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Se nos calarmos por um momento

Espelho partido

Vivemos tempos difíceis para a rebeldia – sim, bem sei que a palavra vegeta démodée fora dos anúncios de marcas de refrigerantes –, sitiada por vozes insistindo em que «as coisas são como são». A audácia, lançada a contracorrente, que se desvia do imediato, é cada vez mais apontada como irrealista e suicidária. O impulso utópico é proscrito ou caricaturado. O rebelde – do latim rebellis, aquele «que começa a guerra», que recusa obedecer e se insurge – é depreciado, olhado como um vestígio do passado, herdeiro de uma subespécie hominídea que perfez o seu caminho mas se perdeu algures na cadeia da evolução. Bakunine e Nietzsche, Sade e Rimbaud, Camus e Beauvoir, mesmo Ghandi ou o Che, mortos, devem permanecer nas paredes, mas apenas como quadros de uma exposição. Os vivos, como Cohn-Bendit, Mandela ou o subcomandante Marcos, passam por troféus, quase inofensivos agora apesar da atitude desafiadora que um dia exibiram.

Aceita-se apenas – melhor, define-se como arquétipo de uma «rebeldia mansa», domada, sem perigo para a ordem imperante – o pequeno gesto que excede por instantes os limites do conformismo, simulando uma força inexistente. Como exemplo, uma revista de actualidades entrevistava há alguns dias uma jovem actriz e destacava o seu «passado rebelde», quando nos anos 80, para alvoroço da pequena cidade de província onde crescera, «andava pela rua de saia e sapatos de ténis». Políticos profissionais recorrem a idêntica estratégia, procurando legitimar uma imagem de «personalidade forte» quando destacam a irrequietude de banalíssimos episódios biográficos do seu passado mais remoto. Entretanto, alguma esquerda invoca ainda uma «rebeldia teórica», condicionada pelo apego à ideologia envelhecida que a moldou ou a um modelo falido de sociedade. De acordo com esta perspectiva disforme, rebelde não será então o homem ou a mulher que luta pela liberdade individual, pelo direito à diferença, por uma sociedade desbloqueada, mas sim o polícia que zela sem descanso pela suprema «ordem revolucionária».

Contrariamente, em A Política do Rebelde, Michel Onfray exalta a figura singular do rebelde, do verdadeiro rebelde, esse cujo génio sempre algo colérico o conduz, no encontro do seu percurso pessoal com a história humana, a um irreprimível desejo de confronto, a um impulso projectado para a superação dos limites. Com ele, sempre uma mesma recusa: a da ordem estabelecida, seja ela social ou cultural, percebida como uma ameaça e um obstáculo a ultrapassar. «Tudo aquilo que olhamos é falso», escrevia Tzara no Manifesto Dada de 1918. E em 1929, o brasileiro Oswald de Andrade constatava: «a falsa cultura, a falsa arte, a falsa moral, a falsa religião, tudo desaparecerá, mastigado por nós com a maior ferocidade». Sempre a recusa de uma gestão do presente «tal qual ele é» e a defesa da possibilidade do impossível.

Para além da negação cruel do cenário imposto pela ditadura do real, o rebelde observa o futuro com lentes de aumentar, por entre corredores espelhados que projectam um efeito caleidoscópico. Exagera e distorce a perspectiva, claro, mas nos assuntos que se relacionam com a administração do real vivido e do real possível não existem meias-tintas: ou se é avisado, atinado, «realista», ou se é excessivo, ao mesmo tempo apolíneo e donisíaco, uma vez que Apolo e Dioniso, os dois deuses superiores da mais importante epifania délfica, parecendo opor-se, afinal se completavam. Ou se gere o mundo apenas à vista, mergulhado na banalidade e, mais cedo ou mais tarde, no desespero, ou se projecta o salto em frente, superando, por vezes na dimensão de um pathos incidental, a enganadora sombra. As «pessoas extraordinárias» – de Thomas Paine a Billie Holiday – das quais falava Eric Hobsbawm na conhecida obra homónima, pertencem a este segundo tipo. São aquelas que convivem com o ar do tempo, com o fragor mediático, mas não se limitam a servi-lo, reconhecendo corajosamente a existência de um eco maior, receptivo à transformação e à busca da felicidade, que pode ouvir-se no horizonte. Se nos calarmos todos por um momento, e prestarmos atenção, conseguiremos ouvi-lo. É bom fazê-lo de vez em quando, sobretudo agora que nos oferecem programas sem alternativa, buscando governar à vista, confinar à maneira de Haussmann, as nossas vidas.

