nacionalismo árabe» e do «socialismo islâmico» – e ninguém pode saber o que vai acontecer, mas o desaparecimento dos regimes de Ali, Mubarak ou Khadafi, talvez mesmo, num prazo um pouco mais dilatado, os de Assad, dos mullahs do Irão, ou mesmo da realeza saudita, deixa no ar um perfume de abertura, diversidade e esperança. Neste sentido, a visão catastrófica e sanguinária do papel do Islão aberta com o 11/9 tem vindo a ser pulverizada. Esta é, com toda a certeza, uma viragem de página numa História que nos habituámos a ver em movimento cada vez mais acelerado. Por isso o atual cenário é o melhor que poderíamos esperar para evocar de forma minimamente positiva o que de terrível aconteceu há dez anos.

        Atualidade, História, Memória, Olhares

        Thomas Mann e o FBI

        Thomas Mann

        O escritor Thomas Mann, humanista après la lettre e homem estruturalmente conservador, cujas convicções mais estáveis mergulhavam na cultura alemã de Oitocentos, teve durante o exílio americano, em conjunto com os filhos Klaus e Erika, um processo de mais de mil páginas aberto pelo prestimoso Federal Bureau of Investigation. Segundo Rob Riemen, a acusação mais notável que ali pode ser encontrada é a de «antifascismo prematuro», isto é, resistência ao fascismo antes dos Estados Unidos da América declararem guerra à Alemanha no final do ano de 1941. Corriam os tempos turvos do McCarthismo e a sua atitude, de acordo com os aplicados investigadores do FBI, só poderia dever-se a uma simpatia não declarada pelo comunismo.

          Apontamentos, História, Olhares

          Uma outra Revolução Francesa

          Liberté, Égalité, Fraternité

          Desde as obras clássicas de Carlyle, Michelet e Tocqueville, tem permanecido fortíssima a carga política e ideológica que caracteriza a historiografia da Revolução Francesa. Sendo claro que todo o texto histórico é sempre um texto político, a forte vinculação do tema aos debates e contradições em curso nas sociedades nas quais as diferentes interpretações foram produzidas tem sido uma constante. O bicentenário de 1989, dado o seu forte impacto simbólico, catalisou o combate em torno dos trajetos e dos sentidos da Revolução, contrapondo então, embora com diferentes nuances, as abordagens «progressistas» e «reacionária». Em particular, o modo de tratar dois aspetos precisos – o papel da violência revolucionária e a caracterização conspirativa ou circunstancial dos acontecimentos – continuou então a separar as águas. Cidadãos, de Simon Schama, só agora editado por cá mas publicado justamente nesse ano, não fugiu ao confronto. Todavia, encarou-o de uma forma original, o que valeu ao historiador britânico a incompreensão da maioria dos seus pares e de quase toda a crítica. Mais de vinte anos depois, no prefácio que escreveu especialmente para esta edição portuguesa, lembra com ironia a perturbação que a obra causou: «Roger Chartier classificou-o como ‘reaganismo’ nas páginas do Le Monde, o que significou que fui imediatamente felicitado nas páginas do Le Figaro.» (mais…)

            História

            Guerra e cumplicidade

            isto não é ficção

            A crítica contemporânea da velha ideia de «guerra justa» apoia-se com frequência num erro grosseiro. Parte de um princípio fácil de reconhecer por quem da vida social tenha uma perspetiva não contaminada pela paranoia da violência: todas as guerras são más, todas são devastadoras, todas provocam sofrimento, todas deixam um rasto traumático de medo, perda, mutilação e morte. Por isso, considera essa crítica que absolutamente tudo deve ser feito para que sejam evitadas ou para que cessem. Mas atrapalha-se num equívoco capaz de contrariar as melhores intenções quando sublinha, fundada nos valores do relativismo cultural mais inflexível, a impossibilidade de aplicar à violência armada diferenciados graus de ética e de justiça. Considera então que o justo para uma das partes envolvidas não o é necessariamente para a outra, e, em consequência, desconfia de quem se proponha estabelecer critérios que graduem responsabilidades na aferição do mal.

