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Um combate pelo real

combate

A proposta requer coragem: «Terras de ninguém, espaços de anonimato, interioridade comum… eis as armas de uma política nocturna cujo objectivo é sempre o mesmo: atacar a realidade. Atacar a realidade para poder respirar.» É pois a realidade o princípio e o destino desta colectânea de ensaios de Santiago López-Petit. Subjugada a um capitalismo sem freios, que hoje nada deixa de fora, que tudo envolve, é nela que se encontra a chave para a compreensão de um mundo opressivo que urge superar. Quatro conceitos primordiais guiam o trabalho do autor. O primeiro reconhece o «Estado-guerra»: após o 11 de Setembro, a política global passou a ser determinada pelo combate, pela via do bombardeamento ou da «legislação furtiva», contra um inimigo que o Estado escolheu. O segundo conceito refere um «fascismo pós-moderno» construído sobre o reconhecimento público da diferença para melhor poder neutralizá-la. O terceiro fala do poder «como poder terapêutico», assente num contrato que apenas nos permite viver a vida que nos é concedida. O quarto conceito coloca-nos perante uma nova questão social: o «mal-estar» que esta situação intensamente tirânica suscita, forçando «um gesto radical de rejeição» que não é já «o gesto moderno que depois da destruição anunciava e preparava um novo começo». Este livro de filosofia política invoca pois um dever: mobilizar, a partir do próprio real e não contra ele, o combate diário contra a opressão instalada e o capitalismo. [Santiago López-Petit, A Mobilização Global. Seguido de O Estado-Guerra e outros textos. Deriva. Trad. e comentários de Rui Pereira. 248 págs. Nota publicada na LER.]

    Atualidade, Olhares

    Sem culpa mas com desculpa

    Lombardi

    De acordo com o director da Sala de Imprensa da Santa Sé e porta-voz do Vaticano, o teólogo, presbítero e padre jesuíta Federico Lombardi, a Igreja católica é mais vítima do que culpada da «praga dos abusos sexuais», a qual avisadamente vê como «uma das pragas do mundo actual». Os motivos do flagelo parecem-lhe óbvios: a presente «crise da família», a desordem trazida pelo turismo e o comércio sexual facilitado «pela Internet e pelas novas formas de comunicação.» Eis de novo a reacção típica da hierarquia da Igreja católica, que a propósito do tema confunde causas e instrumentos. Insiste em ignorar, em termos públicos, uma ligação mais do que óbvia entre a autoridade da função sacerdotal e da própria Igreja junto de numerosas pessoas e comunidades, a intensa repressão sexual que esta insiste em pregar e impor como norma de conduta, e os abusos recorrentes, que na esmagadora maioria dos casos permanecerão aliás no mais completo silêncio, devido ao pudor ou ao receio dos envolvidos. Na Irlanda, para não ir muito longe, conhecem-se números aterradores sobre a proliferação deste tipo de situações, ocorrida de forma transversal e vertical no conjunto da instituição e das suas ramificações, mas o volume de denúncias públicas é ainda bastante moderado. Para não falarmos daquilo que inevitavelmente aconteceu nos mais variados recantos do mapa ao longo de séculos de coacções e silêncios. Nessa longa era de paz e de sossego sem Internet ou outras formas livres de comunicação que perturbassem, com conversas bastante inoportunas e indecorosas sugestões, o casto descanso, por vezes aromatizado com suor e sémen, das celas, das camaratas e das sacristias.

      Atualidade, Democracia, Olhares

      Boa, Jon, meu

      Jon Stewart

      De vez em quando escrevo três ou quatro linhas sobre uma coisa que deveria ser óbvia: a América não é o Inferno na Terra (e claro que também não é o Céu) e o anti-americanismo primário é tão absurdo e tão idiota quanto o seu contrário, à maneira dos meninos e das meninas do Tea Party. O pequenino e o enorme caminham por ali lado a lado, como em toda a parte, mesmo no Inferno e no Céu. Existe o ódio cego e o crime à escala pública e privada, mas também a generosidade, o movimento e sempre a esperança. Foi esta também que alimentei um pouco mais ao saber hoje que numa votação realizada através da Internet pelo portal AskMen, na qual participaram 500 mil pessoas, Jon Stewart, o judeu agnóstico Leibowitz que é o implacável apresentador de The Daily Show, foi considerado o homem mais influente de 2010 e aquele «no qual os americanos mais confiam». À frente de figurões como Bill Gates, Mark Zuckerberg (o tipo que fundou o Facebook) e Steve Jobs. Barak Obama já não se encontra nos lugares da frente.