    Democracia, Olhares, Opinião

    Ainda o caso da editora receosa

    Os argumentos da Chiado Editora são lícitos e substanciais, mas não me apercebi de que alguém tivesse falado propriamente de censura à maneira do Santo Ofício ou da velha Comissão da dita. Falou-se, isso sim, de autocensura, medo e capitulação, sejam quais forem os outros nomes que se pretenda dar à atitude escolhida. Não é o mesmo, mas é igualmente assinalável. A defesa da liberdade tem custos, naturalmente, e sempre houve quem os não desejasse pagar. Mas também quem se batesse por ela, pagando algumas vezes pelos seus actos.

      Atualidade, Democracia

      Margem de certa maneira

      Margem
      ©2008-2009 ChaosBang

      Pego no 18 de Brumário de Luís Bonaparte e regresso ao momento em que Marx procurou estigmatizar os partidários do futuro imperador: «Lado a lado com elegantes arruinados, de meios de fortuna duvidosos, aventureiros e bastardos, devassos da burguesia, encontravam-se vagabundos, soldados desmobilizados, ex-presidiários, antigos foragidos das galés, saltimbancos, chantagistas, desclassificados, carteiristas, trapaceiros, jogadores, gigolôs, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, amola-tesouras, mendigos, em suma, toda uma massa confusa, decomposta e flutuante, a que os franceses apelidam de boémia.» Não se poderia condenar com maior clareza todos aqueles que, recusando a marcha a passo cadenciado, preferiam viver fora dos caminhos convencionais.

      Os tipos citados eram considerados mais ou menos próximos do lumpenproletariat, marginais tanto em relação à forma como Marx concebia os grupos capazes de uma posição historicamente revolucionária – por isso o estalinismo fez deles aquilo que se sabe –, como em relação ao dispositivo da ordem burguesa dominante. Actualmente, porém, as maneiras de ser e de pensar que foram qualificadas pelo filósofo alemão como confusas, flutuantes, decompostas, ou simplesmente aventureiras, são partilhadas por um conjunto alargado de marginalidades, transformaram-se algumas vezes em sociabilidades nómadas e instáveis mas com uma legitimidade própria, alternativa à dominante. Enquanto fontes de perturbação para o funcionamento previsível do sistema, podem afirmar-se como trincheiras de liberdade, territórios de resistência ao trabalho de normalização e controlo imposto pelo Estado e pela suprema ordem neoliberal.

        Atualidade, Democracia, Olhares

        Imprimatur no século 21

        nós, vós, eles

        «No seguimento de ameaças de represália que não podem deixar de ser consideradas», a Chiado Editora resolveu adiar indefinidamente o lançamento do livro A Última Madrugada do Islão, de André Ventura. Informa ao mesmo tempo que «decidiu solicitar, adicionalmente, dois pareceres sobre o eventual conteúdo ofensivo e controverso da obra em questão, respectivamente ao Sheikh David Munir, líder da Comunidade Islâmica de Lisboa, e ao Professor Mostafa Zekri, especialista em assuntos islâmicos, de forma a melhor compreender as ameaças recebidas e antecipar eventuais cenários problemáticos resultantes da publicação», adiantando que do resultado destes pareceres «dependerá a decisão definitiva» sobre a publicação do romance.

