Arquivo de Categorias: Democracia

Um livro censurado e «censurado»

«Durante muitos meses de dia e de noite, nas chamadas da manhã e da noite, leram-se inúmeras ordens de fuzilamento. Com um frio de 50 graus, um conjunto de presos comuns tocava uma fanfarra antes e depois da leitura de cada ordem. Archotes fumegantes a gasolina quebravam a escuridão… O papel fino das ordens cobria-se de geada, e um qualquer chefe, que lia a ordem, sacudia os flocos com a luva, para conseguir decifrar e gritar mais um nome de fuzilado.»

Redigido entre 1958 a 1967, por motivos óbvios em lugar secreto, O Arquipélago Gulag circulou clandestinamente na União Soviética, em versão muito reduzida, até à publicação oficial em 1989. Fora já publicado em França em Dezembro de 1973 e a primeira tradução portuguesa, saída em dois volumes, data de 1975-1977, numa edição da Bertrand, com tradução a partir do russo (o primeiro volume) e do francês (o segundo).  Escrito por Alexandr Soljenítsin (1918-2008), a partir de 1945 prisioneiro durante onze anos em Kolima, um dos campos do sistema de prisões para presos políticos e «recolocados», e noutros locais, o livro é uma narrativa, construída como uma via sacra de sacrifícios, prepotência e horrores, de factos presenciados pelo autor e pelas duzentas e trinta e sete pessoas que lhe confiaram cartas e relatos. (mais…)

    Democracia, Direitos Humanos, História, Leituras, Memória

    A extrema-direita e a casa europeia

    Fot. Pierre Lagarde

    Voltam a assolar a Europa os demónios do nacionalismo, que instigaram as principais ditaduras, as carnificinas das duas guerras mundiais e as grandes deportações do século XX. Pareciam condenados a um gradual desaparecimento com a política de colaboração entre os Estados que no território europeu foi gradualmente construída a partir dos meados dos anos cinquenta, mas começaram há algum tempo a sair do estado de hibernação em que se haviam mantido nos anos da Guerra Fria e passeiam-se de novo pela realidade.

    Primeiro surgiram, logo após 1989, nos territórios saídos das experiências frustrantes do «socialismo real». Depois emergiram mais a ocidente, alimentando-se da crise económica, do desemprego, do afluxo de imigrantes e refugiados, e depois do terrorismo. Sempre em associação com a expansão de um padrão peculiar de populismo. De facto, a mitificação do ideal de «povo», identificado no caso com o destino histórico da «nação», sempre foi o ovo da serpente do nacionalismo e da direita mais extrema. Aí estão eles, pois, com os seus programas agressivos e o seu cortejo de ameaças e de apelos à exclusão de quem se encontre do lado que consideram errado, o que ainda há uma vintena de anos se supunha já só uma memória. Servem-se da «raça», da cor da pele, da origem, da língua, da religião, como rígida linha de fronteira. (mais…)

      Atualidade, Democracia, Opinião

      Não foi por acaso

      Fot. Privatedanser

      Muito se escreveu já sobre a frase do holandês que é presidente do Eurogrupo, pronunciada há dias, quando em entrevista concedida ao Frankfurter Allgemeine Zeitung recorreu a uma inaceitável analogia para se referir ao que julga ser a conduta dos países europeus do Sul: «Não posso gastar o meu dinheiro todo em vinho e mulheres e de seguida pedir a sua ajuda.» Faço um esforço para relevar aqui o caráter xenófobo e sexista destas palavras, centrando-me num outro aspeto, que transforma o episódio em algo bastante mais grave do que o seria uma frase infeliz, mas fortuita. Aliás, Jeroen Dijsselbloem, constrangido pelo escândalo a pedir desculpa, justificou-se com aquilo a que chamou a sua «habitual frontalidade», o que confirma ter dito algo que pensa. (mais…)

        Atualidade, Democracia, Opinião

        Kitsch, democracia e o Dia da Mulher

        Tbilisi, Georgia. Fot. David Mdzinarishvili/ Reuters

        Um dos inimigos da democracia é o kitsch. O conceito designa a categoria de objetos ou práticas vulgares, de mau gosto, sem substância para além da sua forma híbrida, que reproduz sem critério referências de uma cultura mais sólida. Para Umberto Eco, é um «meio de afirmação cultural fácil, adotado por um público que se ilude, julgando consumir uma representação original do mundo quando, na verdade, goza apenas de uma imitação secundária da força primária das imagens». Encontra-se associado ao consumo de massas, pois é neste domínio que a propaganda e a manipulação da informação mais facilmente se impõem, reduzindo as possibilidades de escolha do cidadão comum. (mais…)

