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Mãe-Rússia

A sociedade russa tem um problema sério com a democracia. Mesmo tendo perdido parte do eleitorado, o Partido Rússia Unida, que apoia o sinistro Putin, obteve 49,6% dos votos expressos nas eleições legislativas para a Duma. Em segundo lugar ficou o pré-jurássico Partido Comunista, de Guennadi Ziuganov, que alcançou 19,7%. E em terceiro, com 12,2%, o Partido Liberal Democrata, na verdade da extrema-direita nacionalista, dirigido pelo «Le Pen russo», Vladimir Jirinovski. É só fazer as contas: 81,5% dos votantes – e a estes poderiam ainda somar-se algumas franjas vindas de outras forças minoritárias – aspiram a um governo monolítico e autoritário, revelando um menosprezo olímpico pelas virtualidades de uma democracia que, na realidade, jamais conheceram. Intimida constatar que uma boa parte do equilíbrio mundial passa ainda por este universo opaco, administrado por bandos de déspotas ou de candidatos a tal atividade. E que, no país onde, inventado por Piotr Boborykin, nasceu o conceito romântico de intelligentsia como espaço social para a atividade crítica e criativa dos intelectuais, a liberdade é ainda, fundamentalmente, uma quimera, um horizonte literário deixado ao abandono pelos cidadãos. Ou pela esmagadora maioria deles. Foram muitos, muitos anos de «engenharia das almas».

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    A caminho da Praça Tahrir

    Agora que os destinos do Egito retornam à encruzilhada, com os militares ainda no poder, os muçulmanos moderados a ganharem as eleições e os radicais salafistas a obterem 30% dos votos expressos, reivindicando as regras medievais da sharia como fundamento da nova Constituição, vale a pena lembrar o nascimento da Praça Tahrir como território simbólico e elemento orgânico do encontro de credos e do combate pela liberdade.

    Em 25 de janeiro de 2011, o dentista e escritor egípcio Alaa Al Aswany, fundador do movimento oposicionista Kefaya que havia anos preparava a mudança no Egito, chegou atrasado à manifestação da Praça Tahrir que iria marcar o fim do regime despótico de Hosni Mubarak. Quando foi avisado do que estava a acontecer, vestiu-se à pressa e correu para se juntar ao milhão de compatriotas que haviam saído à rua para exigir a queda do regime. Ali permaneceu dezoito dias, vivendo os acontecimentos revolucionários e assistindo ao renascimento de um país que em todo o mundo muitos olhavam como destinado a viver na indolência, na estagnação e sob o jugo da bota militar.

    Este O Estado do Egito recua um pouco no tempo e reproduz mais de quatro dezenas de crónicas publicadas em jornais entre 2008 e 2010. Nelas se abordam temas tão diversos, que a revolução iria rapidamente passar para o centro das atenções, como o autoritarismo e a corrupção do regime, a estagnação económica, a brutalidade da polícia, a pobreza endémica, a repressão das mulheres, o cerco vivido pelas minorias cristãs, o lugar do fanatismo ou a construção da democracia. Em todos esses artigos se pode entretanto detetar uma leitura comum, ajustada a duas linhas coincidentes e complementares que o movimento revolucionário irá adotar. A primeira aponta para aquilo a que o escritor discutivelmente chama o «caráter especial» da generalidade dos egípcios, que os terá tornado «menos propensos ao conflito e mais inclinados ao compromisso», à recusa maioritária da violência e da tentação do extremismo político e religioso. A segunda, decisiva nos acontecimentos de janeiro, leva-o a considerar que os seus compatriotas «como camelos», suportando a repressão, as humilhações e a fome por muito tempo, mas com uma enorme capacidade, quando finalmente se revoltam, de o fazerem «subitamente e com um ímpeto que é impossível controlar».

    Este livro ajuda-nos a mitigar a surpresa causada na maior parte do mundo pelo eclodir da aparentemente inexplicável revolução egípcia, e a compreender o impulso de esperança e de mudança que esta suscitou. Mas também a vislumbrar, por vezes mascarados, alguns dos seus piores inimigos.

    Alaa Al Aswany, O Estado do Egito. Trad. de Lucília Filipe. Quetzal. 296 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Novembro de 2011.

