Steve Paul Jobs (1955-2011). Para o bem (e para o mal, como sempre), deixou uma marca profunda, com toda a certeza duradoura, nas nossas vidas partilhadas. «Ser o homem mais rico do cemitério não me interessa», disse certa vez, «ir para a cama à noite a pensar ‘hoje fizemos algo de maravilhoso’ é que é importante para mim.» Foram poucos aqueles que puderam gabar-se de o terem feito tantas vezes antes de gastarem o seu crédito de vida.
Quase a consumarem-se cinco semanas (e meia) passadas sobre a adoção por este blogue do último Acordo Ortográfico da portuguesa língua. Agora por mim usado também na escrita praticada lá fora. Hesitei um pedaço antes de me decidir, condicionado por algumas dúvidas e atavismos. Forcei-me de certo modo a fazê-lo, empurrado em parte por determinados deveres. A verdade é essa e na altura tudo ficou explicado. O que posso dizer agora, após este tempo de ginástica e aprendizagem, é que me custou muito menos dar o salto do que inicialmente supunha. De facto (sim, com c), até me tem dado algum prazer renovar a escrita e perceber, e sentir, e fruir, o modo como a distância entre ela e a fala se encurtou e tornou até mais natural. Só me custa ainda, e provavelmente continuará a custar um tanto, escrever com minúscula o nome dos meses e das estações do ano. Coisa pouca, afinal. Menos que apanhar uma vacina.
Em novembro de 1971, o primeiro Festival de Jazz de Cascais («Newport na Europa») reuniu num programa excecional a nata da cena jazística mundial. Se for apreciador do género, para o confirmar basta que leia com atenção todas as linhas do cartaz acima reproduzido. No qual faltam aliás nomes também presentes mas que começavam apenas a carreira e por isso não eram destacados, como o contrabaixista Charlie Haden, a acompanhar então Ornette Coleman, e o pianista (na época apenas elétrico) Keith Jarrett, que tocava com um bastante irascível Miles Davis. Estive por lá, sim, comendo o pó de cimento de um pavilhão ainda em obras e bebendo cervejas estupidamente chocas. Mas, acima de tudo, encaixando momentos de beleza e exaltação cujos ecos continuam, garanto, a reverberar.
Obrigado à A.S. por se ter lembrado de me avivar a memória quando deu de caras com isto.
Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que envolveu a sua aprovação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 1 de janeiro de 2012 me é exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado. Noutra direção, poderia dizer que era para me revelar um sujeito moderno e desperto para os constantes upgrades do real. Mas isto apenas não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há meio século. Acrescento por isso duas outras razões.
A primeira prende-se com a consciência muito aguda que tenho da volatilidade das línguas, em particular daquela que é a minha. Passei cerca de quinze anos a ler textos manuscritos e impressos dos séculos XVI, XVII e XVIII, deparando-me com um nível de metamorfose e indecisão tão grande que muitas vezes cheguei a encontrar num só livro publicado a mesma palavra grafada de três diferentes maneiras. A partir dessa altura nunca mais fui o mesmo na aferição de critérios demasiados fixos, ou fixistas, para a definição de regras destinadas a domar um «babelismo» impeditivo da comunicação entre falantes de divergentes geografias, ambientes e gerações. Já o segundo motivo é de ordem puramente prática: como estou numa altura do calendário pessoal na qual é bastante fácil o cérebro experimentar alguma dificuldade em carburar com a mesma agilidade relativa do passado, é sempre bom ginasticá-lo, refrescar-lhe o tónus, combatendo os automatismos antigos e adotando outros novos. Para mim são razões de sobra para passar à ação.
Como a própria guerra, o jornalismo que faz dela objeto não se limita aos episódios mais sangrentos da frente, à observação dos destroços ou aos meios da ação política que, invertendo o conhecido aforismo de Clausewitz, fazem a guerra por outros meios. Em regra, as reportagens mais interessantes produzidas em teatro de conflito não são as que descrevem os combates, os avanços e os recuos dos exércitos ou das milícias, mas antes as que retratam em primeiro plano os seus atores e figurantes, soldados e civis, perpetradores e agentes, vítimas e espetadores. No atual conflito líbio, são por isso exemplares e particularmente impressivas as reportagens que Paulo Moura tem escrito para o Público e Juan Miguel Muñoz para o El País. Sendo diferentes os cenários que cada um deles escolhe – Moura, mais na retaguarda, insiste na dimensão humana de quem viu as rotinas voltadas do avesso, Muñoz, perto da frente, sublinha a ansiedade, o medo e a esperança dos que se preparam para combater – ambos oferecem testemunhos de uma verdade antiga, relatada já por William Russell, que nas campanhas da Crimeia estabeleceu o género trabalhando para o Times. Revelam como é em situação de conflito armado que a solidariedade entre os que partilham um destino é levada ao extremo e que a perceção da transitoriedade dos hábitos e das convicções, da sua importância relativa, se revela mais perfeita, mais percetível, passando tudo o resto para um distante segundo plano.
