Arquivo de Categorias: Atualidade

Mais vento de Leste

Liu Xiaobo

São escassas mas vão chegando. Outra boa notícia para a luta pela defesa dos direitos humanos na China: depois da concessão do Prémio Sakharov de 2008 a Hu Jia, foi agora a vez de o Prémio Nobel da Paz de 2010 ser atribuído ao activista e dissidente Liu Xiaobo. Liu, um dos principais dirigentes da luta estudantil que em 1989 conduziu aos acontecimentos de Tienanmen, encontra-se a cumprir uma pena de onze anos de prisão por ter sido um dos autores da Carta 08, um manifesto a favor da liberdade de expressão e de eleições multipartidárias. Para os impenitentes autocratas de Pequim a entrega do prémio a Xiaobo é «uma obscenidade». Venham mais.

    Atualidade, Democracia

    Companheiro Mario

    Mario Vargas Llosa

    Comecei a ler Mario Vargas Llosa sensivelmente pela mesma época em que comecei a ler Gabriel Garcia Márquez. No entanto, os nossos primeiros encontros não foram fáceis. A Cidade e os Cães e a Conversa na Catedral, com os quais me estreei, foram de uma leitura bem mais sofrida do que a do agora ultra-canónico Cem Anos de Solidão, de Márquez. O primeiro dos romances, para ser muito sincero, por causa de um homoerotismo latente que impressionava qualquer rapaz provinciano cheio de preconceitos como eu era, o segundo pelo grau de elaboração formal para a qual não estava preparado. Llosa e Márquez eram amigos nessa época e a vida e a ética política foram-nos depois distanciando, mas para mim a separação foi sendo construída, a partir dali, de uma outra forma. Enquanto os livros do peruano continuaram a surpreender-me pela versatilidade, os do colombiano passaram a saber-me sempre mais ou menos ao mesmo. Continuaram lado a lado nas estantes cá de casa – ainda lá estão, estou a vê-los daqui – mas fui-os colocando mentalmente em dois mundos cada vez mais opostos.

    Devo dizer que da actividade política de Llosa como reformista «do centro» nunca me senti propriamente próximo, ainda que na longa noite da América Latina dos ditadores e das ditaduras esses qualificativos tenham adquirido sempre um sentido razoavelmente diverso daquele que, agora como na altura, lhes atribuímos aqui na Europa. Mas os seus ensaios e artigos de opinião desde há muito que o redimiram desses ímpetos liberais que podem sempre provocar, é também o meu caso, um certa alergia a muitos dos seus mais indefectíveis leitores e admiradores. Penso agora, convictamente, que parte substancial da grandeza de Vargas Llosa se encontra igualmente – a par do que vai compondo com a sua caixa de ferramentas de romancista – no constante trabalho no campo da não-ficção, indiciador de uma capacidade notável e permanente para dialogar criticamente com o mundo. Combatendo na vertical, e não poucas vezes com custos pessoais, pela liberdade do indivíduo e da palavra. Contra Pinochet ou Castro, Bush ou Bin Laden.

    A Academia sueca atribuiu-lhe agora o Nobel da Literatura de 2010. Foi dito esta manhã que «pela sua cartografia das estruturas do poder e as suas imagens mordazes sobre a resistência, a revolta e a derrota individual». Entendo a declaração como um elogio associado a um Mario Vargas Llosa integral. Não apenas o grande romancista, mas também o defensor da fala livre e dos direitos humanos. Por isso, e pela primeira vez em bastantes anos, me senti feliz quando soube quem ganhara o prémio. Um prémio político? Espero bem que sim. Não só, mas também.

    [Os 10 melhores links para entender Mario Vargas Llosa segundo El País.]

      Atualidade, Democracia, Olhares

      Petição pelo pluralismo de opinião

      pies
      «Automat. New York», por Berenice Abbott

      Disponível online uma Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico. Perante o silenciamento de opiniões divergentes e o tom monocórdico, nos órgãos de comunicação social, dos comentários a propósito do PEC III, da sua conjuntura e da sua «inevitabilidade», torna-se imperioso protestar contra uma censura praticada por omissão que apenas aceita, sem direito ao contraditório, pontos de vista distribuídos «entre os que concordam e os que concordam». Leia, assine e divulgue.