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      Do impasse radical à libertação

      SZ

      Para além de filósofo, crítico e académico, atividades em regra associadas a hábitos de recolhimento e ao sossego das bibliotecas, Slavoj Žižek é, como se sabe, personagem único do seu próprio espetáculo. Deve-o em parte ao estilo idiossincrático e enérgico, no qual o desassombro e a iconoclastia ocupam um lugar central. Mas também ao facto de atrair um público interessado na reflexão, por vezes nos sound bites, de alguém que volta a colocar a ideologia, há duas décadas declarada liquidada, no centro do debate teórico. Fá-lo seguindo um método caleidoscópico, no qual os seus interesses de partida – Lacan, Lenine, o ciberespaço, a crise da modernidade, o pós-Marxismo ou Hitchcock – surgem combinados com os mais diversos e desclassificados temas da materialidade contemporânea, num processo de «tudo ligado com tudo», associado à diluição da fronteira entre alta e baixa cultura e ao repensar radical da esquerda política, que reúne legiões de indefetíveis entusiastas mas também de cáusticos detratores. Viver no Fim dos Tempos, publicado originalmente em 2010 e acabado de traduzir numa série de edições do esloveno que a Relógio d’Água tem vindo a publicar, é um excelente exemplo dessa prolixidade e da vastidão de um olhar que incorpora a capacidade de questionar as dimensões menos visíveis mas não menos obsidiantes do mundo atual. (mais…)

        Atualidade

        O Pai Natal não paga portagens

        Percorro as boulevards do hipermercado suburbano e confirmo o que havia intuído ao longo dos últimos meses: é já nítida a redução do volume e da qualidade da oferta comercial, particularmente nos artigos supérfluos (telemóveis, acessórios, joias, álbuns ilustrados, sistemas de som e imagem). Mas igualmente em ramos muito mais difíceis de contornar, como o vestuário, os materiais para reparações domésticas ou mesmo a alimentação. Os livros, vivendo no país em que vivemos, esses continuam mais ou menos na mesma, comprados fundamentalmente pelos lunáticos que os consideram bens de primeira necessidade. Impressiona, no entanto, verificar o florescimento contínuo das lojas de brinquedos e de roupa para crianças. Serão elas, com toda a certeza, as últimas a sofrerem as consequências da recessão. Afinal tudo fazem sempre os pais e os avós para conservarem os seus meninos no mundo de aventura e ilusão dentro do qual nada de muito mau ou tormenta alguma parecem acontecer. E apesar de ser funcionário público o Pai Natal ainda não paga portagens ou desconta para o IRS. Pelo menos por enquanto.

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          Dia da vergonha

          Deixei na altura exata uma nota de indignação no meu mural do Facebook, mas fica aqui um registo menos efémero. Hoje, 30 de Novembro de 2011, ao final da manhã, quando a maioria PSD-CDS aprovou em votação na Assembleia da República o Orçamento para 2012, aquele que marca a pauperização acelerada de milhões de portugueses, o princípio do derrube daquilo que resta do Estado social e a submissão aos ditames políticos do eixo franco-alemão, fê-lo em euforia, batendo as palmas após a divulgação do resultado. Um vergonhoso sinal de insensibilidade e de traição que define quem o praticou.

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            O peso da memória

            Não sou antifadista. Aliás, o Vasquinho da Anatomia, d’A Canção de Lisboa, era-o – «Morra o fado!», chegou a gritar do fundo da alma – e acabou por ser chamado à razão, passando, por via da redentora mudança proporcionada pelo estudo e pela moderação, da condição de degenerado à de doutor. Como aconteceu com o estrangeirado moço Luís, n’O Feitiço do Império, de António Lopes Ribeiro, no momento em que trocou os prazeres tóxicos da jazz-band e a namorada americana Fay Gordon, que fumava e detestava Portugal, pela «canção nacional» e o amor de Mariazinha, esse símbolo casto, modesto e compassivo da «portugalidade» no feminino. Mas que tanto fado me reconduz ao passado, lá isso, perdoem a franqueza, reconduz. Admito que estejamos a precisar de qualquer coisa que nos sacuda a autoestima, mas não exageremos. «Viva o fado!», muito bem, levanto também o meu copo, mas não façamos dele o hóquei em patins que nos falta. O fado não merece que lhe façam isso.