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              Atualidade, História, Olhares, Opinião

              Três personagens (e mais um)

              Leonardo Padura

              O desígnio comunista, o ideal que se aplica a projectar um mundo mais justo, menos desigual e por isso presumivelmente melhor, convive com um espectro que lhe ensombra as noites e lhe atrapalha as rotas. A compleição colossal deste fantasma compreende três partes que funcionam em conjunto. A primeira integra o corpus teórico que definiu a teoria da luta de classes e a adaptou à tomada e à conservação do poder pelos autoproclamados mandatários da «classe revolucionária». A segunda parte comporta a experiência catastrófica, bestial e vencida do «socialismo real». A terceira inclui a organização e a prática dos partidos e organizações que juram lutar pelo comunismo sem serem capazes de ajustar as contas com a experiência histórica que o perverteu. Enquanto esta massa não for compreendida e desmembrada, dificilmente o ideal comunista recuperará a sua capacidade para conquistar milhões de partidários e de simpatizantes e para gerar futuros desejáveis e plausíveis de justiça e de liberdade. A percepção deste problema – e desta necessidade também – é uma boa chave para a leitura de O Homem Que Gostava de Cães, o último livro do escritor cubano Leonardo Padura. (mais…)

                Atualidade, Ficção, História

                Gares, comboios e o resto

                A partir da década de 1830, com a abertura das primeiras linhas preferencialmente destinadas a passageiros, a Europa e as Américas descobriram no caminho de ferro uma dimensão da utopia. O novo meio de transporte permitia agora percorrer enormes distâncias a velocidades inauditas, construindo, para quem tinha a possibilidade de viajar, uma forma radicalmente nova de apreender o mundo, os mapas, as fronteiras, as paisagens, as relações humanas, os negócios, o conhecimento e até a memória. A literatura oitocentista testemunha mil vezes a participação do comboio e das suas linhas na aceleração dos enredos, na verbalização do fascínio romanesco por uma geografia renovada feita de chegadas, de partidas e de movimento.

                Esta dependia em larga medida do traçado em rede, que dava azo a que as antigas jornadas lineares, normalmente por etapas, ganhassem agora novas configurações, mais complexas e ao dispor da vontade e da bolsa dos viajantes que se multiplicavam. Mas não servia apenas para os levar a conhecer mundos, uma vez que esses mundos podiam também desembarcar nas cidades. Eça fala-nos do alvoroço dos estudantes que peregrinavam semanalmente até à estação de Coimbra para verem chegar, e logo ali serem abertos, os caixotes contendo as últimas novidades literárias da admirada Paris. O Sud Express surge então como parte do que se acreditava poder vir a ser uma linha continental capaz de unir Lisboa a São Petersburgo. Foi a expansão dos nacionalismos, culminando com as duas guerras mundiais e a afirmação dos Estados autoritários assentes no controlo dos cidadãos, que tornou impossível, e por vezes pintado de negro carregado, o devaneio oitocentista. O medo e o desespero apoderaram-se então das gares e das carruagens, tantas vezes «rigorosamente vigiadas», como evocava o filme de Jirí Menzel.

                O fim das ditaduras e o derrube do Muro poderiam ter deixado que a utopia ferroviária retomasse o seu caminho, mas entretanto o uso das estradas já se havia tornado determinante. A linha de comboio, no entanto, não deixou de continuar associada a um certo padrão de viagem, tendo ao longo de décadas ajudado milhões de jovens a descobrirem o seu continente e gerações de trabalhadores a ganharem as suas vidas. Habitando o nosso imaginário colectivo, ela está agora em condições de ajudar a resolver muitas das dificuldades de transporte que a crise económica está a impor à maioria dos cidadãos. O comboio tomado – excepto para quem continue a comprar os pacotes turísticos que simulam os míticos Expresso do Oriente ou o Transiberiano – já não como espaço previsível de «aventura e descoberta» mas como uma necessidade e um veículo para ir traçando sucessivas linhas da vida. Assim o considerem as autoridades públicas, antes que os carris abandonados fiquem cobertos de pedregulhos, ervas daninhas e ninhos de serpentes.

                Fotografia: Marta Bevacqua, The Train

                  Apontamentos, Atualidade, História, Olhares

                  O troco da memória ofendida

                  memória

                  A partir de «Em Angola era o paraíso», um post da Isabela Figueiredo sobre o hate mail que lhe chega conectado com o Caderno de Memórias Coloniais, aterro num tema que se tem cruzado regularmente com o meu trabalho. Em grande parte por ser historiador e por nessa condição – ou na de crítico, ou na de cidadão opinante, que regularmente também exerço – me ocupar sobretudo de um tempo recente, próximo, ainda quente, testemunhado por muitas pessoas que, mais ou menos novas, permanecem vivas, confronto-as, e vejo-me confrontado porque eu mesmo fui parte do tempo que observo e do qual falo, com uma constatação que a todos perturba. É fácil identificá-la: quando alguém remexe no nosso passado, ou no passado que vivemos em colectivo, constrói dele uma descrição que jamais é a nossa. Enquanto passear pelo simples facto, pelo episódico, o problema não é grave, podendo até ajudar a recuperar fragmentos de memória perdida ou a corrigir certezas infundadas. No entanto, se passamos à fase de construção de uma narrativa razoavelmente complexa, coerente e documentada, tudo se torna muito difícil.