        Apontamentos, Atualidade

        Não há c… que aguente

        o jornal

        Está a tornar-se insuportável a convivência com tanta página de jornal, tanto tempo radiofónico nas «manhãs da informação», tantas horas dos noticiários e debates televisivos a propósito do mesmo assunto. A situação económica do país, a aprovação do Orçamento para 2011, as consequências previsíveis do PECIII e das suas sequelas, inquietam qualquer pessoa que se preocupe com os destinos colectivos e precise de gerir o seu dinheiro. Ou pelo menos de pagar a factura da mercearia. Só um tonto pode fazer de conta que não é consigo. Mas o excesso de informação transformou-se em ruído e está a produzir efeitos muito negativos. O fastio, o desinteresse, mesmo a repulsa ou a pré-depressão, acompanham frases que ouvimos por todo o lado: «já não se aguenta», «não suporto mais», «estou farto disto». Os gestores dos meios de informação deveriam acordar e preocupar-se um pouco com o facto de as pessoas mudarem ainda mais rapidamente do que antes de canal, desligarem o rádio com uma pancada seca, nem sequer olharem para os títulos da imprensa diária. Desde logo por causa dos seus imprescindíveis anunciantes, visivelmente a perderem audiência. Mas, muito mais importante do que isso, porque prestam um péssimo serviço público ao obrigarem os cidadãos a desinteressarem-se, por razões de sanidade mental, de temas que condicionarão obrigatoriamente as suas vidas e sobre os quais deveriam ter uma informação clara, objectiva e plural.

          Apontamentos, Atualidade

          A lista de Lopes

          A parede

          No filme A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, a frase é de Bruno Hempf, o ficcionado ministro da Cultura da RDA, e destina-se a servir o elogio público de Georg Dreyman, um escritor que ele crê, apesar das suspeitas da Stasi, ser fiel ao regime: «Como disse um grande filósofo marxista cujo nome neste momento me escapa, os escritores são os engenheiros das almas.» O «esquecimento» pretendia ser irónico, uma vez que essa frase foi repetidamente atribuída a José Estaline, que aliás a teria aplicado para se referir aos intelectuais no seu conjunto. Nela, a perversão encontra-se num entendimento puramente instrumental do papel do escritor ou do artista, apenas toleráveis enquanto intelectuais se aplicados sem hesitações numa «causa do socialismo» orientada por quem se arrogava dirigi-la num sentido unívoco e historicamente irrevogável. Materializado na União Soviética de forma crescentemente inflexível a partir de Junho de 1925, quando se adoptou uma resolução «Sobre a política do Partido no domínio da literatura artística» assinada por Nikolai Bukharine, o princípio passou posteriormente a ser aplicado na generalidade dos Estados do chamado «socialismo real». Aí determinando privilégios e exclusões, o direito à voz ou a obrigação do silêncio, por vezes a linha entre a vida e a morte.

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            Atualidade, Olhares, Opinião

            O Islão na palma da mão

            Shirin Ebadi

            Não é verdade que um dicionário seja apenas e só uma obra de referência, daquelas que não se podem ler de seguida e precisam de uma dúvida prévia para que as páginas se abram. Conheço uns quantos que li de cabo a rabo e tenho alguns, relativamente recentes, ali a olharem para mim. Por exemplo, o Dicionário de Mitos (traduzido), de Carlos García Gual, ou o Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Outro será o Novo Dicionário do Islão. Palavras, Figuras e Histórias, da jornalista Margarida Santos Lopes, que retoma e desenvolve em 450 páginas uma edição anterior, saindo agora com a chancela da Casa das Letras. Num tempo em que falar ou escrever de ou sobre o Islão – muitas vezes de cor – se tornaram práticas banais e bastante frívolas, é sempre bom aprender aquilo que se não sabe, desfazer dúvidas, esclarecer mal-entendidos, estabelecer ligações impensadas, para não dizermos tolices ou pegarmos descuidadamente o fogo a explosivos.