          Atualidade, Coimbra, Democracia, Opinião

          A demagogia na massa do sangue

          Maquiavel na cidade

          Na década de 1980 costumava passar três ou quatro aulas em cada ano a estudar com os alunos o pensamento político de Nicolau Maquiavel. Parte do meu esforço consistia em contradizer o sentido então vulgarmente atribuído ao adjetivo «maquiavélico» – nessa época ele ainda era de uso corrente –, demonstrando que não fazia justiça aos ideais mais sinceros e fundamentados do diplomata florentino. Na verdade, como modelo do regime perfeito, Maquiavel apontava o exemplo «democrático» da República Romana, e não o poder tirânico centrado na figura do Príncipe, sugerido na obra homónima, escrita em 1513 num contexto particular. No entanto, foi a justificação do segundo aquela que prevaleceu como seu principal legado. (mais…)

            Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

            Um Mário contra o único

            Não se trata de concordar ou não com as escolhas politicas de Mário Soares. Pessoalmente, discordei de grande número delas e só por uma vez lhe dei o meu voto. Também não se trata de gostar ou não da sua maneira de ser. No que me diz respeito, sempre tive simpatia pela bonomia e pelo patente hedonismo, tão raros na política profissional e tão necessários, mas essa é uma escolha subjetiva. Trata-se de reconhecer o seu papel, ainda que numa outra barricada, na construção da democracia portuguesa. E de respeitar uma vida de entrega ao bem comum. Ou, mais simplesmente, trata-se de respeitar uma vida. O ódio de dentes cerrados que vai por aí – à direita e à «esquerda», diga-se – só pode vir de quem, para além de ignorante, desmemoriado ou mal-formado, conviveria bem com um regime de partido único, no qual toda a gente fosse forçada a pensar do mesmo modo ou a calar a divergência. Ou aceita um pensamento capaz de justificá-lo. Foi contra isso que Mário Soares se bateu a vida inteira. E é por isso que também lhe deixo aqui um obrigado e um imenso adeus.
            [Originalmente publicado no Facebook]

              Apontamentos, Biografias, Democracia, História

              Sobre uma biografia de Estaline

              Três notas prévias:
              1. Esta nota de leitura foi escrita e publicada em Dezembro de 2006. Republico-a no momento em que a biografia de Estaline a que se refere, escrita por Simon Sebag Montefiore, vai ser distribuída, a partir de sábado, com o semanário Expresso. Aconselho a sua leitura – crítica, como todas as leituras o devem ser – e julgo ter explicado aqui porquê.
              2. O livro é divulgado em tempo do que parece ser uma nova Guerra Fria, quando a direita se serve dos crimes cometidos em nome da esquerda e, infelizmente, parte desta insiste em recusar a História como meio de aprendizagem. Seria bom que quem luta por uma causa essencialmente justa, como a do socialismo e do comunismo o é, aprendesse, de mente aberta e sem tabus, com os erros e crimes que em seu nome foram cometidos. Redimindo a memória daqueles que eles atingiram, em grande parte adeptos convictos da sua causa.
              3. Neste intervalo foram numerosos os estudos históricos publicados sobre Estaline, o estalinismo e o Gulag, vários deles traduzidos, que são merecedores de consideração profissional e não podem ser considerados «propaganda do inimigo» ou «aldrabice», como por estes dias tenho lido. Um deles é outro de Montefiore, sobre O Jovem Estaline, traduzido entre nós em 2008. Voltarei ao assunto logo que possível.

              Da casa dos mortos
              17/12/2006

              O subtítulo, bastante infeliz, recorda uma certa literatura antisoviética do tempo da Guerra Fria. Mas Estaline – A Corte do Czar Vermelho, do jornalista e historiador britânico Simon Sebag Montefiore (ed. Alêtheia, 2006), não é, de forma alguma, um livro de propaganda ou de um sensacionalismo oportunista fora do tempo. (mais…)

                Biografias, Democracia, História, Memória

                A ignorância na era da comunicação

                Fotografia de Ender Suenni

                «A ascensão da nova ignorância», a crónica de José Pacheco Pereira saída hoje no Público é – como nem sempre, mas quase sempre acontece – uma crónica que merece a pena ler. É sobre a ignorância que nos cerca, oprime e condiciona. Sobre uma nova forma de saber e de dar a saber que privilegia o simples (quando não o simplicíssimo ou o simplório), o efémero, o imediato, o saber condensado e assumidamente soft. É sobre ela que se instala a mentira e a manipulação: para o ignorante, tudo é novo e possível. E, como não possui referências para deter e aplicar um aparato crítico, tudo é verdadeiro, aceitável. Se não é verdade, bem poderá sê-lo, diz o novo ignorante, que nem mesmo sabe que o é. De facto, é este o princípio motor da «era da pós-verdade». (mais…)