                  A partir dessa altura começamos a abalar a bela encenação, cheia de verdade e fantasia, que essas pessoas construíram – ou nós mesmo construímos – do passado do qual todos participámos e no qual, quase invariavelmente, na nossa épica rememoração desempenhámos, enquanto actores ou figurantes, um papel se não heróico pelo menos positivo. Ver despedaçar o romance que construímos a partir da nossa própria experiência, da vivência do que convencionámos terem sido os nosso melhores anos – e ver que nos escaparam muitas coisas, que nem sempre aconteceram como as recordamos, e ver que certas vezes andámos enganados, que só percebemos uma parte, que tudo foi muito mais complexo e provavelmente menos idílico – não cai assim muito bem em toda a gente. Quem se dedica a remexer nas vidas dos que ainda respiram sabe muito bem que não se pode dizer a alguém que aquele instante particular, para essas pessoas tão forte e tão importante, pode afinal não ter acontecido bem assim como elas têm a «absoluta certeza» que aconteceu. Pode não ter valido aquilo que elas hoje pensam ou precisam pensar que valeu. Pode ter acontecido de diferentes maneiras. Ou melhor: lá dizer, pode dizer, mas sujeita-se a levar com o troco da memória ofendida.

                    História, Memória, Olhares

                    Memória dos tempos que hão-de vir

                    T. Roszak

                    Quem se interesse por perceber o percurso dos velhos sixties, superando a visão nostálgica ou aquela que se lhe opõe, tomando-os como um desperdiçado tempo de desordem e retrocesso, ouviu por certo falar de um livro chamado The Making of a Counter-Culture, subintitulado Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition, e que foi publicado logo em 1969, ainda os sons de Woodstock ressoavam vagamente pelos ares. Nesta obra, como tantas outras mais citada do que lida, o professor californiano Theodore Roszak abordou a origem americana, rapidamente alargada aos ambientes urbanos das sociedades dos países capitalistas avançados, da contracultura como ferramenta da ruptura e da contestação cultural, e como instrumento de rejeição da tirania imposta pelo sistema educativo e pela autoridade familiar produzidos pelo triunfo histórico do capitalismo. (mais…)

                      História, Memória, Opinião

                      O que aconteceu a Patty Hearst

                      Patty Hearst

                      Do arquivo dos meus blogues-antes-deste. Escrito em Outubro de 2005.

                      Há cerca de três décadas, quando as correntes «de raiva e esperança» dos sessentas haviam suavizado já o furor, foram muitos os que desistiram dos planos para mudar o mundo a troco da aceitação silenciosa das regras conviviais do neoliberalismo. Só uns quantos obstinados procuravam ainda resistir-lhe. Portugal vivia na altura o transe da sua doméstica metamorfose, mas mais além, do lado de cá do Dniepre como da outra banda do Atlântico, cresciam ou radicalizavam-se os movimentos, autoproclamados como vanguardas, que se propunham inverter os ventos através da acção directa das minorias esclarecidas e activas. Mostrando-se como exemplo ou servindo de rastilho para o que acreditavam poder ser um retorno da acção redentora «das massas». Integravam a arquitectura de um terrorismo – à época selectivo, e quase benigno quando comparado com o que hoje conhecemos – que os governantes procuravam conter. E se não conquistavam grandes adesões, convocavam alguma simpatia da parte daqueles a quem o sistema imposto pelos vencedores da ressaca «sessentista» parecia realmente odioso. (mais…)

                        História, Memória, Olhares

                        República, Estado e Igreja revisitados

                        Jesuíta
                        Medição antropométrica da cabeça de um jesuíta.