        Atualidade, Opinião

        Oportunidade perdida

        A debate

        Em Dezembro de 2009 deixei aqui um post semi-premonitório (embora já fosse muito fácil «adivinhar» aquilo que viria a acontecer) a propósito do Centenário da República e da grande feira – esse lugar onde tudo se vende e tudo se mostra, da boa fruta à banha-da-cobra – que iria ser montada à sua volta. Destaco um passo daquilo que então escrevi:

        «Seria (…) um favor à memória da República e dos republicanos, e também uma dádiva à experiência actual da cidadania, que, mais do que endeusar ou diabolizar nomes, destacar ou amaldiçoar decretos, distinguir ou esconjurar determinados momentos, se procurasse compreender o essencial e não apenas o acessório e o inócuo. (…) Só desta forma os ideais republicanos poderão retroceder por instantes à vida, e deixarão de inscrever-se apenas num tempo remoto, fantasmagórico, que apenas interessará verdadeiramente os historiadores e o seu público. Porque não aproveitar para re-discutir o regime, o laicismo, a religião, a família, a escola, o ensino, as tradições, a opinião pública, a intervenção das mulheres, e outros temas que, cem anos depois, permanecem ainda nas nossas expectativas e preocupações?»

        Sou historiador e cidadão singular, empenhado, em ambas e numa só pele, no destino comum. Interessa-me, portanto, olhar para os dois lados da moeda. Mas se o conhecimento da História da República e do republicanismo saiu globalmente reforçado das manobras do ano – como em tudo, com trabalhos excelentes e medíocres, interessantes e monótonos, inovadores e repetitivos, razoavelmente isentos (por vezes até de mais)  e assumidamente prosélitos (o que não é necessariamente mau) – o debate pela cidadania piorou, uma vez que a oportunidade de comemorar confrontando o presente e projectando futuros praticamente se perdeu. Muitas vezes em favor do cerimonial, do auto-elogio e de intervenções deslocadas do tempo em que vivemos e das falas que partilhamos. E tão precisados estávamos, tão precisados nos mantemos, de um debate profundo, substancial e ousado, que questione tendências e não se limite a ensaiar receitas. Que confronte regime e sistema e não se limite a olhar para eles com um encolher de ombros desiludido, nostálgico e conformista. Teria sido uma boa oportunidade para lançá-lo com algum impacto.

          Atualidade, História

          Romance negro

          roman noir
          Imagem: El País/Magnum/Peter Marlow

          A Babelia de ontem transporta consigo uma reportagem («El refugio de los lectores») sobre as transformações do mundo editorial espanhol em tempo de crise. Uma das tendências que se começa a destacar – a par da inevitável quebra nas vendas – é o regresso em força do roman noir. É verdade que este se encontra associado a edições baratas, em paperback, muitas vezes com direitos de autor já caducados e por isso mais acessíveis a editores e a leitores. Mas temo que possa também ser procurado como fonte de inspiração. Que, uma vez mais, a realidade se antecipe à ficção ou que esta lhe sirva de alimento. Que o efeito se propague e avance para oeste, entrando-nos em casa.

            Atualidade, Olhares

            Um Islão da esperança

            Hans Küng

            Na longa abordagem que faz das «religiões do livro», a reflexão teológica de Hans Küng propõe-nos uma política de moderação que pretende projectar as bases de um efectivo ecumenismo. Este não pode traduzir apenas um processo de abertura e de colaboração inter-religiosa, devendo ir bastante mais longe, até à real aproximação das várias formas de fé e à integração do próprio mundo secular. É esse o objectivo principal prosseguido na trilogia que compôs sobre o judaísmo (1991), o cristianismo (1994) e o islamismo (2004). Küng escreve sempre com uma agenda omnipresente – «não estou primariamente interessado no passado, mas sim no presente» – que determina todo o seu trabalho de pesquisa, interpretação e análise. No volume sobre o Islão, agora traduzido em Portugal, este objectivo surge até reforçado, dada a crescente importância da religião corânica na construção da contemporaneidade. O teólogo refere o modo como no mundo ocidental, logo após o fim da Guerra Fria, se procurou substituir a imagem do comunismo pela do islamismo como representação do inimigo, suscitando equívocos, exacerbando diferenças e justificando por essa via a corrida ao armamento e a criação de uma atmosfera favorável a mais e mais guerras. Neste contexto, o desenvolvimento de processos de compreensão e de laços de entendimento parece-lhe dramaticamente imprescindível para afastar o confronto de culturas, ou o «choque de civilizações», como cenário de um futuro próximo.