        O livro «resulta de uma vasta investigação histórica e apresenta pontos que, não obstante originais e interessantes, se revelam particularmente polémicos», recriando o cenário em que morreu Yasser Arafat e dramatizando aspectos da vida de um jovem muçulmano em Paris. A editora entende que «os comentários recebidos em relação à obra em causa e a análise da história recente» a forçam a ser «prudente em relação às publicações que chegam ao mercado, tendo em conta a segurança do autor, editores e distribuidores do livro». Sentiu-se ameaçada, portanto. Mas evoca também condicionalismos relacionados com «a possibilidade de serem prejudicadas, como aconteceu no passado noutros países, as relações portuguesas com Estados e comunidades islâmicas, muito particularmente a Palestina».

        Aceita-se pois, no país que viveu um pesado regime censório mas conseguiu aboli-lo há 35 anos, que se coíba a circulação de uma obra literária. E admite-se, de forma aparentemente normal, um recuo aos tempos inquisitoriais do imprimatur, agora já não de clérigos arrolados pela Inquisição mas de duas autoridades em assuntos islâmicos. O editor está no seu direito de ter medo das consequências materiais da publicação. Porém, colocado nestes termos, o assunto adquire uma gravidade que ultrapassa a intervenção da Chiado. Afinal, não falamos apenas de uma pequena contrariedade editorial, mas sim de uma grave cedência diante de pressões exteriores, capazes de impor em Portugal limitações à liberdade de criação, de circulação do livro e de opinião. Pressões com força suficiente para atearem a autocensura e o medo.

          Atualidade, Democracia

          Duas balas para Natalia

          Natalia

          Agora foi a vez de Natalia Estemirova, encontrada morta, com dois tiros na cabeça, numa floresta da república de Inguchétia, após ter sido raptada quando saía de casa. Tinha sido uma das colaboradoras mais próximas de Anna Politkovskaia, assassinada em 2006, e trabalhava para a Memorial, uma das mais importantes organizações russas de defesa dos direitos humanos. Investigava de momento dossiers sensíveis sobre centenas de casos de rapto, tortura e assassínio praticados por tropas russas ou forças paramilitares. Era uma crítica insistente do actual presidente tchetcheno, Ramzan Kadirov, e da política do Kremlin para o Cáucaso. Entretanto a presidência russa já reagiu, tendo um porta-voz garantido que Medvedev ordenou uma investigação ao caso. Pois.

            Atualidade, Democracia

            «Caminharemos de pés nus»

            Prisioneira não identificada

            Escrevo durante uma pausa na leitura coerciva de No Inferno dos Khmers Vermelhos, de Denise Affonço (Pedra da Lua). A autora é uma sobrevivente do imenso campo de morte e atrocidades no qual, entre 1975 e 1979, se transformou todo o Camboja. Naqueles quatro anos, pelo menos 1,7 milhões de pessoas, cerca de 20 por cento da população, sucumbiram à fome, às doenças, aos trabalhos forçados, à tortura e às execuções sumárias. O objectivo do poder khmer, apoiado num exército de adolescentes fanatizados e aplicados em impor um sacrifício colectivo purificador, era o regresso imediato, sem qualquer transição ou cedência, a uma vida rural, absolutamente primitiva, assente nos princípios do que consideravam ser o comunismo integral. A construção acelerada da distopia perfeita. O extremo horror pode ser revisitado observando certas normas impostas aos milhões de cidadãos-prisioneiros: «é proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», «é proibido ter saudades do passado», «nunca nos devemos queixar do quer que seja». Ou algumas das apertadas regras relativas à aparência: «nunca devemos usar roupas de cor», «caminharemos de pés nus: acabaram os sapatos e os chinelos», «as pessoas com problemas de vista deixarão de ter direito a usar lentes correctoras», «quando estivermos sentados (…) é proibido cruzar as pernas, sinal exterior do capitalismo», «trabalharão todos os dias do nascer ao pôr-do-sol; sábados, domingos e feriados são abolidos». Um terrífico relato de viagem ao território mais recôndito da impiedade e da maldade humana.