            Sabe, por exemplo, quem foram Habil e Qabil? Pois foram os filhos putativos de Adão e Eva, mencionados no Corão quando é contada a história do primeiro homicídio. A mesmíssima história que a Bíblia «semita» considerou ter envolvido Caim, o agricultor sedentário, e Abel, o nómada assassino. E tinha conhecimento de que Aflaton foi durante muitos anos ensinado nas escolas corânicas (trata-se, ora vejam lá, do nosso velho conhecido Platão). E que o Corão tem apenas 90 versículos sobre questões legais, sendo a maioria das determinações da shariah incorporada posteriormente por «teólogos muçulmanos». E que na segunda metade do século XIX o escritor egípcio Qusim Amin publicou dois best-sellers, A Libertação das Mulheres e A Nova Mulher, nos quais defendia a abolição do véu? E que Shirin Ebadi, a iraniana que foi a primeira muçulmana a receber o Nobel da Paz, viu o valor do prémio ser retirado da sua conta bancária pelas autoridades de Teerão? Aprende-se muito, de facto, como este Novo Dicionário. Editado com um prefácio de Jorge Sampaio, que não se esquece de o qualificar, com propriedade, como instrumento «em prol do reforço das nossas democracias multiculturais e de uma cultura de tolerância e paz».

              Atualidade, Democracia, História

              Sakharov-2010

              Guillermo

              Pela terceira vez em apenas oito anos, o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento foi para alguém que nasceu em Cuba. Não vou fazer aqui de ingénuo e dizer que a atribuição do galardão não depende de uma agenda política. Claro que depende. Mas isso não será em si um mal, sobretudo quando as razões invocadas para as escolhas não se prendem com as convicções pessoais dos premiados mas sim com a sua luta pelo direito de todos a poderem proclamá-las, sejam elas quais forem. Como anuncia o site do Prémio, este recompensa, tão-somente, «personalidades excepcionais que lutam contra a intolerância, o fanatismo e a opressão».

              Em 2002 foi Oswaldo Payá Sardiñas, fundador e organizador do Projecto Varela, destinado a reunir, baseado na própria constituição cubana, as assinaturas necessárias para sugerir ao governo algumas mudanças legislativas. Em 2005 foram as Damas de Blanco, o grupo de mulheres que luta diariamente pela libertação dos seus familiares presos por motivos estritamente políticos. Agora foi a vez de Guillermo Fariñas, o activista, psicólogo e jornalista independente que se tornou um dos mais conhecidos dissidentes cubanos, quando, com apenas 23 anos, iniciou greves de fome para protestar contra os excessos do sistema monopartidário. Aquilo que impressiona nestes casos é o facto de nenhuma das figuras premiadas se constituírem como opositores declarados do regime, nenhuma delas exigir o fim do «socialismo» cubano, limitando-se a pedir que ninguém seja punido por proclamar aquilo que pensa.

              Tão simples quanto isto. E, no entanto, tão difícil de aceitar por um regime violento mas inseguro, que só pode ter medo do seu próprio povo para o manter assim amordaçado. Arruinando por isso os vestígios de prestígio e de simpatia – no passado recolhidos nos mais diversos quadrantes de opinião dispersos pelo planeta, e não associados apenas, como hoje, a grupos bem identificados de indefectíveis – vindos ainda daquele tempo em que representava um sinal de esperança na construção de uma ordem mais justa, mais solidária e mais democrática. Outro tempo.