Falava sobre a presença das musas. Pensava levianamente que para aquele público de estudantes seria como falar da morte, do riso ou do gin tónico, realidades sensíveis que qualquer um reconhece culturalmente pelo reflexo, sem a necessidade de grandes explicações. Referia-me pois às nove hiperativas e instáveis filhas de Zeus e de Mnemósina, capazes, por mais de dois mil anos a trabalhar em full-time, de soprarem ao ouvido do comum dos mortais o génio necessário ao ato de criar. Mas falava também daquelas outras, figurações imaginadas do homem querido ou da mulher amada, capazes de inquietarem todo aquele – mesmo o descrente ou o lobo solitário – que espera alguém capaz de sussurrar-lhe ao ouvido, no momento certo, a fórmula para suplantar a mediocridade. A surpresa ficou a dever-se a naquele instante nem uma só de entre as cinquenta boas almas presentes ter sido capaz de esboçar a fisionomia ou de descrever uma só das habilidades de Euterpe, Clio ou Terpsícore. Ou sequer de as inventar, como lhes sugeri.
Não concluí no entanto que as esguias figuras que cruzam o mito e a vida pudessem ter abandonado os bosques, as fontes e as bordas dos riachos onde costumam ocultar-se, retornando, fartas das nossas hesitações, ao velho Olimpo ou à pacatez dos textos clássicos, deixando-nos desolados nas mãos da apatia e da ignorância. O que tem acontecido é apenas uma metamorfose, capaz de libertá-las do fortuito das suas circunstâncias, do aspeto demasiado helénico ou próximo dos frescos arrebatados de Veronese, de uma sexualidade pouco equívoca. Tornadas outras, como mutantes, circulam agora táteis no meio de nós, servindo-se de smartphones ou ipads, vestindo roupa colorida, usando lentes de contacto, atravessando as ruas de capacete em vespas prateadas, trabalhando em edifícios climatizados. Tão próximas da imaginação quanto da vida de todos os dias. Reformulando as fábulas, trocando as máscaras, confundindo os papéis, oferecendo os corpos, partilhando vontades. Fartaram-se dos enredos desgastados e procuram outros mais convincentes. Para as vermos basta acreditarmos nelas.
Está tudo tão difícil de engolir, tão apertado nas costuras, tão sério nas consequências, tão sombrio nas previsões, que por mais que se revolvam suplementos de verão, jornais nacionais e regionais, magazines televisivos ou radiofónicos, blogues para todas as estações, dificilmente encontramos agora as habituais chamadas de atenção para as trivialidades garridas e um tanto obscenas da silly season. Os tons pastel dominam este ano as paisagens de Verão e esse não é propriamente um sinal positivo.
Eleito por 17 votos contra outros 7 dos auto-proclamados «imortais», o escritor franco-libanês Amin Maalouf acaba de ocupar na Académie Française, fundada em 1635 por Luís XIII, o cadeirão deixado vago em Outubro de 2009 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Dois homens com obra extensa e admirável que não havia necessidade de colocar precocemente num expositor de museu. Ao qual jamais pertenceram, por vontade da vetusta Academia ou dos próprios, figuras como Sartre, Beauvoir, Camus, De Maistre, Balzac, Descartes, Diderot, Flaubert, Molière, Rousseau, Proust, Verne, Gautier ou Zola. Mas se Maalouf se sente bem na sua fauteil, quem somos nós, seus atentos e carinhosos leitores, para lhe criticar o pequeno prazer?
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* Não, não é esta a divisa da Académie Française.
É quinta à tarde e leio pontos dos meus alunos que falam de Goebbels, dos Beatles e do Super-Homem. Mantenho um Mahler vibrante nos headphones. Fumo cigarros fortes e baratos, de patente cubana, enrolados sabe deus onde, chegados de Bruges. Bebo um licor bielorusso muito doce, de nome impronunciável. O sol roça as copas das árvores e um pequeno aeroplano passa no horizonte.
Têm sido dias danados, estes últimos. Para a maioria dos portugueses em primeiro lugar. Mas também para o autor deste blogue. Ao estado de tristeza e indignação que partilha com tanta gente, juntou-se uma estirpe de gripe que se prolongou por semanas, associada a muito trabalho acumulado e a alguns reacertos forçados na ordem dos seus dias. Daí este blogue andar outra vez menos movimentado, arrastando-se num estado aparentemente letárgico. Saibam no entanto que é só aparência. Logo que possível, em breve espera-se, A Terceira Noite regressará à normalidade. E mais: prepara uma surpresa para os seus (e as suas) mais indefectíveis cúmplices. Se tudo correr bem e o FMI não nos tramar de vez, lá para Maio perceberão do que se trata. Keep in touch, portanto!
Encontra-se aqui o documento entregue na Procuradoria-Geral da República como o texto da denúncia facultativa contra três agências de rating às quais foi imputado abuso da posição dominante contra o Estado português. Se concordar com ele, pode tornar-se signatário a partir deste momento.
95 em cada 100 cidadãos que alguma vez aprenderam, ou tentaram aprender, a tocar guitarra, passaram pelo dedilhar quase imóvel de The House of the Rising Sun. O tema gravado pela primeira vez em 1933, por Clarence e Gwen Foster, que Eric Burdon and The Animals popularizaram em 64 (já que em 61 a gravação de Dylan fora um valente fiasco). No que me toca, de tal maneira me dediquei ao treino que a canção «animal» se me tornou um bocado irrespirável. Pois acabo de receber da fonte, com um pedido de divulgação, uma nova versão dos velhos acordes. A banda hispano-franco-argentina Mégaphone ou la Mort a levar-nos de volta à velha casa do sol nascente.
Frequentadores habituais d’A Terceira Noite têm-se queixado de falta de música. Com toda a razão. Fica pois a promessa de melhoras. Mas entretanto não se esqueçam de ir ao menu e de clicarem em VÍDEO.