              Democracia, História, Memória

              Agora Xinjiang

              Em Xinjiang

              Os acontecimentos de Xinjiang, a região chinesa de maioria muçulmana, são insuportáveis. Já nem importa reconhecer se foram exactamente 154 os mortos, 828 os feridos e largas centenas os detidos pelos militares (assim o dizem as próprias autoridades chinesas), ou bem mais as centenas de mortos e os milhares de feridos e presos (segundo as notícias que chegam, ou chegavam, via Twitter). Se os exemplos do passado servem para alguma coisa, as contas certas penderão mais para a segunda das versões. Não importa também, neste momento, começar por averiguar da justeza de uma causa da qual a maioria de nós nem sequer tinha ouvido falar. Absolutamente prioritário é antes denunciar, sem hesitações, a repressão brutal de manifestações pacíficas e a completa ausência de vergonha de um regime para o qual o princípio da força e da intolerância se revela sempre indispensável à menor contrariedade, transigindo depois em todos os restantes.

                Atualidade, Democracia

                Arrependidos

                Arrependidos

                No judaísmo e no cristianismo, o arrependimento é um acto central da virtude religiosa que consiste num sentimento de rejeição sincera, por parte do pecador, do seu comportamento pregresso, do qual resulta a intenção de um retorno à lei moral. Nesta direcção, o arrependido é um penitente, existindo uma relação de sinonímia entre ambas as palavras, ademais com raiz etimológica partilhada. «Repentudo» era ainda, no século XIII, uma palavra comum, híbrida, utilizada no português com idêntico sentido. As vidas dos santos encontram-se, aliás, repletas de relatos desse instante redentor no qual se abjura de um passado de transgressão em nome de um caminho novo, de rectidão e pena. Existem, no entanto, modelos distintos de arrependimento: desde aquele, sincero, que resulta de uma apreensão gradual da falta de justeza de uma atitude que é seguida da sua correcção, a um outro, meramente formal, que se segue à imposição, muitas das vezes condicionada pelo medo ou pela coacção, de uma atitude que não é sentida.

                Os sistemas totalitários, consolidados por uma ideologia, de pendor laico ou não, que se vê transformada em «religião do poder», serviram-se sempre do arrependimento como processo para moldar a opinião pública ou isolar a dissidência. Foram diversos os intelectuais alemães que cumpriram o papel de arrependidos, o mesmo acontecendo em França durante a República de Vichy. Os Processos de Moscovo recorreram mesmo às declarações dos «arrependidos» como arma de arremesso lançada contra outras vítimas, transformando as suas palavras em libelos da acusação destinados a esmagar os «inimigos do socialismo». Na China pudemos ver, durante a Revolução Cultural, de que forma foi possível encenar, sem qualquer maquilhagem, o «arrependimento» público de um acusado, transformado publicamente num ser desprezável, cuja atitude de rejeição de si próprio visava confirmar a abjecção e a infâmia do próprio dissídio. De Cuba chegam ainda os ecos fantasmagóricos das declarações prestadas durante o julgamento do General Arnaldo Ochoa, o único guerrilheiro de origem proletária de Sierra Maestra, e depois das arengas avulsas, devidamente televisionadas, de outros penitentes. Por isso, não nos podem surpreender já – a nós que temos, felizmente, a possibilidade de consultar arquivos, de confrontar memórias, e que por isso mais dificilmente nos deixamos enganar – as imagens daquela pobre mulher iraniana, sentada ontem em frente das câmaras, afirmando para todo o mundo, penitente, que «os culpados somos nós, os manifestantes».