            Procura assim produzir, como nos propõe, «uma síntese de dimensões simultaneamente históricas e sistemáticas», visando obter uma perspectiva multidimensional do Islão em ordem a promover uma nova fase na relação entre civilizações, nações e religiões e uma mais rápida capacidade de resposta perante os rastilhos de incompreensão e violência que por todo o lado têm sido ateados. Fá-lo em mais de 800 páginas que constituem uma espécie de enciclopédia do Islão e das relações entre cristãos e muçulmanos no passado e no presente. Partindo de uma abordagem detalhada da construção histórica da imagem hostil e da imagem ideal da religião de Maomé – a partir de uma experiência anterior, enfatiza Küng, que é comum à das outras grandes religiões monoteístas –, analisa aquela que considera ser a sua imagem real, actual, para, finalmente, lançar um olhar sobre uma imagem da esperança capaz de afastar a hostilidade que com preocupação evoca no início do livro. Pelo meio vai detectando todas as referências e sinais que indiciem a existência de um «Islão crítico», transigente, capaz de renovar o seu próprio universo a partir de dentro e, também ele, de estender a mão às outras religiões. É este o Islão que considera «verdadeiro», contra o outro, «desfigurado, falseado e profanado» tanto pelos seus detractores como por muitos dos seus prosélitos. O paradoxo da obra reside no facto de Küng procurar essa imagem de esperança privilegiando menos a construção da identidade muçulmana, o seu trajecto solitário e intransigente, do que a procura de uma noção de abertura e de respeito pelo outro que lhe não é forçosamente imanente. Mas é também nesta dimensão contraditória, e por isso dialogante, que reside o interesse deste livro entusiasta com o qual se aprende a cada parágrafo.

            [Hans Küng, Islão. Passado, Presente e Futuro. Edições 70. Trad. de Lino Marques. 832 págs. Revisitação de um texto publicado na revista LER de Setembro de 2010.]

              Atualidade, História

              E la nave va

              E la nave va

              O PEC III é um pesado drama para a maioria dos portugueses. Por aquilo que tira directa ou indirectamente dos seus bolsos e das suas vidas, mas também pelas perspectivas de futuro que bloqueia. E não, não serão apenas os funcionários públicos a ver o filme a andar para trás, como podem pensar os mais distraídos: seremos quase todos nós, com pouquíssimas excepções. O pior de tudo, porém, é não se vislumbrar uma saída. Podemos dizer que não paga a crise quem a deveria pagar, que se atacou o elo mais fraco, que mais sofrerão as pessoas que não têm como fugir ao que lhes é exigido. Isso é verdade e com toda a certeza que um PS com S tinha o dever de, com audácia e imaginação, levar as coisas para um caminho mais equitativo, mais centrado nos culpados que nas vítimas. Mas quem está no poder, moldado no compromisso, não é já capaz de vislumbrar outras medidas que não as agora impostas. E a saída, para quem procure combater este plano com uma alternativa capaz, não pode ser a da «luta» pela luta, gaguejada num sonoro mantra por essa grande fatia da esquerda que sabe desmantelar e protestar mas não construir.

              O seu problema é que não consegue gerar uma alternativa. Apesar de ainda precisar de crescer politicamente, o BE tem-se esforçado por denunciar e encontrar soluções, dentro do que é possível integrar no âmbito de uma intervenção essencialmente reivindicativa. Mas é necessário muito mais: é preciso romper, mudar, alterar o paradigma dominante de desenvolvimento e de gestão, e não se vê quem o possa fazer de maneira programática. O PS apenas gere medrosamente a «política do possível», o PCP continua a ser um partido meramente reivindicativo, sem um modelo atraente e mobilizador de sociedade, os «alegristas» só jogam à defesa. O drama é este: não existe uma opção forte capaz de agregar sinergias para descobrir uma saída governativa que não seja a da capitulação perante o universo da especulação financeira. É este o desgraçado, o dramático, ponto a que chegámos. «A luta» possível tem pois, necessariamente, que procurar reduzir os danos mais gravosos sobre a vida dos trabalhadores. Mas precisa acima de tudo, urgentemente, desesperadamente, de se associar a uma alternativa credível e agregadora. Um projecto que traduza uma mudança de prioridades e de políticas. «A luta» e a rua podem até ser um caminho, podem até dar um empurrão, mas jamais serão a solução. É preciso mais: pensar, falar, unir e propor para  mobilizar as pessoas comuns. Uma tarefa que não pode ser para amanhã mas sim para já.