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              «Imaterial», o tanas

              Diz-se que fado vem de fatu, a palavra latina para destino. E que é fado dos portugueses cantar o fado. Fado é assim aquilo que é fatal, o que necessariamente tem de acontecer. A índole plangente e fatalista da canção de Lisboa não pode assim ser outra, porque, com ou sem faina de renovação, fado será sempre fado. O resto, bem, o resto é invenção de escriturários, engomadinhos, temerosos de sangue, lágrimas e cheiro a vinho tinto. O que cantaram em tempos certos estudantes de Coimbra – e que uns quantos repetem, até à náusea, sem ousadia ou inventiva – não era fado mas balada, tristonha e lamecha, chansonette de quem não sabia muito bem que coisa seria espetar, apenas por paixão ou desfastio, uma faca nas tripas de alguém. E meter toda a raiva, todo o sofrimento e danação, numa só cantiga.

              A Amália que tantos lembram não era bem fado, pois cantava com uma elevação, olhar altivo e queixo levantado que não eram próprios do fado. Talvez fosse mais canto lírico. Fado-fado era a Severa, a desgraçada, ou o Marceneiro, com a voz a precisar de uma colher de mel coado, talvez a Hermínia quando estava com os copos, talvez Maria da Visitação, Zé Porfírio, Ginginhas, e outros malandros igualmente desconhecidos do excelentíssimo público. Fado era assim, e assim continua, o que fazia quem puxava pela voz quando tinha ganas de puxar da pistola. Ou quem só queria carpir a infelicidade sobre o ombro de alguém. Por isso pode servir, agora que nos empurram para uma nova vida de condenados, como choro e maldição face ao destino que não conseguimos fintar. Ou então, de faca na mão (ou na liga), como canção de combate. «Imaterial», o tanas.

              Variação (em ré menor) sobre dois fragmentos de um artigo que publiquei em 1996.

               

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                Teimosia e ilusão

                Mantenho quase sempre um grande arco de acolhimento em relação à diversidade das opiniões e das escolhas dos outros. Partilho com Camus a decisão de, se um dia for criado o partido dos que não sabem se têm razão, poder ser o primeiro a inscrever-me. Mas essa capacidade de aceitação não chega ao ponto – salvo nos casos, cada vez em maior número, em que as condições de sobrevivência do posto de trabalho e a coação patronal o exijam – de pactuar sem alguma mágoa ou ressentimento com quem não adere a uma greve como esta. Por isso, neste dia de Greve Geral, e uma vez que no meu local de trabalho não se organizam piquetes, evitarei passar por espaços nos quais laboram pessoas com quem mantenho uma relação diária próxima e afável. Acontece que, nas atuais circunstâncias, se as descubro de espinha curvada, «amarelas», aceitando sem resistir a queda coletiva no abismo que leva ao abismo, jamais voltarão para mim a ser rigorosamente as mesmas. Por isso, para ser franco, prefiro não saber da sua escolha. Desta maneira, e até prova em contrário, continuarei a confiar na sua sageza, coragem e sentido de justiça.

                  Apontamentos, Atualidade, Olhares

                  Final feliz precisa-se

                  Em grande parte da Europa, mas com uma incidência prática em Portugal que pode reconhecer-se com grande facilidade, a crise atual contém em si um forte dramatismo instigado por dois fatores que são muito mais complementares, ou contíguos, do que antagónicos.

                  De um lado a desregulação total do capitalismo e a incapacidade dos seus próprios gestores para encontrarem uma solução que reponha a atividade produtiva a funcionar e o mercado a rodar normalmente sobre os eixos, estabilizando o sistema. Apenas a direita mais extrema, com a sua roupagem populista e propostas miríficas de salvação eminente, parece capaz de controlar a sua própria intervenção, não perdendo terreno e ganhando até, aqui e além, alguns adeptos. Os partidos e movimentos do arco do centro, dos liberais mais clássicos aos social-democratas da ninhada de Giddens e Blair, circulam perdidos, envolvidos numa ação meramente gestionária que há muito se esqueceu da política maiúscula. Embora façam passar a navegação à vista que praticam por uma afirmação de convicções.

                  Do outro lado uma esquerda hesitante ou autoproclamada «consequente», que desde há várias décadas, enredada nos velhos mitos de uma Revolução salvífica que cairá do céu ou resultará da iniciativa de profissionais, se esqueceu de elaborar um modelo alternativo e mobilizador de sociedade e de militância cívica, de direção da coisa pública, de equilíbrio do Estado social, recuando para um combate essencialmente defensivo e reivindicativo. Útil em alguns momentos para debelar as injustiças mais brutais ou a rapina mais flagrante, mas incapaz de ajudar a obter uma resposta quando, como agora acontece, se torna necessário ascender a um estado politicamente mais evoluído e oferecer aos cidadãos algum entusiasmo para a conquista de uma outra via e de uma outra vida.