                  Atualidade, Democracia, História

                  Burka e dignidade

                  Mulher de burka

                  Poderia, por uma vez, concordar com Sarkozy. Também a mim a burka repugna: é feia, é horrível, «um símbolo de subserviência». Mas é-o igualmente de sobrevivência. Para muitas mulheres muçulmanas o único possível, o único razoável no seu espaço de pertença, factor de inclusão no casulo protector fora do qual nada possuem, para nada contam. E não existe um sistema métrico universal e absoluto para o conceito de dignidade. A burka não pode ser imposta e não deve ser proibida. Em Kabul ou Copenhaga.

                  [Escrito um ano depois – Quando redigi este pequeno post procurava, sobretudo, reagir a ímpetos claramente xenófobos protagonizados pelo governo de Sarkozy, e ao mesmo tempo tentava compreender o lugar das mulheres muçulmanas que não têm alternativa que não seja a de se conformarem à norma imposta. Não deixam de me preocupar as mesmíssimas razões, mas hoje vejo o problema sob uma perspectiva diferente, talvez mais completa. A imposição da burka condiciona precisamente, em algumas circunstâncias, a sua proibição.]

                    Apontamentos, Democracia

                    Euna e Laura

                    Euna e Laura

                    Por «actos hostis» e «actividades não-identificadas» – basicamente por estarem a trabalhar, após terem entrado ilegalmente no território controlado pelos empregados do «Querido Líder», sobre a vaga de fugas de norte-coreanos desesperados para a China – duas jovens jornalistas norte-americanas foram condenadas a nada menos que 12 anos de trabalhos forçados. Uma «medida disuasora», como bem assinalam os Repórteres Sem Fronteiras. É importante que não sejam esquecidas pela opinião pública internacional. E que nos lembremos delas sempre que tivermos de avaliar os consignatários locais da ditadura paranóide de Pyongyang.

                      Atualidade, Democracia

                      Às tantas, aos poucos

                      Provos
                      Amsterdão-1967: provos no Vondel Park

                      Redigida por volta de 1685-1686, a Carta sobre a Tolerância foi publicada pela primeira vez em 1689, nessa mesma Holanda onde o seu autor, John Locke, procurara protecção. Nela se rejeitava terminantemente a ideia segundo a qual se poderia constranger alguém a crer, visando mostrar-lhe o verdadeiro caminho da salvação, e se defendia que as opções no campo do pensamento devem ser completamente indiferentes para as autoridades. Muito antes, durante as guerras de religião do século XVI, os Países Baixos tinham sido já uma ínsula de liberdade e de relativa paz numa Europa intransigente e a ferro e fogo. Aí encontraram refúgio milhares de judeus hispânicos e de protestantes de diferentes tendências, muitos deles a contas com os patíbulos do Santo Ofício se ali não tivessem buscado refúgio. Na década de 1960, Amesterdão transformou-se numa cidade plural e ali nasceram as primeiras comunidades contraculturais de jovens provos, aceites pelas autoridades apesar das suas posições radicalmente não-violentas e anti-sistema.

                      Pois é nesta mesma Holanda que uma força da extrema-direita nacionalista e xenófoba – o Partido para a Liberdade do Povo Holandês, de Geert de Wilders – acaba de ficar em segundo lugar no decurso das eleições para o Parlamento Europeu, admitindo-se já a possibilidade de vir a ganhar as próximas legislativas. No ponto em que estamos, a situação dá bastante que pensar e recoloca um velho problema que os políticos europeus têm feito por varrer para debaixo do tapete: será legítimo integrar no jogo democrático e na arquitectura do bem comum os grupos e organizações que se destinam precisamente a contestá-los? Precisaremos de vê-los no poder para acordarmos e fazermos algo mais do que piedosas reprimendas?