                Atualidade, Opinião

                Rir e não rir

                Funès e Bourvil

                Perdoem a confidência mas quero dizer-vos que adoro rir. E mais ainda de fazer rir os outros. «If I can get you to laugh with me, you like me better, which makes you more open to my ideas», afirmou numa entrevista o enorme John Cleese. Talvez por vezes não pareça, eu sei, porque também gosto muito da tristeza (bonjour, bonjour, minha amiga), mas acredito que o melhor riso é o que nos interrompe os dias, não o que faz de nós perpétuos sorridentes, animados e um tanto patetas. Gosto pois de umas gargalhadas, das boas (mesmo, mesmo, mesmo, mesmo boas) e principalmente daquelas que largamos sem lhes conhecer a razão. Rir-se, lá dizia o velho Bergson, é um acto de intuição, e que melhor prova desta ligação do que rir por rir, sem mais nem menos.

                Já o não fazia há muito, admito, mas aconteceu agora como vídeo do ministro suíço das finanças que circula à velocidade da luz pelo You Tube. Quase não percebi nada daquilo que o senhor dizia e os meus rudimentos de alemão não são suficientes para me esclarecer, mas a piada está toda aí: o próprio governante, soube-o entretanto, achou o discurso que algum acessor lhe havia colocado à frente tão non-sense que esqueceu o protocolo e não foi capaz de conter o riso. E riu, riu muito, descontroladamente, fazendo-nos rir com ele. Resultou comigo, como resultou com muitas outras pessoas. No caso em apreço, nem me interessa saber aquilo que o homem disse, nem quem é ou o que representa: aquele instante, tão raro nos espaços da política geralmente circunspecta e pardacenta, foi um momento especial, quase de catarse, que valeu por si e por isso foi extraordinário.

                Parece-me pois completamente obtusa e sem ponta de piada a versão que circula por aí, supostamente «legendada em português» por um blogue de direita, que põe na boca do senhor suíço um qualquer arrazoado depreciativo sobre o Portugal de hoje e os seus governantes, tentando mostrar como estamos tão baixo, tão baixo, tão baixo, tão baixo no respeito das nações que até um pobre burocrata suíço se ri de nós. Para além de não ter graça alguma e de agregar uma série de clichés em tom de autocomiseração sobre a nossa vida social e política, redunda numa intervenção claramente reaccionária, vagamente messiânica e trauliteira, insinuando com bastante clareza a necessidade de «acabar com a brincadeira» para que nos ganhem respeito. E não é por ser «contra o Sócrates» que perde essa qualidade. Acham que é para rir?

                  Apontamentos, Atualidade, Olhares

                  Por vezes nascem na rua

                  a rua

                  Encontro na edição em linha do Diário de Notícias um título em destaque: «Portugal vai ter de subir impostos e congelar salários». Para além da frase em si, daquilo que faz prever, do cenário negro para a maioria dos portugueses que ela desenha, incomoda o sentido impositivo da expressão «ter de». Ou talvez já não incomode tanto assim, uma vez que ela se tem banalizado. Os actos de gestão, as linhas de política, as metas que se configuram para a vida colectiva, não são consideradas escolhas, mas sim inevitabilidades. Uma opinião pública débil, tradicionalmente conformista ou indiferente – de certo modo um atavismo que carregamos, raramente interrompido –, cria as condições para que os «profissionais da eficácia» que gerem a política e a economia possam apresentar as suas propostas e os seus programas como vias de sentido único. Os sinais vêm de trás – veja-se como nas universidades o «Processo de Bolonha», assim com P maiúsculo, foi acelerado e imposto porque supostamente «tinha de» avançar rápido e não podia ser questionado, e veja-se como a generalidade dos seus responsáveis o aceitou ordeira e obedientemente – mas têm-se vindo a agravar. Muitas vezes, é preciso que se diga, com a complacência, com a desgraçada cumplicidade, dos meios de comunicação, desde o pequeno jornal regional à televisão do Estado. Proclama-se e faz-se ecoar a ideia peregrina de que tudo «tem de ser»: as coisas são como são, nada há a fazer, mudar é impossível. Manda quem pode e obedece quem deve. É o fado implacável, o destino que marca a hora. «É a vida». A intervenção da consciência crítica e a capacidade de pensar a alternativa, de relativizar as circunstâncias, de escolher com bravura a nova estrada a percorrer, ficam assim convenientemente adormecidas. Para sossego de quem mais ordena e prefere não ser contrariado, prefere que não lhe mexam nos papéis nem lhe mudem os chinelos do lugar habitual. Salva-nos apenas a consciência de que as viragens históricas são sempre feitas de impulsos e de imponderáveis. Mais cedo ou mais tarde elas formam-se e irrompem sem pedir licença. «Têm de» irromper. Não por estarem escritas nas estrelas ou obedecerem a uma narrativa que explica a sua certeza, mas porque se transformam numa necessidade. E por vezes nascem na rua, de maneira nómada e imprevisível.