                        Se tivermos em conta os contributos aparecidos nos últimos dois anos em redor da passagem do seu centenário, a República Portuguesa saída do 5 de Outubro de 1910 é agora um dos períodos da vida nacional mais inquiridos pelos historiadores. Esta circunstância não invalida porém – é esse aliás o principal interesse de toda a História viva –, a possibilidade de ocorrerem interpretações inovadoras, por vezes a contracorrente, que sistematicamente alertam para os limites de leituras estereotipadas e condicionadas por respostas previamente escolhidas. Aquilo que de marcadamente inovador contém A Separação do Estado e da Igreja, de Luís Salgado de Matos, é pois a sua capacidade, apoiada numa investigação pormenorizadíssima e numa argumentação liberta de apriorismos, para ler com outras lentes aquilo que já foi repetidamente abordado e sobre o qual tudo pareceria estar dito e escrito.

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                          História

                          O PCP entre Abril e Novembro

                          PCP

                          Simplificando propositadamente, pode dizer-se que o biénio revolucionário português de 1974-1975 representou um Fevereiro de 1917 sem o subsequente Outubro. A tese central deste livro de Raquel Varela – na origem a sua dissertação de doutoramento – sublinha que, se este esteve perto de chegar, tal não aconteceu, ao contrário do que é frequentemente propagado, em larga medida devido às escolhas e aos métodos adoptados na altura pelo Partido Comunista Português. Deixa ainda claro que o fim daquele período de rápida mudança e de grandes expectativas, e a subsequente passagem a um regime democrático-liberal, foram pacíficos e ocorreram com escassa resistência devido à posição e às acções do mesmo partido. Em consonância com esta ideia, procura mostrar, uma vez mais ao contrário das interpretações dominantes, que bem ao invés das intenções revolucionárias e golpistas que lhes têm sido atribuídas nos momentos decisivos os comunistas escolheram governar com o Partido Socialista, procurando contornar as clivagens e as circunstâncias que pudessem pôr em causa essa linha estratégica.

                          A História do PCP na Revolução dos Cravos inscreve-se no campo de investigação próprio da história do presente, o qual oferece inúmeras possibilidades de pesquisa mas escapa aos domínios relativamente assépticos e mais facilmente consensualizáveis no qual trabalham os historiadores que se dedicam a épocas mais recuadas. Relaciona-se com interesses e preocupações ainda próximos, cuja energia se não diluiu, e incorre por isso em análises inevitavelmente controversas, sujeitas a confrontações, o que acontece neste caso. A abordagem documental da política do PCP face ao desenvolvimento do processo revolucionário e às posições dos socialistas e do MFA é exaustiva e permite contornar muitas das eventuais objecções, mas os limites colocados à investigação das fontes, em particular os erguidos pelo próprio PCP, não sendo da responsabilidade da historiadora deixam sempre em aberto a possibilidade do enredo escolhido vir a precisar de alguma afinação. Poderá, por exemplo, revelar-se útil uma inquirição das iniciativas e das pulsões revolucionárias experimentadas pelos sectores do partido mais directamente envolvidos nos movimentos de massas. Não é este no entanto o ângulo de análise deste trabalho, assumidamente centrado na intervenção do núcleo dirigente reunido em volta de Álvaro Cunhal. Neste sentido, nenhum estudo futuro poderá contornar a investigação exaustiva que lhe serviu de fundamento e o valor da dose de informação que oferece.

                          Raquel Varela, A História do PCP na Revolução dos Cravos. Bertrand Editora. 400 págs. Publicado na LER de Junho de 2011.

                            História, Memória

                            Guevara e Theroux

                            Che

                            Conta Pierre Kalfon, um dos seus mais isentos biógrafos (poucos entre muitos), que numa tarde de Abril de 1964, durante uma breve passagem por Paris – a caminho da União Soviética em missão diplomática da então jovem revolução cubana – Ernesto Guevara almoçou numa pizzaria da Boulevard Saint-Michel. Passeou depois por meia hora pelas imediações do Collège de France e da Sorbonne, que muito antes conhecera de leituras e de filmes. Relatará o próprio «Che» que de repente, na Rue des Écoles, um sujeito reparou no seu inconfundível aspeto – barba rala e desalinhada, a boina preta estrelada e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que o acompanhava: «Vê bem a lata daquele tipo ali, a imitar o Che Guevara!» Desde muito cedo a figura do argentino viu-se de facto colada ao ícone que excedia já o seu corpo físico, definindo-se muito para além do lugar datado e material que a História lhe reservou.