                      Adenda – Recebi entretanto um mail de um amigo português que conhece muitíssimo bem a Holanda e me diz que classificar o partido de Geert Wilders como «da extrema-direita e xenófobo» lhe parece «simplificar em demasia a realidade política e social holandesa». Junta ao que me diz um link para um texto de outrem que lhe parece ir ao encontro daquilo que ele próprio pensa. Esse texto pode ler-se aqui. Da minha parte, registo esta opinião, embora muita da informação que me chega às mãos pareça corroborar a leitura que fiz. Incompleta? É muito provável que sim. Por isso esta adenda.

                        Apontamentos, Atualidade, Democracia, História, Memória

                        7 Maravilhas: a petição

                        São Jorge da Mina

                        Não partilho das concepções, de natureza a-histórica, que partem dos problemas e das contradições do presente para estabelecerem juízos anacrónicos sobre figuras, episódios ou situações do passado. Não podemos ignorar, ou mandar arrasar, as pirâmides de Gizé ou o zigurate de Ur, apenas porque definiram no tempo da sua construção formas de imposição de um modelo social, de uma crença e de uma ordem posteriormente questionados. Ou porque foram erguidos com recurso a trabalho escravo. Como não faz sentido adoptarmos uma avaliação apenas negativista da colonização europeia dos séculos XV a XIX, que não integre as iniciativas contraditórias envolvendo heroísmo e crime, encontro e exclusão, paixão e cobiça. «Todo o documento de cultura», escreveu uma vez Benjamin, «é também um documento de barbárie». Mas também não podemos aceitar uma história asséptica, utilizada acriticamente como curiosidade, instrumento de negócio ou engodo turístico.

                        Parece-me pois lamentável que, independentemente do carácter lúdico e popular do concurso As 7 Maravilhas de Origem Portuguesa do Mundo, historiadores profissionais e autoridades académicas aceitem omissões graves, tendentes a embelezar publicamente o passado e a ignorar a sua dimensão contraditória e dramática, falando em abstracto de um «valor histórico e patrimonial.» Concordo por isso com os termos da petição dirigida ao governo que está a circular na Internet, relacionada com a escolha de construções como o Forte de São Jorge da Mina ou da ilha de Moçambique, entre outras. Escolha capaz de elogiar a beleza arquitectónica, o fulgor dos seus muros, o poder que simbolizavam, mas omitindo que serviram, e prolongadamente, de entreposto decisivo para a manutenção do tráfico de escravos. De lugar de desterro, sofrimento e morte. É inadmissível o disfarce da verdade e, em consequência, a redução da dimensão compreensiva, complexa e crítica que toda a História deve ter. Mesmo aquela que legitimamente se destina a alimentar a indústria do turismo ou serve de divertimento.

                        Por isso me parece criticável o apoio dado à iniciativa pela Presidência da República, pela Universidade de Coimbra, pelo Instituto Camões ou, por paradoxal que possa parecer, pela CPLP. Pode ler e, se concordar, assinar aqui a petição. [Nota posterior: a petição foi entretanto encerrada, pelo que o link deixou de estar disponível.]

                        Publicado originalmente em Caminhos da Memória

                          Atualidade, Democracia, História

                          Tiananmen e o «dever de esquecimento»

                          Tiananmen

                          Li há algum tempo, no blogue de um conhecido militante do PCP, uma observação desdenhosa – logo secundada por comentários entusiásticos de leitores – sobre as pessoas que se preocupam com «aquilo» que aconteceu há setenta anos. «Aquilo» eram os crimes do estalinismo, e o que preocupava o conhecido militante era o aproveitamento dessa evocação como arma de arremesso contra o conceito de liberdade que entronca na teoria e rege a prática dos comunistas que não vão em palavrório, continuando, do fundo do coração e do armazém de adrenalina, a acalentar o devaneio de uma ditadura «dos explorados sobre os exploradores». Sendo o vértice do partido marxista-leninista, naturalmente omnisciente, a determinar, sem meias-tintas, quem está de um ou do outro dos lados.