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Há festa em Pyongyang

                    Vigilância

                    Kim Jong-Un, de 28 anos, filho mais novo de Kim Jong-Il, o «Querido Líder» e «Génio dos Génios», supremo chefe da República Popular Democrática da Coreia do Norte, e neto de Kim Il-Sung, o «Grande Líder» e «Presidente Eterno», fundador da dinastia, foi esta madrugada promovido a general. Apenas algumas horas antes da reunião extraordinária de dirigentes do partido que decorre hoje em Pyongyang e, ao que parece, irá consagrar a designação do sucessor oficial do actual presidente da Comissão Nacional de Defesa e secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coreia. A ideia é dar ao jovem Jong-Un um pouco mais de autoridade para que o unanimismo funcione sem mácula e a designação da sucessão mais facilmente possa ser apresentada como natural e indiscutível. Afinal, o que mais pode pesar num regime autoritário e despótico do que a ameaça dos galões militares, das botas ferradas e dos mísseis de longo alcance Taepodong? Para completar o aparato, a irmã do presidente, Kim Kyung-Hui, casada com Jang Song Taek, actual número dois do regime, foi também promovida a general. Aguarda-se por isso que na acanhada mas digna banca gerida pelos «camaradas e companheiros de luta» norte-coreanos no Espaço Internacional da próxima Festa do Avante! seja possível já adquirir estampas e pins da nova liderança, bem como algumas reflexões em papel de arroz do recém-promovido general. Os coleccionadores de kitsch retro pós-soviético e de preciosidades bibliográficas em português macarrónico aguardam ansiosamente. Já o povo norte-coreano, que tem de carregar diariamente com este triste espectáculo de nepotismo e tirania, é pouco provável que sinta um genuíno entusiasmo pelos acontecimentos em curso.

                      Atualidade, Democracia, Olhares

                      Teresa e Sakineh

                      pena de morte

                      A morte por injecção letal da americana Teresa Lewis e a prevista execução, por lapidação, da iraniana Sakineh Ashtiani, têm de facto algo em comum: ambas consagram a prática da pena de morte – e também a da tortura, física ou psicológica – como um expediente intolerável e bárbaro que já deveria ter desaparecido de vez da vida das sociedades. Mas não me parece bem a representação de uma completa similitude. Das duas mulheres, uma é culpada confessa do crime de morte pela qual é punida por um código penal cego e arcaico, e a outra é completamente inocente, «culpabilizada» apenas por um preceito cultural obscurantista e cruel que não pode aceitar-se. Se colocarmos estas duas vítimas da pena de morte numa posição de absoluta igualdade formal estaremos a aproximar sistemas diferentes e a legitimar atitudes como as tomadas pelos regimes cubano, chinês ou coreano, que equiparam a discordância política ou o dissídio cultural ao crime de delito comum, justificando assim as mais pesadas penas para quem escape à norma social imposta. Parece-me eticamente mais justo e politicamente mais eficaz não existirem nestes assuntos diferentes pesos e diferentes medidas. Condene-se pois, sem quaisquer dúvidas ou reservas, uma forma de punição que consagra a vingança e o desprezo pela vida humana. Vigore ela nos Estados Unidos da América, no Irão, ou seja lá onde for. Mas não se façam equivaler estes dois casos.