                Atualidade, Democracia, Opinião

                Pensem nisto por um minuto

                rage

                Este é um post-catástrofe. Números divulgados apontam para que cerca de 20 por cento da população portuguesa sofra de uma doença «que se caracteriza por tristeza mais marcada ou prolongada, perda de interesse por actividades habitualmente sentidas como agradáveis e perda de energia ou cansaço fácil». Isto é, de depressão. Estes dados reportam-se a estimativas que por sua vez se fundam nos casos já diagnosticados. Na realidade, os números tenderão a subir quando puderem ser consideradas as situações de fronteira, que colocam quem com elas convive numa posição de grande vulnerabilidade, ou os casos não declarados, mascarados através de atitudes erráticas que resistem à melancolia recorrendo a uma «fuga para a frente». Mas trata-se aqui de um vigor à beira das lágrimas, perto de se transformar, ao primeiro pretexto, no seu contrário. Ou de testar os seus próprios limites.

                Em Janeiro, o mais tardar em Fevereiro, quando o bolo-rei estiver comido e já não houver bacalhau para meter no microondas, quando os cintos começarem verdadeiramente a apertar, o panorama será agravado, concorrendo depressão e recessão na propagação da infelicidade. Desta nascerá o desespero e a prostração, mas também, acreditem, a ira. Diminuirá então a produtividade e crescerá o desprezo por uma ordem injusta, propagando o anseio de uma mudança radical. Cidadãos comuns transformar-se-ão em hooligans ou em maximalistas para poderem sobreviver. E não será apenas à noite, a coberto da escuridão. Se virem bem os diligentes responsáveis pelas agências de rating, bem como os agentes económicos e os dirigentes políticos que se lhes submetem sem resistência, despeito e desordem são factores pouco favoráveis ao crescimento económico e à paz social que supostamente o deverá sustentar, e dos quais tanto cuidam. Não é preciso ser-se adivinho ou profeta para perceber isto. Não sei se dentro deste caldo de cultura crescerá a semente da violência se o ovo da serpente, ou se ambos, mas nada de bom se anuncia. Pensem nisto por um minuto.

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                  Palavras rápidas

                  As palavras e a crise

                  Quando tive a primeira gramática – se não me engano a de Pires de Castro, que já vinha do final dos anos trinta e herdei de um tio – fixei-me, como qualquer criança normal que prefere o misterioso e o inesperado, nas interjeições. Essas palavras-relâmpago, indeclináveis, que nunca mudam mas revelam sempre fortes estados emocionais e sensações súbitas. Que empurram sem nos deixarem pensar, que incentivam ou assustam dispensando frases que demoram demasiado tempo a pronunciar. Com algumas foram casos de amor à primeira vista: Apre! Irra! Arre! Ufa! Eia! Sus! Mesmo o Ai! e o Ui! pareciam bombons para quem achava ainda que a dor durava só um segundo. Existiam também aquelas que o padre confessor traduzia numa penitência infernal de dez salvé-rainhas, trinta pai-nossos e cinquenta avé-marias, como Porra! Merda! Chiça! e outras que os vocabulários impressos omitiam. A vida vivida foi trazendo mais, menos vulgares, imperativas, como Oxalá! Coragem! Força! Avante! Tchau! Uau! Já o assanhadiço Capitão Haddock ensinou-me as melhores: Raios! Coriscos! Ectoplasma! Equinoderme! Cercopiteco! Lembrei-me de todas elas por estes dias ao sentir na pele os pesados açoites do PECIII, ao ouvir as palavras dos economistas de uma nota só que pedem mais e mais sangue, ao ver os noticiários dos canais de televisão que se comprazem em deixar-nos mais deprimidos a cada minuto. Credo! Chega! Socorro! Rua! Ah! Aaaaaahhhhhh!

                    Atualidade, Devaneios, Etc.

                    De Zolkiew a Cabul

                    Cabul

                    Bem pior do que o dualismo em filosofia, que apenas toca quem a ele mais ou menos racionalmente adere, é o dualismo em matéria de política, uma vez que afecta, ou pode vir a afectar, comunidades inteiras, países completos ou regiões tomadas de uma ponta até à outra. Traçar linhas rectas a meio do mapa da realidade é possível, ou pode ser útil, em situações extremas e num tempo curto – no momento da batalha, por exemplo, é muito difícil tentar convencer as partes de que o mundo é belo e não vale uma salva de morteiros –, mas jamais será, na maioria dos casos e no longo prazo, uma solução boa, justa ou inteligente.