                          A ideia é absurda, pois tomada à letra anularia o lugar histórico da construção e do desenvolvimento dos movimentos sociais, da emergência do ideal comunista e até da «luta de classes». Além de que, como qualquer pessoa informada e intelectualmente honesta bem sabe, jamais as operações de instrumentalização ou de silenciamento da História foram tão longe quanto o foram nos regimes, pretéritos e presentes, do «socialismo real» e dos seus sucedâneos. O mais grave, porém, é que aquela atitude de desdém atribui ainda à memória, invocada a bel-prazer ou ignorada consoante as metas do momento, um valor de uso, que, como tal, tanto pode ser descartado como servir de moeda de troca.

                          Afinal, será justo esquecer aquilo que aconteceu há cinquenta ou há setenta anos – para muitos milhões de seres humanos, o silêncio, a solidão, a fome, o desespero, a tortura ou a morte – apenas porque tal serve para iludir a ausência de uma resposta clara, por parte dos comunistas de pedra, às circunstâncias da democracia no nosso tempo? Porque tal permite a defesa de uma democracia mitigada, na qual certas pessoas são mais «livres» que as outras, devendo estas pagar pela «liberdade» das primeiras? Trata-se também aqui, para quem não pensa dessa forma, de um «dever de memória», materializado na obrigação de evocar o horror para recordar os mártires e, ao mesmo tempo, para evitar que o futuro revisite os crimes que os esmagaram.

                          Os acontecimentos de Tiananmen ocorreram há muito menos tempo, perfazem-se agora vinte anos, e a sua evocação pelos grandes meios de comunicação tem, por vezes, muito de protocolar e farisaico. As imagens guardadas e divulgadas dos episódios de Junho de 1989 foram até, de tão repetidas, perdendo parte do seu sentido dramático. Por isso, agora é mais a sua omissão, o silêncio de determinadas vozes, que ganha um particular significado. Omitir Tiananmen, apagar aquele acto de revolta juvenil e eventualmente ingénua que, como na Budapeste de 1956 ou na Praga de 1968, materializou o apoio da rua, popular em sentido lato, a uma tentativa de democratização de um regime comunista ao velho estilo, é pois sustentar uma espécie de «dever de esquecimento». Aplicado em nome de regimes e de programas para os quais a democracia, escrita com minúsculas, não passa de factor de verborreia e elemento de propaganda.

                          É importante lembrar os acontecimentos de Tiananmen. É socialmente higiénico, historicamente justo e politicamente necessário, atendendo à actual situação dos direitos humanos e das liberdades na China. Mas, lembrando, reparar também naqueles que os silenciam ou menorizam. Para acalentarem, porque a espécie se não extinguiu, o ovo da serpente.

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                            O fantasma de Jdanov

                            Jdanov

                            A reunião de Hugo Chávez com «intelectuais socialistas e revolucionários», destinada a atenuar o impacte de um encontro internacional sobre liberdade e democracia a decorrer ao mesmo tempo em Caracas, por causa do qual Mario Vargas Llosa ficou retido e foi enxovalhado em pleno aeroporto da capital venezuelana, faz, pelo simples facto de afastar, enquanto intelectuais, essas pessoas das «outras», ecoar ideias velhas e perigosas. Evocar tempos sombrios que saltam do além-túmulo para atemorizarem os vivos. A possibilidade enunciada de existir quem possa pensar, escrever, falar, representar, pintar ou filmar de um modo objectivamente «patriótico», «socialista», «revolucionário» – ou mesmo «proletário», como se tentou noutros lugares –, naturalmente situada num lugar privilegiado de acesso ao poder «revolucionário» e às honrarias destinadas aos melhores cidadãos, abre sempre as portas a um universo monolítico e carcerário. Ao qual, pela menorização social e pelo castigo objectivo determinado pela sua diferença, são confinados todos os que se atrevam a pensar à margem do paradigma celebrado. Mesmo aqueles que pisem, solitários e sem programa político visível, o seu próprio caminho. Os autoproclamados «intelectuais socialistas e revolucionários» deveriam ser os primeiros a percebê-lo – para mais com a experiência histórica do seu lado –, recusando aceitar o estatuto de casta ou servir de tropa de choque. Mas preferem acobardar-se, vestindo a camiseta vermelha e tomando-se por valentes.