                        Atualidade, Democracia

                        Pimenta nessa língua

                        pimenta

                        Os pais não falavam de sexo com os seus filhos. «Naquele tempo», como se dizia nas parábolas, tudo era envolvido em véus e meias-tintas. Embora essa ausência acordasse em muitos deles uma irrefreável vontade de se chegarem à prateleira mais alta para surripiarem A Nossa Vida Sexual, de Fritz Kahn, escondida por detrás do volume do Novo Testamento e do Livro de Pantagruel da Dona Berta Rosa-Limpo. Aos estudantes do secundário estava também vedado o acesso normal a tudo do qual pudesse assomar uma sexualidade exterior à obscura vida de alcova consagrada pelo sacramento do matrimónio. O que inibia muitos de lerem nas aulas de português um certo Canto dos Lusíadas, forçando-os a fazê-lo fora delas ao mesmo tempo que iam imaginando coisas. E, claro, não se deviam, não se podiam, escrever ou pronunciar palavrões. «Pimenta nessa língua» era a ameaça mais suave para quem o fizesse. Mas qualquer criança da escola primária conhecia, ainda que de forma enviesada, mediada por algum colega mais vivaço e solícito para quem os termos já não tinham segredo algum, o significado vernáculo de caralho, cona ou broche.

                        Pois agora são o Diário de Notícias ou a RTP a indignar-se por um dicionário abreviado da língua portuguesa utilizado em escolas do ensino básico conter «palavrões» como os acima mencionados. No pressuposto de que jamais deveriam ser conhecidos por menores, independentemente destes os pronunciarem por hábito e com o maior à-vontade. Pessoalmente nunca gostei do abuso do palavrão, que sempre me soou a indigência vocabular ou à expressão de uma vontade infantil de chocar as audiências (vejam-se os tiques retóricos de certos bloggers mais agressivos). Uso-o muito moderadamente, em ocasiões raras e só por necessidade, embora quando me magoo na esquina de uma cadeira não me sirva propriamente de um modesto «fornique-se!». Mas o espanto projectado a partir da simples existência do tal dicionário e a sugestão implícita da sua proibição formal parecem-me resultado de um moralismo estúpido, anacrónico e, agora mais do que nunca, completamente inútil. Ele sim maldoso por apelar à ignorância. A propósito: o corrector ortográfico Flip, versão 8, que estou a utilizar neste momento, não sublinhou automaticamente a vermelho as palavras grossas que atrás escrevi. Será que se destina apenas a maiores de 18 anos?

                        Adenda: Não sei se não será relevante o facto de o dicionário ser da responsabilidade de uma editora do Porto. Diariamente confrontada com o meio envolvente.

                          Apontamentos, Atualidade, Olhares

                          Egas e Gilberto

                          Vila Nova
                          Ruínas da Casa de Vila Nova, quinta onde viveu D. Egas Moniz

                          Com um bocado de preguiça para ir agora à procura de livros e de fotocópias que li e guardei há uma data de anos, sirvo-me da Infopédia para num exercício acrobático de copy-paste me referir a um dos mitos que povoaram a infância de muitos compatriotas de outras eras, identificando um dos esteios da linhagem de heróis e de santos, ou de santos-heróis, que um dia fizeram com que Portugal se tornasse Portugal.

                          «Conta a lenda que, por altura do cerco a Guimarães, Egas Moniz, aio de D. Afonso Henriques, decidiu negociar a paz com o monarca castelhano Afonso VII. A troco da paz prometeu-lhe a vassalagem de D. Afonso Henriques e dos nobres que o apoiavam. Afonso VII aceitou a palavra de Egas Moniz. Um ano depois, D. Afonso Henriques quebrou o prometido e resolveu invadir a Galiza. Vestidos de condenados [e de baraço ao pescoço, prontos para a forca, rezam algumas vozes, RB], Egas Moniz e a sua família apresentaram-se na corte de D. Afonso VII, em Castela, pondo nas mãos do rei as suas vidas como penhor da promessa quebrada. O rei castelhano, diante da coragem e humildade de Egas Moniz, decidiu perdoar-lhe. Ao entregar-se, Egas Moniz ressalvava a sua honra e também a de Afonso Henriques, assegurando através da sua astúcia a futura independência de Portugal.»

