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Profes

Atenas

Alguns jornais dizem a verdade mas não dizem toda a verdade. Uma parte da verdade é esta: «Professores universitários formaram uma cadeia humana em torno do edifício da Universidade de Atenas.» O complemento desta verdade parcial é o seguinte: aqueles professores, pelas imagens televisivas quase todos com mais ou bem mais de cinquenta anos – pois não é apenas o corpo docente do ensino superior português que está a ficar preocupantemente envelhecido –, formaram o cordão para defenderem a sua escola. De quê? Da pilhagem e da destruição, imposta por alguns bandos que debaixo da capa de impunidade criada pela actual situação insurreccional se preparavam para assaltar, e provavelmente vandalizar, as instalações da Universidade. O seu trabalho e o lugar da sua da actividade diária estavam em causa, e alguns, particularmente perturbados pela emoção, declararam aos jornalistas que por aquela missão não se importariam de dar a vida. Um exagero, claro, mas nestes momentos conservar a calma e procurar uma retórica de convencimento nem sempre é fácil.

    Atualidade, Democracia, Olhares

    Carta 08

    China

    Entre nós corresponderia apenas ao exercício de um direito. Mas trata-se de uma petição lançada por mais de trezentos proeminentes cidadãos chineses, e na China – esse paraíso do capitalismo selvagem e da desigualdade que vive silenciado pelas estruturas repressivas do «socialismo de Estado» – é considerada pelas autoridades como criminosa. O que mais tarde ou mais cedo deixará de acontecer: assim a Carta 08 – que aqui se reproduz – encontre uma receptividade pública  idêntica àquela que teve a Carta 77 na velha Checoslováquia.

      Atualidade, Democracia

      Delação

      Também me parece isto que fizeram a Sofia Loureiro dos Santos – pessoa que por acaso que nem conheço pessoalmente – um acto repugnante que não pode passar em branco. Não importa se estou ou não de acordo com  ela na «questão dos professores» (e provavelmente até nem estarei): trata-se de um caso de preservação da liberdade de opinião e do direito de cada um à privacidade e ao bom nome. Exemplos de delação e enxovalho público desta natureza – agora também na blogosfera – têm infelizmente um lastro histórico bastante longo e tenebroso que me dispenso agora de mencionar.

        Atualidade, Democracia

        Misturas

        Misturas

        Aquilo que pode surpreender num artigo publicado pelo American Journal of Human Genetics e referido hoje no suplemento P2 do Público não é o que anuncia, mas sim a amplitude dos números ali adiantados. Um estudo recentemente publicado por aquela revista científica revela que 30,4% dos homens portugueses traz inscrita na sua matriz genética uma origem sefardita (19,8%) ou magrebina (10,6%). A sul do Tejo, então, a percentagem sobe particularmente (36,3% de judeus e 16,1% de mouros), chegando a níveis que em toda a Península Ibérica apenas podem ser comparados, superando-os até, aos da Andaluzia. O que não deixa de ser uma ironia da história – já António José Saraiva o sublinhou quando descreveu a Inquisição como uma «fábrica de cristãos-novos» – é que a maior parte da miscigenação se produziu precisamente por intervenção do sempre atento «Tribunal do Santo Ofício». Quando, para escaparem à morte, à deportação ou ao confisco dos bens, numerosos judeus, e também muitos muçulmanos, foram constrangidos a converterem-se ou o fizeram por vontade própria. Somos, pois, ainda mais mestiços do que pensávamos. Sabe bem.

        Adenda – Sobre algumas confusões que circulam por aí a propósito do artigo invocado: 1) estamos a falar de herança genética e não de legado cultural; 2) o estudo foi feito apenas em homens, e não em mulheres, por razões que não cabe aqui explicar mas são explicadas no estudo; 3) este trabalho não refere a herança «negro-africana», a qual, entre outros particularismos, e salvo situações episódicas, se manteve quase residual até à década de 1980 do século passado.

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          Nem sempre uma carta em papel perfumado

          Love

          Enquanto metia na ranhura o cartão de plástico, corria no monitor da máquina Multibanco uma frase a vermelho-escuro: «Violência no namoro não é amor!» Assim mesmo, a bold e com o ponto de exclamação. Afinal é preciso dizê-lo em voz alta, gritá-lo, pois uma boa parte da violência no casamento começa de facto muito antes dele: acontece com uma em cada quatro pessoas, diz um estudo recente da Universidade do Minho. Ao mesmo tempo, as mulheres-guerrilheiras que jamais aceitarão um insulto, um murro, uma chapada, sem os restituírem e seguirem o seu caminho na direcção contrária, são ainda uma minoria. Mesmo aqui, a ocidente do ocidente. E o futuro é já a seguir.