                  Em síntese: a direita gestionária não é capaz de manter o capitalismo a funcionar e de saber para onde vai, a esquerda outrora revolucionária não é capaz de tecer horizontes plausíveis e de mobilizar a maioria da sociedade para os alcançar. Entre uns e outros, os reformistas, que andaram décadas a dar uma no cravo e a outra na ferradura, perderam o norte e tentam reinventar a originalidade que perderam. O pior do drama que estamos a viver é que, neste cenário, não parece existir um desígnio coletivo capaz de projetar no horizonte um final feliz. Só a superação do sectarismo e a construção de confluências, capaz de rasgar alamedas, poderá salvar-nos.

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                    A cidade dos buracos

                    Cittabella é, em Viaggio in Drimonia, o livro de Lia Wainstein editado em 1965 pela Feltrinelli, «a cidade dos buracos». Nela, todos os habitantes deambulam incessantemente, dando a sensação, a quem os possa observar a partir do exterior, de procurarem alguma coisa – um parente ou um amigo, um embrulho, uma carruagem, um animal de estimação – entretanto engolidos pelo chão. Ao mesmo tempo, medem cuidadosamente os passos, com o objectivo de evitarem a própria queda, que ainda assim consideram inevitável.

                      Atualidade, Cidades, Devaneios

                      O fim da democracia

                      Deveria estar contente. Ou pelo menos agradecido às circunstâncias. Afinal lá caiu Berlusconi. Como se estatelou Papandreou. E antes deles tombaram Sócrates, Cowen ou Brown. Quanto a Zapatero, seguirá em breve para uma vida calma de conferencista. Não os comparo, embora com nenhum deles tenha simpatizado. Em particular com o abjeto Cavaliere, naturalmente. Mas é assustador olhar a vaga de políticos trocados por «reputados técnicos» ou por revanchistas que apenas pretendem reconduzir o Estado ao papel de polícia mau. De governantes eleitos com programas e com um contrato social, substituídos por administradores da coisa pública com formação de manga-de-alpaca e espírito de moralista. De humanos pecadores por asséticas santidades. Neste sentido, a queda do pequeno Napoleão italiano, e a forma como caiu, são até um mau sinal. Mais um. Pois não foram o povo e a democracia que o derrotaram. Foi a ditadura, invisível e pesada, do dinheiro e da finança.

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                        Mudar o destino

                        Destino

                        Na conhecida obra de Diderot, o fatalista Jacques insiste em que tudo aquilo que de bom e de mau nos acontece se encontra escrito algures «lá no alto». As teorias deterministas partilham desta certeza ao tomarem o ser humano como peça de um mecanismo que é incapaz de controlar. Trata-se de uma forma mais elaborada dessa mesma ideia de destino que com menor dose de especulação os ultrarromânticos reconheciam como dona da vida, «marcando a hora» dos acontecimentos decisivos: um encontro único, um momento de sorte (que assim não seria fruto do acaso), o instante preciso da traição, da doença e da morte. Sabemos que esta é a forma mais fácil de encontrar uma explicação para aquilo que parece inexplicável, de encontrar uma certeza, uma âncora, na corrente do incerto. De certa maneira, é esse também o fundamento das religiões da aceitação e do suplício. Nas circunstâncias em que vivemos, parece pois inevitável um retorno em força deste princípio: perante uma realidade que todos os dias volteia e revolteia, e já ninguém se atreve a prever ou a tentar explicar, será quase natural um regresso das conceções fatalistas da vida. Bom para os fadistas, portanto, mas mau para aqueles que procuram contrariar a desgraça. A quem compete então inverter o que aparenta ser irreversível. Bater-se para mudar o destino. Aceitando, com o cantor Godinho, que «antes o poço da morte que tal sorte».