                  Atualidade, Cibercultura, Democracia, Opinião

                  Princesa Leia

                  Em Novos Ritos, Novos Mitos, saído em 1965, o crítico e filósofo Gillo Dorfles declara a ficção científica, entre as diversas formas de arte para as massas, como aquela que soube englobar um maior número de «constantes de época» e torná-las evidentes. Não sei se, meio século depois, podemos continuar a dizer isto de uma forma tão absoluta, mas parece hoje ainda mais claro, com a voga das grandes sagas para o cinema ou para a televisão, que existe uma dimensão em histórias e personagens de ficção científica, como parte de uma fantasia épica, que entraram nas nossas vidas e dão sentido a um certo lado do nosso imaginário partilhado. Tão saturado de realidade, tão esvaziado de propostas mobilizadoras, e por isso tão carente de um universo paralelo no qual possamos projetar a eterna luta entre o bem e o mal. É isso que faz com que, por exemplo, tantas pessoas estejam a tomar quase como uma perda pessoal a morte inesperada de Carrie Fisher, desde 1977 a Princesa Leia Organa da saga A Guerra das Estrelas. Por cuja libertação das mãos das forças imperiais comandadas por Darth Vader, Luke Skywalker e o capitão Han Solo tanto tiveram de lutar logo no primeiro episódio. Afinal, tratava-se de alguém indispensável para ajudar a restaurar a liberdade e a justiça na galáxia e esta é uma missão que muitos de nós considera essencial no mundo de verdade.

                    Artes, Cinema, Democracia, Ficção

                    A Síria e as «realidades imaginadas»

                    Rua de Aleppo em 2010. Fot. Majd

                    Passada a fase de relativa acalmia que se seguiu à queda do Muro de Berlim e à derrocada das experiências do «socialismo realmente existente», quando o equilíbrio internacional assente num mundo bipolar pareceu dar lugar a uma ordem de sentido único, é hoje percetível que estamos de regresso a um clima de Guerra Fria. Este não repete o anterior, mas replica alguns dos seus mecanismos caraterísticos. Destaco três: a divisão entre duas áreas de influência política, polarizadas nas potências com maior capacidade político-militar; o papel da propaganda e da contrapropaganda neste processo de separação, em particular nos conflitos que envolve; e a presença de séquitos de sectários que propagam os pontos de vista de cada um dos lados, servindo os seus interesses estratégicos.

                    É bem visível nova divisão do mundo em áreas de influência. A presença global dos Estados Unidos e da Rússia, da sua ativa diplomacia e da sua elevada capacidade de intervenção, é claramente percetível, não sendo modulada por forças de natureza democrática com capacidade para erguer áreas libertas da sua interferência. A União Europeia tem sido, aliás, um catavento em posição de subalternidade face a Washington. A China tenta interferir em algumas políticas regionais e funciona, no atual mapa, como um fiel da balança que tenta conquistar o máximo neste papel. Já os setores irredentistas do Islão intervêm como fator desregulador, funcionando, nas áreas nucleares, como justificação para o reforço do Estado, a corrida ao armamento e o crescimento dos sistemas securitários. Entretanto a democracia definha, presa numa tenaz cujos braços são o medo e a desinformação. (mais…)

                      Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                      Mentira, nostalgia e melancolia

                      Fidel, Jean-Paul e Simone em 1960
                      Fotografia de A. Korda (cor de M. Athanasiadis)

                      Passados os dias que se seguiram ao desaparecimento mais ou menos esperado de Fidel Castro, em que foram propostas interpretações do seu papel histórico muitas vezes opostas e quase sempre pouco racionais, regresso ao assunto para olhar justamente alguns dos rostos que tomou esta irracionalidade. Para o fazer, recorro a três conceitos que, na sua relação com diferentes modos de observar a vida e a intervenção pública do líder cubano, refiro aqui de uma forma inevitavelmente concisa e parcial. A cada um associo uma diferente proposta de leitura, que vivamente recomendo a quem se interesse por estes temas.