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            Sakharov para Hu Jia

            Era o mínimo. O activista chinês Hu Jia foi condenado a três anos e meio de prisão depois de ter participado em Novembro de 2007, via teleconferência, numa reunião do Parlamento Europeu sobre Direitos Humanos. A sentença, que considerou essa participação um delito por «tentativa de subversão», foi-lhe atribuída em Abril deste ano, durante uma única sessão de julgamento. O mesmo órgão conferiu-lhe agora o Prémio Sakharov, servindo o gesto, nas palavras do seu presidente, Hans-Gert Pöttering, para «enviar um sinal de claro apoio a todos aqueles que defendem os Direitos Humanos na China».

            Uma atitude positiva e mais corajosa que a do Comité Nobel, incapaz de aguentar a pressão das autoridades chinesas. Mais arrojada ainda quando a maioria das agências noticiosas, dos jornais ou das televisões tem atribuído maior importância à reacção negativa de Pequim, e às eventuais dificuldades colocadas à agenda política de Bruxelas na região, do que à questão fundamental. A condenação de Hu Jia foi uma bofetada na cara de quem acreditou nas promessas chinesas quando da candidatura aos Jogos Olímpicos, mas pelo menos neste caso o Parlamento Europeu fez por honrar os seus compromissos. E não se ficou.

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              Hu Jia

              Não acontece apenas no palacete do Largo do Rato. Também entre os homens e as mulheres da Fundação Nobel, que não foram capazes de atribuir o Prémio da Paz ao dissidente Hu Jia, escasseia a coragem. Hu é neste momento o mais conhecido e reconhecido activista chinês dos direitos humanos. Encontra-se, desde Abril deste ano, a cumprir uma pena de três anos e meio de prisão por «incitar à subversão contra o poder de Estado».

              Confira-se entretanto o cinismo das autoridades chinesas ao manterem um site, em inglês, em louvor da actual situação dos Direitos Humanos num país que controlam com pulso de ferro.

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                Sem tabus

                O Movimento Mérito e Sociedade, esse que «não é de esquerda, direita ou centro» e se pretende constituir como «um fantástico indutor de desenvolvimento equilibrado e sustentado de uma sociedade», acaba de propor medidas para combater a actual vaga de criminalidade que um conhecido penalista julga «inconstitucionais» e «bárbaras». Entre outras sugestões fáceis e demagógicas – como a de definir mecanismos processuais onde a vítima tenha uma palavra a dizer sobre a pena a aplicar ao arguido –, considera que as armas de fogo «não devem ser tabu na nossa sociedade» e precisam ser usadas pela polícia com maior frequência. Presumo que a valorização do mérito individual dos agentes da PSP passe, pois, por exercícios regulares de tiros ao alvo com fogo real. E que o MMS possa entender estas propostas como essencialmente técnicas e desprovidas de qualquer carga política, capazes de estimularem aquele que considera ser «o espírito de conquista e desembaraço dos portugueses». Um tiro para o ar e outro no pé, para começar.

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                  Incoincidências

                  Não se trata de uma juíza qualquer. Ana Gabriela Freitas, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, que acaba de tecer considerações onde utiliza qualificativos de carácter abertamente racista aplicados aos ciganos – os quais alega serem inapelavelmente «marginais e traiçoeiros» – é a mesmíssima magistrada que em 2005 mandou Fátima Felgueiras, recém-fugida a prisão e julgamento, aguardar o curso da justiça em liberdade. Por apenas «alegadamente» haver estado refugiada no Brasil, sendo a sua conhecida fuga coisa «aparente». Sorte a da Dona Fátima por não pertencer a essa mesma etnia que a dra. Gabriela considera levar uma vida sistematicamente «pouco edificante».

                  [sobre o problema cigano, ver Errantes e extravagantes]

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                    Vergonha global

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                    O governo chinês prometeu aquilo que todos sabíamos que jamais iria cumprir. Os honoráveis Comités Olímpicos fingiram que acreditaram. Os governos democráticos fizeram de conta que não era com eles. Os partidos políticos não consideraram o assunto uma prioridade. A Amnistia Internacional e outras organizações não-governamentais têm sublinhado a constante violação dos direitos humanos na China, mas a sua voz raramente passa das páginas interiores, dos suplementos de faits-divers, das entrelinhas do teletexto.