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                          Desaparecidos

                          A imigrante

                          No centro da turbulência tendemos a concentrar-nos na nossa própria segurança e a esquecermos os outros. Faço o giro dos jornais, fico atento às notícias, e vejo como alguns assuntos desapareceram. Esquecidos porque as prioridades estão noutro lado, para aquém e para além das velhas fronteiras. Naquilo que decide ou não decide Merkl, no que resolve ou retarda Coelho, no que Papandreou supõe ser o dia de amanhã, naquilo que Barroso diz para não dizer. Algumas reportagens lançam alarmes sobre a fuga dos cérebros de putativos génios, seduzidos por uma bolsa de pós-doutoramento no Dakota do Norte ou pelo negócio da venda de imóveis na Nova Gales do Sul. Ao lado, imperturbável, o circo do futebol continua a preencher as primeiras páginas: com ele não há crise que meta medo e o único mercado capaz de preocupar as consciências é aquele que permitirá em janeiro o reforço dos plantéis. Mas a imigração, que ainda há uma dúzia de meses aparecia com algum destaque nos títulos, parece agora esquecida.

                          É verdade que já estava longe de ser o centro da atenção do país, até porque nunca foi assunto que preocupasse em demasia os sindicatos, os partidos e a conferência episcopal. Só que agora desapareceu de vez: ucranianos, moldavas e romenos, brasileiras e cabo-verdianos, apenas ressurgem quando se fala de um crime de sangue, de um assalto por esticão, ou, ocasionalmente, de «atividades de sucesso» no domínio do desporto, da restauração e das práticas mágicas. No entanto, ainda que um bom número tenha regressado aos seus países de origem ou partido para outros destinos, a maioria continua por cá. Sofrendo connosco a recessão, os salários amputados, os impostos que disparam, a insegurança e o receio do futuro. Só que não se ouvem, silenciosamente ocupados a sobreviver, como sempre fizeram e continuarão a fazer. Quanto a nós, de tão absorvidos com o deve e o haver da vida a prazo que agora levamos, tendemos a esquecê-los. E nem damos parte do seu desaparecimento. Um mau sintoma do estado de degradação da solidariedade e de desinteresse pelo coletivo, de um dramático sauve qui peut, ao qual chegámos.

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                            O regabofe

                            Annibale Carracci - «O comedor de feijões», 1585

                            Uma frase curta com a qual nos têm martelado os ouvidos, como afirmação supostamente mordaz para justificar tudo aquilo que de mau nos está a acontecer, declara que «é preciso acabar com o regabofe». A frase é incómoda e perigosa porque tem sempre um sentido unívoco. Com ela se pretende indicar que ao longo das últimas décadas as pessoas comuns tiveram direitos a mais, uma qualidade de vida que não se justificava, educação e saúde exageradamente acessíveis, transportes ao preço da uva mijona, férias preocupantemente longas, uma estabilidade no trabalho que só lhes fez mal à inteligência e aos músculos. Que passaram demasiado tempo a passear, a comer refeições completas, a tomar banhos de mar, a ler romances, a namorar, a programar futuros melhores para si e para os seus filhos. Porém, aquilo que pretende significar quem se serve da expressão não é que tais práticas fossem intrinsecamente más, indubitavelmente escusadas e fonte incontornável do pecado. É que não foram as pessoas certas a fruí-las. Que o regabofe não deveria ter sido para quem queria, mas apenas para quem podia. Não para todos, mas só para alguns. Não para quem trabalhou mas para quem, no andar de cima, geriu o trabalho dos outros e, supostamente, dessa forma foi «criando riqueza» para gastar consigo próprio. Num merecido e eterno regabofe.

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                              Um ideal abandonado

                              Thomas MannÉ provável que passe despercebida nas livrarias, ou que apenas congregue o interesse de um pequeníssimo número leitores, uma obra de Rob Riemen chamada Nobreza de Espírito, um ideal esquecido (ed. Bizâncio). O título faz ressoar a defesa de um conceito presumivelmente gasto e fora de moda. O que até nem será de admirar se tivermos em conta que este ensaísta e filósofo holandês define como assumida inspiração para o seu trabalho a vida e a obra de Thomas Mann. E em 1955, quando desapareceu, Mann era já um homem de «outra época», que na derradeira palestra pública, «Os Anos da Minha Vida», decidira, contra a tendência que já se formava no horizonte, falar do ser humano como criatura una na diversidade, capaz de moldar o tempo e viver a vida cultivando-os, de forma autónoma, num sentido globalmente comum e forçosamente partilhado.

