Arquivo de Categorias: Etc.

Outras musas

Vespa

Falava sobre a presença das musas. Pensava levianamente que para aquele público de estudantes seria como falar da morte, do riso ou do gin tónico, realidades sensíveis que qualquer um reconhece culturalmente pelo reflexo, sem a necessidade de grandes explicações. Referia-me pois às nove hiperativas e instáveis filhas de Zeus e de Mnemósina, capazes, por mais de dois mil anos a trabalhar em full-time, de soprarem ao ouvido do comum dos mortais o génio necessário ao ato de criar. Mas falava também daquelas outras, figurações imaginadas do homem querido ou da mulher amada, capazes de inquietarem todo aquele – mesmo o descrente ou o lobo solitário – que espera alguém capaz de sussurrar-lhe ao ouvido, no momento certo, a fórmula para suplantar a mediocridade. A surpresa ficou a dever-se a naquele instante nem uma só de entre as cinquenta boas almas presentes ter sido capaz de esboçar a fisionomia ou de descrever uma só das habilidades de Euterpe, Clio ou Terpsícore. Ou sequer de as inventar, como lhes sugeri.

Não concluí no entanto que as esguias figuras que cruzam o mito e a vida pudessem ter abandonado os bosques, as fontes e as bordas dos riachos onde costumam ocultar-se, retornando, fartas das nossas hesitações, ao velho Olimpo ou à pacatez dos textos clássicos, deixando-nos desolados nas mãos da apatia e da ignorância. O que tem acontecido é apenas uma metamorfose, capaz de libertá-las do fortuito das suas circunstâncias, do aspeto demasiado helénico ou próximo dos frescos arrebatados de Veronese, de uma sexualidade pouco equívoca. Tornadas outras, como mutantes, circulam agora táteis no meio de nós, servindo-se de smartphones ou ipads, vestindo roupa colorida, usando lentes de contacto, atravessando as ruas de capacete em vespas prateadas, trabalhando em edifícios climatizados. Tão próximas da imaginação quanto da vida de todos os dias. Reformulando as fábulas, trocando as máscaras, confundindo os papéis, oferecendo os corpos, partilhando vontades. Fartaram-se dos enredos desgastados e procuram outros mais convincentes. Para as vermos basta acreditarmos nelas.

    Apontamentos, Devaneios, Etc., Olhares

    Cortar na silly season

    silly season

    Está tudo tão difícil de engolir, tão apertado nas costuras, tão sério nas consequências, tão sombrio nas previsões, que por mais que se revolvam suplementos de verão, jornais nacionais e regionais, magazines televisivos ou radiofónicos, blogues para todas as estações, dificilmente encontramos agora as habituais chamadas de atenção para as trivialidades garridas e um tanto obscenas da silly season. Os tons pastel dominam este ano as paisagens de Verão e esse não é propriamente um sinal positivo.

      Apontamentos, Etc.

      Vanitas vanitatum, et omnia vanitas*

      o académico

      Eleito por 17 votos contra outros 7 dos auto-proclamados «imortais», o escritor franco-libanês Amin Maalouf acaba de ocupar na Académie Française, fundada em 1635 por Luís XIII, o cadeirão deixado vago em Outubro de 2009 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Dois homens com obra extensa e admirável que não havia necessidade de colocar precocemente num expositor de museu. Ao qual jamais pertenceram, por vontade da vetusta Academia ou dos próprios, figuras como Sartre, Beauvoir, Camus, De Maistre, Balzac, Descartes, Diderot, Flaubert, Molière, Rousseau, Proust, Verne, Gautier ou Zola. Mas se Maalouf se sente bem na sua fauteil, quem somos nós, seus atentos e carinhosos leitores, para lhe criticar o pequeno prazer?
      ___
      * Não, não é esta a divisa da Académie Française.

        Etc.