                    Uma vez em Zolkiew

                    Clara Kramer era uma menina judia que vivia com a família na cidade polaca de Zolkiew, situada hoje no distrito ucraniano de Lviv, ou Lvov. Como milhões de polacos, ela e a família sentiram na pele o impacto do Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, do qual resultou, quase de imediato, a ocupação da cidade pelos soviéticos. No seu livro de memórias (*) recorda as humilhações impostas aos polacos e a rápida «sovietização» da região, logo acompanhada da prisão e da deportação daqueles considerados indesejáveis pelas novas autoridades. Desde as minorias étnicas e religiosas às pessoas com algum destaque social que não fossem declaradamente comunistas. Só que em 21 de Julho de 1942 os nazis conquistaram a cidade e desencadearam o massacre e a deportação sistemática dos milhares de judeus que tinham continuado, apesar de tudo, a habitar a cidade. Quase todos irão perecer mas a família de Clara conseguiu esconder-se num bunker que escavara à mão sob a casa do Senhor Beck, um alemão, declaradamente anti-semita, que afinal os irá proteger permitindo a sua sobrevivência. A partir do bunker seguirão o horror que se espalhou então pela cidade, lutando todos os dias para lhe escapar. Em 24 de Julho de 1944, a fuga das tropas de Hitler e a entrada na cidade dos soldados do Exército Vermelho, do qual existia antes uma tão má experiência, foi naquela situação olhada com imensa alegria e como uma libertação salvadora. Clara podia agora «olhar para as nuvens que flutuavam no céu azul, uma visão que julgara nunca mais voltar a ter». Afinal, existia um mal ainda maior, mais cruel e definitivo, do que aquele que, um dia, julgara ser o pior dos males.

                    Cabul now!

                    Podemos agora ensaiar uma comparação. A presença americana no Afeganistão contém em si um grande número de males para a esmagadora maioria da população do país. Não se trata apenas do uso regular da violência brutal sobre sectores da população ou da incompreensão das especificidades do país, traduzida, ela também, em atitudes típicas de um exército de ocupação. Trata-se igualmente do seu apoio a um regime intensamente corrupto, cujo objectivo mais claro é conservar o poder pelo poder, sem um programa de desenvolvimento real do país, desinteressado da vida real das populações, dos seus direitos mais elementares, e transigindo frequentemente com a repressão sistemática das pessoas comuns, sobretudo das mulheres. É natural, por isso, que exista descontentamento e, mais do que isso, que se desenvolva a ideia de mudança como um imperativo. Só que, neste preciso momento, a defesa pura e simples da retirada imediata das tropas americanas tem como corolário a automática tomada do poder pelos talibãs. Que já se encontram de novo, como é sabido, às portas das principais cidades. Será a opressão americana, associada ao poder discricionário, tantas vezes injusto, da Aliança do Norte, rigorosamente equivalente à tirania brutal e desapiedada do poder talibã? E será aceitável que o necessário fim da guerra tenha como moeda de troca a autoridade assassina dos papagueadores de versículos? Não é possível que para alguém com sentido da realidade e de justiça – e só por causa de um ódio visceral ao inimigo americano, ou só por causa dos direitos dos povos «a assumirem o seu próprio destino» – se torne aceitável o retorno imediato à mais profunda barbárie, a um poder instituído pela lei da chibata e da forca. Barak Obama não é o mullah Omar.

                    Nestes assuntos, manter uma visão estritamente dual, esquecendo que até na gestão do mal existe uma gradação, pode tornar-se uma forma de cegueira e de cumplicidade com o crime. Aliás, aplicando esta perspectiva a momentos decisivos da história contemporânea, episódios indispensáveis para a vida dos povos e o triunfo sobre a opressão teriam sido impossíveis. Como aconteceu, por exemplo, com o desembarque dos Aliados na Normandia e o bombardeamento sistemático das cidades alemãs controladas ainda pela Wehrmacht e pelos destacamentos das SS. Para não ir mais longe.

                    (*) Clara Kramer (2010). Clara. A menina que sobreviveu ao Holocausto. Alfragide: Asa. Trad. de Elsa T. S. Vieira. 336 págs.