                              Mas ainda que possa corresponder a um ideal abandonado, seja o que for que possamos tomar por «nobreza de espírito» trata-se de algo, de uma escolha, de uma experiência, que apenas está ao alcance dos humanos. Irremediavelmente associada à fidelidade tenaz, necessariamente difícil porque requer coragem, a fatores que «nobilitam» – como verdade, liberdade, justiça e razão enunciados sem aspas – e, por isso mesmo, posta em causa sempre que se considera que valor algum tem uma dimensão universal, podendo caber, ainda que naturalmente adaptado a diferentes circunstâncias e distintas realidades, em qualquer tempo ou lugar. A relativização de todos os princípios e de todos os códigos, hoje imperante em muitas áreas do pensamento político, do saber científico, das práticas sociais ou do relacionamento entre os povos, tem feito desaparecer a afirmação de princípios gerais de entendimento, capazes de dotarem o humano de um sentido partilhado, solidário, que todos possam reconhecer e que a todos possa aproximar. Promovendo, de forma subtil mas contínua, um retorno histórico à sensibilidade pré-humanista, autárcica e anti-universalista que mergulha fundo na obscuridade medieval. Um ar do tempo que, no entanto, pode ser contrariado. O primeiro passo para o conseguir passará por uma compreensão das potencialidades da alternativa. Uma tarefa na qual, com este livro a contracorrente, Riemen procura participar.

                              Versão revista de um texto publicado na revista LER de Outubro de 2011.

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                                O (mau) exemplo dos seniores

                                A utilidade das movimentações de caráter desordenado, por vezes politicamente pueril, sem objetivos precisos ou uma capacidade de mobilização sustentada, é infinitamente superior à inação dos que se limitam ao lamento. Dos que esperam em vão que do céu caia uma dose de bom senso capaz de afetar quem realmente decide. Ou dos que só pensam agir quando «todas as condições» estiverem reunidas. Do editorial de João Garcia no último número da edição portuguesa do Courrier International.

                                Os «à rasca», os «indignados», os «99%» são movimentos confusos e difíceis de perceber – é verdade. Tanto repudiam os grandes patrões como homenageiam Steve Jobs. Como bem refere Heinz Bude, do Die Zeit, nas críticas ao sistema não vão mais longe do que proclamar que «o sistema é bom, mas perdeu significado: a economia tem de estar ao serviço das pessoas e não da finança». Mas reduzi-los a rebeldes urbanos, desprezar estes movimentos por falta de objetivos e ideologia é, uma vez mais, olhar para a árvore e não querer ver a floresta. Afinal, se os seniores não sabem para onde levam o mundo, o que se pode pedir aos juniores?

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                                  Uma fotocopiadora, uma cela

                                  Um estudo a correr no ISCTE, do qual acabam de ser reveladas algumas conclusões preliminares, aponta para a existência em Portugal de 500 postos de venda de livros fotocopiados. Refere-se apenas, muito provavelmente, a unidades comerciais que admitem como normal este tipo de prática, uma vez que serão em muito maior número as fotocopiadoras privadas ou em funcionamento em instituições de investigação e de ensino que, sem o admitirem, fazem diariamente cópias de livros, artigos ou capítulos de obras. Um dos responsáveis pelo estudo fala entretanto de um «efeito pernicioso no mercado». O resultado previsível da sua publicitação será com toda a probabilidade o reforço das medidas policiais e penais aplicadas em reprimir este género de prática. Mas as consequências sociais e culturais desta atitude serão devastadoras para a expansão do conhecimento e para a sustentação dos hábitos de leitura.

                                  Mesmo entre aqueles portugueses que deveriam fazer da leitura o centro da sua vida ativa, sabe-se que ler não será uma prioridade para um grande número, mas a verdade é que a falta de investimento na aquisição de títulos pela maioria das bibliotecas, levando muitas vezes à inexistência sistemática de edições recentes e à presença de um só exemplar de cada título – ao que pode juntar-se a inexistência de uma política de stocks e de preços acessíveis nas livrarias – faz com que sem o recurso à fotocópia se torne rigorosamente impossível para a maioria aceder a obras indispensáveis para o padrão de atividade a que se dedicam. Os principais afetados serão, naturalmente, os estudantes, os professores e os investigadores. Ou os amantes de obras e de leituras raras. Dito de outra forma: sem livros fotocopiados, não existirão livros atualizados disponíveis para as necessidades. A solução que tenha em conta os interesses de editores, autores, livreiros e consumidores só pode passar por medidas equilibradas que atendam às necessidades de todos e por uma política do livro ágil, justa e democrática. Não pelo policiamento das fotocopiadoras e pelo decretar da miséria dos leitores.

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