                          Acrescento alguns dados que me deu menos trabalho obter: Egas, filho de D. Munho (ou Muninho) Ermiges de Riba Douro e de D. Ouroana, pertencia a um das trinta famílias que originaram a nobreza de Portugal. Combateu os mouros entre 1106 e 1111, governou a região de Lamego a partir de 1113 e durante cinco ou seis anos. Foi por essa altura que o Conde D. Henrique lhe entregou como pupilo o irrequieto filho, Afonso Henriques, que D. Egas passou a acompanhar. O episódio lendário encontra-se associado ao termo do cerco de Guimarães pelo exército de Leão, ocorrido em 1127 (quando Afonso VII ainda era somente rei da Galiza e Leão; em breve sê-lo-ia também de Castela, juntando mais tarde Navarra e Aragão). Em 1136 Moniz tornar-se-ia figura fulcral da corte do nosso primeiro rei, morrendo dez anos depois, coberto de honras, propriedades e divinas bênçãos. A lenda, essa veio muito mais tarde, quando alguns dos seus descendentes requereram da monarquia algumas prebendas devidas pelo suposto testemunho de honradez que o seu avoengo ofertara.

                          Julgo não ser de todo inopinada a associação deste episódio à ida do burguês licenciado D. Gilberto Madaíl, nascido no Congo mas português de quatro costados, e do jurisconsulto D. João Rodrigues, homens-bons do governo da Federação Portuguesa de Futebol, a Madrid, a fim de prestarem vassalagem ao Condestável D. José Mourinho, solicitando os seus préstimos para salvar a pátria futebolística da miséria e do opróbrio. Este recebeu-os com primor, brindando-os com uma lauta refeição, na presença de damas, moços da escuderia e de alguns menestréis, e tudo fez para que os enviados portugueses pudessem chegar à fala com o seu senhor, D. Florentino Pérez, alcaide-mor do Real Madrid, a fim de selar o desejado pacto. Infelizmente tinha D. Florentino a agenda muito preenchida e não os pôde receber, pelo que regressaram os gentis-homens portugueses aos seus territórios sem lograrem cumprir o preito de sujeição ao qual tinham sido cometidos. Ficaram assim impedidos por ora de acautelar os destinos do reino e de por tal via retomarem a lendária e exemplar gesta de D. Egas, que Deus conserve em sua guarda pelos séculos dos séculos.

                          Adenda: Raramente aqui trato de futebol, mas neste caso a preocupação com os destinos da pátria falou mais alto.

                            Apontamentos, Atualidade, Devaneios

                            Malas aviadas

                            [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=INkLVwtIr_I[/youtube]

                            Nunca estive em Cuba e não sei se algum dia por lá poderei passear de sidecar, como Ry Cooder passeou sobre o asfalto estaladiço que debrua o Malecón. Durante um certo tempo, enquanto a ilha me serviu de cenário para projectar um outro mundo possível, tive alguma pena de não conhecer Havana. Depois, com os indícios que foram chegando – os sinais de fumo lançados pelos primeiros dissidentes, os relatos das conversas com pessoas que tinham visitado a ilha, as declarações transparentes dos responsáveis pelo regime – senti-me incapaz de por ali me fazer passear de chinelos e Kodak ao tiracolo. Não, não há sol, não há rumba, não há tabaco forte ou mulatas prestáveis, tudo coisas boas para o meu gosto simples, que me façam desviar os olhos da opressão. Jamais me sentiria lavado, sem culpa, a passear por uma prisão a céu aberto como turista remediado ou convidado de um congresso. Nada tenho contra as pessoas que por ali fizeram já o seu tour caribenho, mas conservo uma consciência politica demasiado empenhada para o fazer sem sentir que traía uns quantos princípios (senti o mesmo perto de Marraquexe, quando assisti contrariado a uma encenação triste da alegria berbere). No entanto, talvez agora o panorama mude um pouco: com o despedimento forçado de um milhão de funcionários públicos cubanos que rapidamente terão de encontrar algures uma qualquer forma de sobrevivência, talvez a vida cubana se possa ver forçada a dar um salto análogo àquele que ocorreu, nos anos setenta e oitenta, em certos países do leste europeu. Crescerá então, inevitavelmente, um mundo alternativo, underground e miserável, com o qual poderei conviver, ainda que dolorosamente. Nessa altura talvez possa desembarcar no aeroporto internacional José Marti. Com alguma sorte, verei uns sujeitos de óculos escuros, barbas brancas e peúgas verde-oliva um bocado puídas apanhando um avião em sentido contrário.