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      O fim do eterno descanso

                      Cemitério

                      Segundo uma notícia que saiu hoje no Público, em breve as agências funerárias poderão gerir «actividades conexas» àquelas que tradicionalmente exerciam, tais como a «gestão, exploração e conservação dos cemitérios». Uma actividade que até agora era entendida como um serviço eminentemente público, dirigida em regra pela administração local, passa a ter «permissão de gestão e de exploração privada». Sabendo nós que – tal como acontece com as casas de pasto, os bares de alterne e as farmácias – este é um ramo no qual não existe quebra de procura, e onde a política de preços é bastante livre e nada meiga, é fácil calcular o conjunto de interesses que a sua entrega à iniciativa privada irá despertar. Um passo mais no recuo do Estado social nas suas competências, mas agora numa original dimensão post-mortem. Podemos desde já antever planos de crédito que unirão gerações inteiras de profissionais da morte e de simples cidadãos endividados até à quinta geração de descendentes. Sempre com a negra possibilidade do despejo a pairar-lhes sobre a sepultura. Sem descanso até à eternidade.

                        Atualidade, Olhares

                        Entretanto na China

                        Na mina de carvão de Jin Hua Gong

                        O drama dos 33 trabalhadores da mina de ouro e cobre de San José, no deserto de Atacama, não pode esgotar-se no seu final feliz. Porque se encontra ligado às sempre difíceis condições de trabalho de uma das mais antigas ocupações operárias. Uma profissão cravada de enormes riscos, tremendamente insalubre, com duras cadências e geralmente muito mal paga, mas por isso mesmo marcada por um companheirismo profundo entre a generalidade dos que nela passam a maior parte da vida e dela fazem o seu ganha-pão. Aliás, o movimento operário sempre teve entre os mineiros uma das suas alas mais combativas, radicais e solidárias e não foi por acaso que uma das mais tocantes imagens que ontem passaram em algumas televisões foi a de dois mineiros australianos, homens maduros que já viveram um drama análogo ao dos chilenos e, durante um directo, foram incapazes de conter os soluços de comoção diante das experiências vividas pelos seus camaradas do outro lado do Pacífico.

                        Vale a pena, por isso, lembrar neste momento de alegria a situação catastrófica dos mineiros chineses, com índices de sinistralidade e de mortalidade – associados a condições de trabalho e salariais miseráveis – verdadeiramente inconcebíveis. Estudos recentes apontam para cerca de 1.000 (mil, não é engano) mortos por ano, correspondendo a 80% do número de fatalidades ocorridas em todo o mundo quando a produção mineira da China é apenas de 35% da global. Em 2006, e de acordo com os números oficiais, o número de mortos foi mesmo de 7.500. Um acidente praticamente em cada 7 dias, a maior parte sem referência nos meios de comunicação e nenhum deles com um décimo da atenção mediática dada ao acidente de San José. Será de recordar estes dados aos responsáveis do partido político português que calam os crimes diários praticados na China contra os trabalhadores mas se preocupam tanto com a atribuição do Nobel da Paz ao activista dos direitos humanos Liu Xiaobo. É que uma sua posição de denúncia, a ser feita na devida altura e sem rodeios, seria por certo um gesto internacionalista capaz de «contribuir para a afirmação dos valores da paz, da solidariedade e da amizade entre os povos». Passe a expressão que de há muito trataram de tornar inócua.

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                          Punhos de aço

                          querido camarada

                          Outros companheiros desta guerra de trincheiras por uma esquerda democrática e de causas coerente com a defesa essencial dos direitos dos trabalhadores e a das liberdades individuais, já falaram bastante nos seus blogues dos silêncios e das cumplicidades da direcção do PCP diante daquilo que está a acontecer, aos olhos do mundo inteiro, nos territórios controlados «com punhos de aço» – como tanto gostam de dizer os «queridos camaradas» dirigentes dos «partidos-irmãos» –  pelas ditaduras chinesa e norte-coreana. Para memória futura, aqui fica mais um modestíssimo contributo da referida agremiação para uma espécie de folhetim universal da infâmia.