                      O primeiro conceito é o de «mentira». Falei em crónica recente da «pós-verdade», sobre a qual Ralph Keyes publicou em 2004 o livro The Post-Truth Era. Para Keyes, vivemos um tempo de manipulação da verdade, no qual aquilo que se diz tem mais valor do que a realidade à qual supostamente se refere. Isto leva a uma constante deturpação ou mesmo à invenção de factos, fazendo passar a mentira por verdade. Foi em parte o que aconteceu com a identificação liminar, por estes dias repetida como um mantra, de Fidel como ditador. Se observarmos a forma autocrática como por mais de quatro décadas exerceu o poder, o regime de partido único sem eleições realmente livres, a censura e a informação controlada, a polícia política, as prisões e execuções por oposição ou dissidência, o qualificativo será adequado. Mas a direita serve-se indevidamente dele, usando-o para demonizar uma experiência histórica que, em anos de constante apoio da política externa norte-americana a ditaduras sanguinárias espalhadas por toda a América Latina, funcionou para milhões como fator de esperança e um importante exemplo emancipatório. Por isso essa «verdade», vinda, ademais, de uma área política na qual a luta pela liberdade sempre esteve longe de ser uma prioridade, se funda na ocultação, produzindo, de facto, uma mentira. (mais…)

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                        Um silêncio inconveniente

                        Fotografia de Sagi Kortier
                        Fotografia de Sagi Kortier

                        A esquerda, e em particular aquela que não separa os princípios da solidariedade e da igualdade dos direitos, centrais na definição da sua matriz política, da defesa da liberdade individual e das diferenças de opinião como expressão indiscutível de uma democracia sem adjetivos, vive hoje tempos bem difíceis. Por todo o lado, encontramos um regresso à naturalização da desigualdade, uma revisitação dos nacionalismos mais ferozes, um retorno da xenofobia e do racismo, bem como o recuo das conquistas sociais obtidas em dois séculos de luta operária e popular e de combate por uma cidadania plena.

                        A direita alimenta estas tendências negativas de uma forma eficaz, servindo-se da crise económica, da instabilidade que esta traz, do desemprego, do terrorismo, do medo, da ignorância, do controlo da informação, para se apropriar do poder por via democrática e instaurar políticas autoritárias, sob a promessa de tudo resolver a partir de uma posição de força. Diante deste cenário, a esquerda, envolvida nas suas contradições e inapta para projetos capazes e mobilizadores, tem-se remetido a uma posição defensiva, de resistência, que só aqui e acolá vai passando pelos caminhos de aproximação que durante largas décadas quase sempre rejeitou. As lições sobre as consequências do divisionismo, oferecidas nos anos 30 pela ascensão do nacional-socialismo na Alemanha e pelo triunfo do golpismo franquista em Espanha, vão sendo invocadas pelos que pretendem evitar que a história se repita. (mais…)

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                          Essa verdade a que temos direito

                          Fotografia de Gerkitda

                          «Pós-verdade». O termo terá sido cunhado em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich e em 2004 Ralph Keyes usava-o já para identificar uma certa «era da desonestidade e do engano», mas foi ao longo deste ano que surgiu por todo o lado, em artigos de jornal, programas de televisão, posts das redes sociais e até debates académicos. «Vivemos um tempo de pós-verdade», diz-se a propósito da dinâmica que tem feito com que os factos objetivos – aquilo a que geralmente se chama «verdade» – tenham menor influência na formação da opinião pública e nos resultados das eleições que os apelos emotivos, as opiniões subjetivas, os boatos ou mesmo as mais despudoradas mentiras. Refere-se também a um sistema de comunicação no qual a «notícia» vale por si, pelo impacto que gera, pelo número de leitores que atrai, pelo volume de publicidade que gera, e não pelo caráter isento, completo e autêntico da informação que oferece. (mais…)

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                            Será isto ou nada, a Europa

                            Fotografia de Boris Voglar
                            Fotografia de Boris Voglar

                            O uso da força como instrumento da autoridade política é uma das experiências mais antigas das sociedades humanas. Porém, terá sido apenas em 1879, ao rebater em livro algumas ideias do filósofo alemão Eugen Dühring – defensor de uma variante de socialismo de pendor moral, concorrente com a marxista –, que Friedrich Engels considerou a violência a «parteira da História». Por si tomada como fator decisivamente dinâmico da origem e do desenvolvimento das sociedades. Porém, o amigo e correligionário de Marx não se referia apenas à guerra, invocando também os outros processos de afirmação da ordem política impostos pela coação e pela ameaça, projetadas sobre os poderes menores e sobre os povos subjugados, ou então por estes invocados. Um processo necessário, aos seus olhos, para substituir o velho pelo novo, sempre no quadro da luta de classes. (mais…)