                            De início, e durante bastantes anos, ela ganhou vida no espectro das crenças insurretas que interpretavam as possibilidades de erguer um mundo melhor, mais igualitário e mais justo. Conquistado no entanto, se preciso fosse, a tiro de bazuca e de metralhadora. Esse é o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com sentido de missão ou necessidade de ratificação tribal, ainda transportam consigo, como vestígio de uma real ou imaginada insolência, em medalhas, autocolantes e t-shirts. Quase sem de tal se aperceberem, rompem porém as configurações da rebeldia e do desespero, associando-as a algo de mais amplo que integra o conjunto de sinais dos quais se servem habitualmente os imaginários de fuga. Aproximando-se do logótipo dos velhos cigarros Camel, do mapa irregular de uma ilha das Caraíbas gravado na publicidade colorida de uma marca de rum, das capas tentadoras dos livros de Bruce Chatwin ou de Paul Theroux. Para os quais olhamos sem grandes conjeturas, projetando a ideia da viagem, da partida, associada a uma vaga e errática noção de liberdade.

                              História, Memória, Olhares

                              Wstawać

                              Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto. Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, depois de descoberta a sua ascendência judia, ser enviado para o campo de extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de memória», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem, com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza – se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento. (mais…)

                                Direitos Humanos, História, Leituras, Memória

                                Elena Bonner

                                Andrei e Elena

                                Desapareceu este sábado em Boston, aos 88, a antiga dissidente soviética Elena Bonner (1923-2011), viúva do físico nuclear e dissidente soviético Andrei Sakharov. Durante os anos cinzentos de Brejnev, muitos se habituaram a vê-la sempre ao lado de Andrei na denúncia comum da corrida ao armamento, da manutenção dos campos do Gulag, da perseguição dos dissidentes. Dado o prestígio internacional do marido, que o protegia um pouco dos excessos da repressão, foi muitas vezes Elena quem mais directamente sofreu com os ataques do KGB motivados pela atitude partilhada de enfrentamento do regime. As autoridades, a sua polícia e os seus porta-vozes gostavam de destacar as suas origens judaicas para acusá-la de estar a serviço de potências estrangeiras e de ter desviado Shakarov – Prémio Estaline de 1954, Prémio Lenine de 1956 e antigo membro da Academia das Ciências da União Soviética – «do bom caminho».

                                Em 1938, na época da mais intensa repressão, Elena vira o pai ser fuzilado e a mãe condenada a oito anos de trabalhos forçados. Ainda assim aderiu ao Partido Comunista, abandonando-o apenas em 1968, quando da invasão soviética da Checoslováquia. Durante a década de 1970 participou em protestos contra as detenções em massa de outros dissidentes, tornando-se numa fonte vital de informações sobre o destino dos detidos e exilados. Viria a receber em Oslo o Nobel da Paz de 1975 concedido ao marido, após Sakharov ter sido proibido de viajar para o estrangeiro. Confinado este, em 1980, à cidade Gorki, a actual Nizhny Novgorod, por protestar contra a invasão soviética ao Afeganistão, Elena tornou-se então no seu único vínculo com o exterior, até que em 1984 foi também ela condenada a cinco anos de exílio interno em Gorki por ter «divulgado sistematicamente informações caluniosas sobre a União Soviética». Depois do fim da URSS, Bonner participou de importantes organizações de defesa dos direitos humanos, tornando-se numa ardente opositora de Vladimir Putin. Até ontem de manhã.

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                                  Jorge e o espírito de Buchenwald

                                  Jorge Semprún

                                  Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire, «tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»

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                                    Na Crimeia

                                    Carga da Brigada Ligeira

                                    Half a league, half a league, / Half a league onward,
                                    All in the valley of Death / Rode the six hundred.
                                    “Forward, the Light Brigade! / “Charge for the guns!” he said:
                                    Into the valley of Death / Rode the six hundred.
                                    Alfred Tennyson, 1885

                                    Comecei ontem Crimea: The Last Crusade, o último livro de Orlando Figes, que comprei em versão e-book para poupar espaço na estante e descansar algum músculo, pois sempre são mais 600 páginas. Leio-o pelo prazer de saber mais sobre um acontecimento que conheci cedo, através de descrições em «livros de quadradinhos», e me atraiu logo por situá-lo então num território vagamente epopeico de acção e aventura, com episódios como a Carga da Brigada Ligeira, durante a batalha de Balaclava, o cerco de Sebastopol ou a acção humanitária de Florence Nightingale. Mas leio-o também por poder seguir de novo um historiador que tem o dom raro e invejável de combinar o rigor e a profundidade da pesquisa com uma capacidade narrativa absolutamente magnética. (mais…)

                                      História, Memória