                              Atualidade, Democracia, Devaneios

                              O outono do patriarca

                              fidelofilia

                              Não me sinto radiante com as recentes atitudes e declarações de Fidel Castro, nem tenho expectativa alguma em relação ao seu reconhecimento de «erros» pelos quais ao longo de décadas foi o primeiro responsável. E muito menos por ter agora declarado não ser exemplo a seguir, «porque nem na ilha funciona», o modelo de revolução pela qual se bateu e que ao longo de mais de quarenta anos talhou à sua imagem. Na verdade, o regime cubano pouco liga a tais fabulações e não dá o menor sinal de alterar as suas políticas no campo dos princípios, das liberdades e das políticas. Aquilo a que estamos a assistir é apenas a um processo visível de «diminuição cognitiva», erradamente tomado como acto de contrição. Um Castro assim dá pena. Deveria ter sido poupado no seu outono a este espectáculo triste e degradante. Haja alguém, entre os seus muitos amigos, que faça alguma coisa.

                                Apontamentos, Atualidade

                                Efeitos e causas

                                fandango

                                De cada vez que os grupos que contestam a existência legal das touradas dão sinal de si, os seus opositores, de peito feito e jaqueta assertoada, ou unhas afiadas e mantilha a condizer, entram a matar. Está-lhes na índole e por isso se compreende o tique. Aquilo que já não se aceita é que a comunicação social que lhes dá eco não interpele essa evidência: contra um sector de opinião que não gosta de braveza e se limita a emitir um juízo, procurando apoios para os seus pontos de vista, saem para a rua aos berros, farpas na mão, acusando os outros, os anti-taurinos, de «talibãs», de «fundamentalistas», talvez mesmo de bolcheviques encapotados (que são de longe os piores, como todo o mundo sabe). E ameaçando, velada ou explicitamente, irem-lhes às ventas se a ocasião se proporcionar. Um caso óbvio de não ver o argueiro em olho próprio.

                                O último acto desta comédia foi da iniciativa do guionista e autarca ribatejano F. Moita Flores, que nos promete, contra a petição legislativa que vai propor à Assembleia da República medidas contra as corridas, e ao estilo a minha é maior do que a tua, «reunir 100.000 assinaturas em defesa da tourada». Na sua argumentação «progressista» – pois considera a tourada um factor castiço de «progresso» económico, societário, cultural e até gastronómico – refere a dado momento que os militantes anti-tourada, que tanto o estorvam e tanto o enervam, «fazem abaixo-assinados, procurando destruir sem compreender, protestar quando a verdadeira essência do seu protesto são as suas próprias consciências». Acaba no entanto por pôr o dedo na própria ferida, carregando até doer. De facto, trata-se aqui principalmente de uma questão de consciência. O resto, da tortura bárbara de animais à civilidade marialva, são efeitos desta, não causas.

                                  Apontamentos, Atualidade, Opinião

                                  Quadro negro

                                  quadro negro

                                  Em Havana, Yoani Sánchez foi matricular o seu filho numa escola do ensino pré-universitário. Depois de ler um aviso ali afixado num quadro negro ficou na dúvida sobre se Teo iria entrar numa escola pública ou no serviço militar.

                                  Acerca del uniforme: Las hembras no usarán más de un par de aretes. Las camisas y blusas se usarán por dentro. No se les harán pinzas, recortes para ajustar al cuerpo o que queden por encima de la saya o pantalón. No sustraer los bolsillos. Las sayas deberán tener  un largo de 4 centímetros por encima de  las rótulas de las rodillas. No se permitirán sayas pélvicas, decoloradas o con marcas de planchado. Los pantalones deberán ajustarse a la altura de los zapatos. No se permiten pantalones pélvicos. Las hembras no usarán maquillaje. No se permiten pulsos, collares, cadenas ni anillos. Los atributos religiosos no podrán estar visibles. Los zapatos serán cerrados y las medias blancas y largas. No se portarán MP3, MP4, celulares. Los varones no usarán aretes, presillas ni piercing. Los cintos deberán ser sencillos y sin hebillas excéntricas, grandes o a la moda, estos deberán ser de color negro o carmelita.

                                  Acerca del cabello: Los pelados, peinados y afeitados deben ser los correctos, eliminando toda excentricidad y modismos ajenos al  uso del uniforme. No se permite en los varones: el pelo largo, pintado, pinchos largos, ni figuras en el cabello. Las hembras no usarán aretes colgantes. Las prendas a usar en el cabello deben ser: azul, blancas o negras. Estas tendrán un tamaño acorde. El cabello de los varones no debe exceder los 4 centímetros.

                                  Um obrigado pela dica à Joana Lopes.

                                    Atualidade, Democracia, Devaneios