                      Atualidade, Democracia, Opinião

                      We love Beijing

                      Incomodam-me os activistas de uma causa só. Os que apenas observam o seu ângulo do mundo, o seu estrito móbil, a sua obsessão, distraindo-se de tudo o resto. «Save the whales» e que se lixe o próximo. Muitas organizações ecologistas partilham dessa atitude, e por isso, apesar da importância de alguns dos seus motivos, as olho quase sempre com desconfiança. Já passou muito tempo, bem sei, mas não esqueço como algumas delas se aproximaram, durante a República de Weimar, do nacional-socialismo. Ou como para muitas não existe política fora das questões ambientais. O movimento Greenpeace elogia agora o empenhamento das autoridades chinesas em fazer da sua capital um bilhete-postal, um cartão de visita, um primor: «O que é particularmente singular nestes Jogos Olímpicos é que vão deixar um legado ambiental importante na cidade de Pequim em áreas como os transportes, infra-estruturas, energias renováveis, gestão da água e resíduos.» Uma cidade histórica mas moderna, assombrosa, com amplas avenidas e muito clean. Desejável, mais verde e cheia de brisas favoráveis aos passantes. Bem limpa de ratos, de mendigos e de discrepantes.

                        Atualidade, Democracia, Olhares

                        Sobre a Birmânia (ainda), ou por causa dela


                        A atitude diante do que se passa actualmente na Birmânia funciona como um bom exemplo do estado de objectiva crueldade a que podem chegar os sectores que em questões de política internacional colocam como prioritário, acima de quaisquer outras considerações, o combate sem cedências ao «inimigo principal». Receando fornecerem argumentos que possam servir a defesa de medidas castigadoras da atitude sanguinária dos pulhas da junta militar – como a instauração imediata de um severo bloqueio às actividades da junta no poder, ou a rápida imposição de uma intervenção humanitária –, e de com essa posição poderem aproximar-se das posições intervencionistas dos governos ocidentais, preferem calar-se, sem aparente incómodo, diante da bestialidade e do comportamento genocida. Preferem considerar o respeito elementar pela vida humana como algo que deve ser ponderado caso a caso, de acordo com determinados objectivos estratégicos. Não o fazem por cobardia: apenas faz parte da sua carga genética ideológica.

                        Enquanto termino este post, chega nova informação: os governantes birmaneses recusaram a entrada no país dos elementos da AMI que pretendiam auxiliar as vítimas do ciclone. Não, não se passa «numa galáxia muito, muito distante…».

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                          Ópio do povo

                          Em entrevista ao suplemento Mil-Folhas, Ali Ahmad Said Esber, o poeta sírio de pseudónimo pagão (Adónis), declarou não existir futuro sem laicidade: «O que complica o progresso, em relação à religião, é que enquanto fé real, revelação, terminou há muito tempo, está acabada. O que chamamos religião é hoje uma ideologia política». Acrescentando uma evidência: «É possível discutir com um homem de fé, mas com um homem que transformou a sua fé religiosa em ideologia não se pode discutir». Uma boa mensagem para entregar aos nossos cegos ensandecidos, que confundem as tiranias sinalizadas pela bandeira do crescente com os destinos de um mundo islâmico imenso, diverso e afinal tangível.

                            Apontamentos, Democracia, Recortes

                            Bonsoir tristesse

                            melancolia
                            Melancholia, Claus Gregers (1989)

                            Lê-se Du Contre-Pouvoir, de M. Benasayag e D. Sztulwark, com um sentimento de revolta: «Vivemos uma época profundamente marcada pela tristeza, que não é apenas a tristeza das lágrimas, mas que é, principalmente, a da impotência». Percebendo como a noção contemporânea da complexidade da vida se une à aceitação defensiva, sob a forma de um tristeza social e individual, de que não possuímos forma outra de a viver que não seja aceitando, submissos, «a ordem e a disciplina da sobrevivência». Respeitando, insulados nos nossos pequenos mundos, cegos e tristes, infinitamente tristes, as formas de tirania que nos cercam, e que justificam essa servil tristeza. Contra ela, criadora, apenas a alegria difícil da resistência.

                              Atualidade, Cidades, Democracia