        Aeroplano

        aeroplano

        É quinta à tarde e leio pontos dos meus alunos que falam de Goebbels, dos Beatles e do Super-Homem. Mantenho um Mahler vibrante nos headphones. Fumo cigarros fortes e baratos, de patente cubana, enrolados sabe deus onde, chegados de Bruges. Bebo um licor bielorusso muito doce, de nome impronunciável. O sol roça as copas das árvores e um pequeno aeroplano passa no horizonte.

          Devaneios, Etc.

          Câmara lenta

          My office

          Têm sido dias danados, estes últimos. Para a maioria dos portugueses em primeiro lugar. Mas também para o autor deste blogue. Ao estado de tristeza e indignação que partilha com tanta gente, juntou-se uma estirpe de gripe que se prolongou por semanas, associada a muito trabalho acumulado e a alguns reacertos forçados na ordem dos seus dias. Daí este blogue andar outra vez menos movimentado, arrastando-se num estado aparentemente letárgico. Saibam no entanto que é só aparência. Logo que possível, em breve espera-se, A Terceira Noite regressará à normalidade. E mais: prepara uma surpresa para os seus (e as suas) mais indefectíveis cúmplices. Se tudo correr bem e o FMI não nos tramar de vez, lá para Maio perceberão do que se trata. Keep in touch, portanto!

            Etc., Oficina

            Da casa do sol nascente

            95 em cada 100 cidadãos que alguma vez aprenderam, ou tentaram aprender, a tocar guitarra, passaram pelo dedilhar quase imóvel de The House of the Rising Sun. O tema gravado pela primeira vez em 1933, por Clarence e Gwen Foster, que Eric Burdon and The Animals popularizaram em 64 (já que em 61 a gravação de Dylan fora um valente fiasco). No que me toca, de tal maneira me dediquei ao treino que a canção «animal» se me tornou um bocado irrespirável. Pois acabo de receber da fonte, com um pedido de divulgação, uma nova versão dos velhos acordes. A banda hispano-franco-argentina Mégaphone ou la Mort a levar-nos de volta à velha casa do sol nascente.

            Frequentadores habituais d’A Terceira Noite têm-se queixado de falta de música. Com toda a razão. Fica pois a promessa de melhoras. Mas entretanto não se esqueçam de ir ao menu e de clicarem em VÍDEO.

              Etc., Música

              «Hoje Battisti, amanhã tu»

              [vimeo]http://vimeo.com/19258838[/vimeo]

              Um grupo de cantores portugueses juntou-se para interpretar esta canção de apoio Cesare Battisti. Pode encontrar aqui mais informação sobre o caso deste homem, perseguido desde há quatro décadas, sempre debaixo de falsas ou tortuosas acusações, principalmente por um dia ter acreditado num mundo mais justo. Um caso de «injustiça poética» que não pode consumar-se.

                Etc.

                Aerograma

                Natal 2010

                Nunca fui um adorador do Natal, com o seu burrinho, a sua vaquinha, e a restante parafernália pagã cercando o pequeno nazareno. Não por ter vivido muito cedo um qualquer momento de epifânica suspeição em relação a esse evento capital – bem mais forte por certo, para uma criança, do que o aflitivo instante do martírio – da religião na qual fui educado. Não por me agoniar «desde que me lembro» a dissipação, o luxo e a hipocrisia que geralmente rodeiam os espaços iluminados que lhe servem de trilho e de cenário. Afinal até houve um tempo no qual acreditei sem reservas na generosidade do Pai Natal e se me deixassem teria passado noites ao frio, emboscado num ermo escuro, para o ver passar de trenó na companhia da simpática rena Rudolfo. E atalhar logo com a minha encomenda. O desgosto não veio por aí, não. Chegou depois, pela percepção forte, sempre renovada, vivida como um calafrio, de uma ficção de paz, de compaixão o de igualdade que só consigo materializar quando me levanto da mesa da consoada, deixo o peru no sossego da travessa, e vou lá fora, em silêncio, sondar os rumos e os azimutes.

                  Apontamentos, Devaneios, Etc.