                            Apontamentos, Atualidade

                            Mais vento de Leste

                            Liu Xiaobo

                            São escassas mas vão chegando. Outra boa notícia para a luta pela defesa dos direitos humanos na China: depois da concessão do Prémio Sakharov de 2008 a Hu Jia, foi agora a vez de o Prémio Nobel da Paz de 2010 ser atribuído ao activista e dissidente Liu Xiaobo. Liu, um dos principais dirigentes da luta estudantil que em 1989 conduziu aos acontecimentos de Tienanmen, encontra-se a cumprir uma pena de onze anos de prisão por ter sido um dos autores da Carta 08, um manifesto a favor da liberdade de expressão e de eleições multipartidárias. Para os impenitentes autocratas de Pequim a entrega do prémio a Xiaobo é «uma obscenidade». Venham mais.

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                              Companheiro Mario

                              Mario Vargas Llosa

                              Comecei a ler Mario Vargas Llosa sensivelmente pela mesma época em que comecei a ler Gabriel Garcia Márquez. No entanto, os nossos primeiros encontros não foram fáceis. A Cidade e os Cães e a Conversa na Catedral, com os quais me estreei, foram de uma leitura bem mais sofrida do que a do agora ultra-canónico Cem Anos de Solidão, de Márquez. O primeiro dos romances, para ser muito sincero, por causa de um homoerotismo latente que impressionava qualquer rapaz provinciano cheio de preconceitos como eu era, o segundo pelo grau de elaboração formal para a qual não estava preparado. Llosa e Márquez eram amigos nessa época e a vida e a ética política foram-nos depois distanciando, mas para mim a separação foi sendo construída, a partir dali, de uma outra forma. Enquanto os livros do peruano continuaram a surpreender-me pela versatilidade, os do colombiano passaram a saber-me sempre mais ou menos ao mesmo. Continuaram lado a lado nas estantes cá de casa – ainda lá estão, estou a vê-los daqui – mas fui-os colocando mentalmente em dois mundos cada vez mais opostos.

                              Devo dizer que da actividade política de Llosa como reformista «do centro» nunca me senti propriamente próximo, ainda que na longa noite da América Latina dos ditadores e das ditaduras esses qualificativos tenham adquirido sempre um sentido razoavelmente diverso daquele que, agora como na altura, lhes atribuímos aqui na Europa. Mas os seus ensaios e artigos de opinião desde há muito que o redimiram desses ímpetos liberais que podem sempre provocar, é também o meu caso, um certa alergia a muitos dos seus mais indefectíveis leitores e admiradores. Penso agora, convictamente, que parte substancial da grandeza de Vargas Llosa se encontra igualmente – a par do que vai compondo com a sua caixa de ferramentas de romancista – no constante trabalho no campo da não-ficção, indiciador de uma capacidade notável e permanente para dialogar criticamente com o mundo. Combatendo na vertical, e não poucas vezes com custos pessoais, pela liberdade do indivíduo e da palavra. Contra Pinochet ou Castro, Bush ou Bin Laden.

                              A Academia sueca atribuiu-lhe agora o Nobel da Literatura de 2010. Foi dito esta manhã que «pela sua cartografia das estruturas do poder e as suas imagens mordazes sobre a resistência, a revolta e a derrota individual». Entendo a declaração como um elogio associado a um Mario Vargas Llosa integral. Não apenas o grande romancista, mas também o defensor da fala livre e dos direitos humanos. Por isso, e pela primeira vez em bastantes anos, me senti feliz quando soube quem ganhara o prémio. Um prémio político? Espero bem que sim. Não só, mas também.

                              [Os 10 melhores links para entender Mario Vargas Llosa segundo El País.]

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                                Petição pelo pluralismo de opinião

                                pies
                                «Automat. New York», por Berenice Abbott

                                Disponível online uma Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico. Perante o silenciamento de opiniões divergentes e o tom monocórdico, nos órgãos de comunicação social, dos comentários a propósito do PEC III, da sua conjuntura e da sua «inevitabilidade», torna-se imperioso protestar contra uma censura praticada por omissão que apenas aceita, sem direito ao contraditório, pontos de vista distribuídos «entre os que concordam e os que concordam». Leia, assine e divulgue.

                                  Atualidade, Opinião