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                              Alepo e a culpa

                              Fotografia: Reuters/Rami Zayat
                              Fotografia: Reuters/Rami Zayat

                              A propósito da guerra, escreveu Karl Kraus (1874-1936) no jornal A Tocha: «De início um dos lados espera vencer; depois o outro espera que o inimigo perca; de seguida cada um queixa-se daquilo que está a sofrer; no final, ambos percebem que todos perderam.» A guerra é sempre iníqua e dolorosa, mesmo quando se afigura justa para um dos lados, ou até quando parece explicável, necessária e de alguma forma regeneradora. A luta dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, as guerras de emancipação do domínio colonial ou aquelas que visaram o derrube de ditaduras, seguem esta linha justa, mas nem por isso foram ou serão belas. (mais…)

                                Atualidade, Cidades, Democracia, Direitos Humanos

                                O «menino de Alepo» e as leituras enviesadas

                                Já estava um tanto admirado por não aparecer de imediato algo que pudesse denegrir a imagem perturbante e icónica do «menino de Alepo» e servisse de defesa do governo sírio de al-Assad, o suposto herói da luta anti-imperialista, bem como dos seus aliados russos. Vindo daquele setor da opinião para o qual todo o mal de um mundo muito simplificado e apenas a dois tons tem como responsável e beneficiário único e exclusivo os Estados Unidos da América, financiador ultraconsciente e contumaz da Al-Qaida e do Daesh.

                                Um juízo que não iliba, obviamente, sucessivos governos norte-americanos de políticas desastrosas, erradas e danosas no Médio Oriente que alimentaram de facto os grupos islamitas, é verdade, mas que é perigosamente redutor. É óbvio também que aquela fotografia foi usada como uma ferramenta de propaganda, como tem acontecido em todas as partes e em todos os conflitos pelo menos desde a Guerra da Crimeia de 1853-1856. Mas a desmontagem que dela se está a fazer pode atingir proporções insólitas. (mais…)

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                                  A Europa e a Turquia, agora

                                  Há séculos que a existência do Império Otomano, e mais tarde da Turquia, representa uma fonte de temores e de problemas para a Europa. A expansão do seu território no final da Idade Média, traduzindo um avanço do Islão e de um modelo de sociedade totalmente diverso do instalado nos reinos e Estados cristãos, assustou milhões de europeus ao longo de gerações, e convém lembrar que, não fora a derrota do Grão-Vizir Kara Mustafá em 1683, na decisiva batalha de Viena, com todas as probabilidades a história do nosso continente teria sido radicalmente outra. Foi, aliás, a continuação deste risco que determinou o empenho de D. João V quando, em 1717, enviou uma esquadra de seis poderosos navios a ajudar Veneza na batalha naval de Matapan. Mas apesar do avanço militar ter sido estancado, o recuo decisivo apenas foi consumado em 1923, com a retirada turca de quase toda a Península Balcânica e a proclamação da República, sob a liderança secular, modernizadora (leia-se «ocidentalizante») e formalmente democrática de Kemal Atatürk. (mais…)

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                                    Excesso de tradição e diálogo político

                                    Nas Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain disse ser «fácil justificar uma tradição, mas muito difícil vermo-nos livres dela», dada a força que pode tomar. O historiador Eric Hobsbawm mostrou em 1983 que as tradições são sempre invenções, mais próximas de um certo imaginário cultural que da realidade da vida. Simplificando a interpretação: aquilo que produz uma tradição e lhe confere essa força não é a reprodução das mesmas práticas, supostamente antigas, através do tempo, mas antes a tendência para repetir uma interpretação conservadora enquanto os factos e os contextos se vão transformando. Por isso, tantas vezes é anacrónica e imobilista.

                                    Isto não significa, porém, que funcione apenas como uma prisão, forçando o presente a reproduzir o passado, e que não tenha qualquer valor dentro da vida social. Longe disso. Muitas vezes a tradição pode, no seu sentido verdadeiro – isto é, como a imaginação de uma continuidade cultural forte – cimentar as identidades das nações, dos coletivos, das regiões ou das cidades. Em Coimbra, onde a palavra «tradição» tem um peso muito grande no discurso público, em particular naquele que é veiculado por algumas instituições e por certos setores sociais, bem como pela generalidade da imprensa local, ela desempenha um papel importante, embora complexo e nem sempre consensual, na construção interna e na projeção exterior de uma imagem da cidade. (mais…)

                                      Coimbra, Democracia, Memória, Opinião