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                              Foucault lido às avessas

                              Classroom

                              Os professores reduzidos à condição de robôs palermas ou indigentes mentais: «Não devem decorar as instruções ou interpretá-las, mas antes lê-las exactamente como lhes são apresentadas.» Os alunos tratados como soldados instruendos em sádicas sessões de ordem unida: «Agora vou distribuir as provas. Deixem as provas com as capas para baixo, até que eu diga que as voltem.» Ou então: «A primeira parte da prova termina quando encontrarem uma página onde está escrito PÁRA AQUI!» Fiz todos os meus exames do secundário na década de 1960 – incluindo neles as temidas provas de «admissão ao liceu» e de «aptidão à universidade», vigiadas por professores de porte austero e fato completo – e jamais observei tal obsessão com a rigorosa sequência dos rituais e o controlo dos corpos. Michel Foucault lido às avessas pelos seres andróides do Ministério da Educação. «Podem sair. Obrigado(a) pela vossa colaboração!» Ler para crer.

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                                Imigrantes

                                Imigrantes

                                A política de imigração é, neste momento, um tema cada vez mais sensível. E complexo. Admito, como qualquer pessoa minimamente sensata, que alguma coisa precisa ser feita, e com urgência, para equilibrar os fluxos de trabalhadores à escala global e evitar o completo descontrolo. Mas não me parece que a melhor forma de o fazer seja meter a cabeça na areia ou fazer de conta que isso não nos diz respeito. Ou desviar o olhar e ignorar estes dramas humanos, defendendo medidas repressivas e acreditando na possibilidade absurda de uma Europa-fortaleza. O alheamento dos sindicatos e dos partidos da esquerda de manifestações como aquela que teve ontem lugar em Lisboa apenas atestam estreiteza de perspectivas e tacanhez corporativa. O facto delas não votarem ou pagarem quotas – e, por enquanto, de agirem apenas pacificamente, sem grande atenção das televisões que escorrem sangue – parece ser determinante para explicar o desinteresse e o abandono destas pessoas. Que sendo ilegais tiveram a coragem de sair à rua, mostrar a cara e erguer a voz.

                                  Atualidade, Democracia

                                  Cúmplices ou não

                                  O silêncio

                                  Isaiah Berlin escreveu certa vez que a diferença entre uma «pessoa civilizada» e um «bárbaro» – não vamos agora debater os conceitos de civilização e de barbárie – é que a primeira consegue bater-se por coisas nas quais não acredita inteiramente. É este um dos elementos nucleares da cultura democrática e ocidental (mas também universal), conquistado após séculos de combates e de incontáveis sacrifícios: o direito à opinião partilhada e dividida, a aceitação da dúvida e da diferença, a valorização do bem-estar e do princípio do prazer, a legitimidade de todas as formas de criação e de conhecimento, a naturalidade das quimeras, a vida como deriva. Distinto daqueles que nos querem fazer regredir aos tempos medievais, a certezas impostas pela força das armas, ao silenciamento de uma voz própria, à ameaça da forca ou do paredão, à servidão da ignorância, da mordaça ou da norma. Destes devemos defender-nos. Não apenas com belas palavras, mas com firmeza. Sem tocar os tambores da guerra mas combatendo sem preconceitos, enquanto construímos as pontes possíveis, na defesa do que a nossa velha casa comum tem de melhor. Desviando os olhos do umbigo e apoiando como raras vezes temos feito, de Norte a Sul, os heróis de carne e osso, mulheres e homens em risco, que no próprio coração das trevas contra elas se levantam todos os dias.

                                    Atualidade, Democracia, Olhares