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Tiques de classe e dedo em riste

O episódio, tornado público por estes dias, que envolve a ministra da Saúde Ana Paula Martins na morte de uma grávida no hospital Amadora-Sintra pode levantar dúvidas sobre as responsabilidades reais no caso. Já o que não levanta qualquer dúvida é o tom extremamente grosseiro e arrogante, com que, de dedo estendido «à patroa», a propósito do caso a ministra falou, em registo genérico, de mulheres pobres, desprotegidas, incapazes de pedir ajuda e, imagine-se, «até sem telemóvel». Fazendo-o como uma óbvia acusação de menoridade em típico registo de classe. Com este governo da direita está a tornar-se norma, pela primeira vez na nossa democracia, a impiedade institucionalizada e a desproteção dos mais fragilizados. Em particular daqueles que chegam de longe para fazer os trabalhos mais duros e que, em vez de serem integrados e apoiados, são apontados de dedo em riste como párias sem direitos e seres incomodativos.

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    Duas ideias erradas sobre combater o Chega

    Isto é, sem dúvida, um pouco como chover no molhado. Já foi dito e redito, parecendo óbvio para muitas pessoas, mas pelo que leio por aí vale a pena relembrar de vez em quando.

    1 – Não falar do Chega ou do seu chefe, onde e sempre que for preciso, para, como algumas pessoas democratas «boazinhas» dizem, «não lhes dar palco», é deixar-lhes o terreno livre para continuarem, nesse caso sem a presença de qualquer contraditório, a sua sanha de mentira e de ódio disseminada entre uma maioria de cidadãos crédulos e desinformados.

    2 – Ser-se contra o Chega, mas considerar-se que a democracia deve aceitar como legítima as suas posições, é mais do que pernicioso, pois as forças políticas desta natureza apenas se servem dela para melhor a combaterem. Além de que o incitamento ao crime de ódio e, implicitamente à violência, deve ser impedido e punido sem hesitações e com o maior rigor.

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      «Essa não é a minha especialidade»

      Incomoda a fuga ao debate sem fronteiras e com ideias próprias, justificando quem o faz a recusa em abordar certos temas com a afirmação de que «essa não é a minha especialidade». Mesmo no meio universitário, por definição agregador e disseminador de saberes plurais, ela é a atitude dominante, fechando-se quem o afirma no seu estrito espaço de estudo e evitando tratar de forma dinâmica tudo o resto. Todavia, sendo impraticável o ideal iluminista de um saber enciclopédico, que tudo alcance, e sabendo-se que jamais alguém, ou máquina alguma, será omnisciente, é sempre possível, sobretudo em democracia, falar do que nos aprouver, aliando conhecimento, capacidade crítica e experiência pessoal. 

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        Desmandos exigem combate ativo

        Os desmandos do Chega, praticando e disseminando em crescendo a ordinarice mais abjeta, o racismo sem máscara, a gritante xenofobia, a vulgarização do ódio, além do nacionalismo bacoco, da deturpação da nossa própria história e da subversão das conquistas democráticas, praticados inclusive dentro do próprio parlamento, requerem um combate ativo. Desde logo, através de medidas dos orgãos de soberania e dos tribunais que têm por dever aplicar a Constituição e preservar o Estado de direito, e também por meio de uma iniciativa mais enérgica dos partidos democráticos.

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          Presidenciais: os pés ao caminho

          É terrível que, perante a conjuntura de avanço brutal da direita e da extrema-direita, que pode até pôr em causa o nosso regime constitucional, a esquerda não tenha sido capaz de apresentar uma candidatura individual firme, agregadora, mobilizadora e em condições de vencer, ou pelo menos disputar com impacto, as eleições presidenciais. Não falo de cada partido parlamentar apoiar a sua candidatura presidencial, o que em diversos casos é mais uma consequência do que uma estratégia pensada, salvo em relação ao PCP, que como agora é hábito decidiu desde o início do processo falar apenas para o seu nicho. Do seu lado, o Livre será, aliás, o último a fazer tal escolha, após ter aguardado até ao limite por uma solução de consenso, mas percebe-se, pois ficaria fora do debate, com as inevitáveis consequências negativas para o seu projeto se o não fizesse. O que quero sublinhar é algo bem mais grave e desanimador: é o facto de, entre tantas figuras públicas com perfil e provas dadas ao longo de décadas no combate cívico, nenhuma ter decidido, agora que tudo é mais difícil, mas também mais urgente, sair do seu território protegido e meter os pés ao caminho.
          [Originalmente no Facebook]

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            Seguro: um desastre político à vista

            É absolutamente desastrosa a decisão do PS de apoiar a candidatura a PR de António José Seguro. Em tempo de um avassalador e agressivo assalto às liberdades e aos direitos de uma direita e de uma extrema-direita cada vez mais próximas e decididas a atacar no terreno constitucional, é necessário ter naquele lugar um contrapeso, uma voz forte, corajosa, respeitada e decidida. Não apenas a de alguém que se diga de esquerda e «tem provas dadas» (sic). Para além do temperamento manso e hesitante, comprovadamente demonstrado, AJS já declarou que em eleições e se for PR dará posse a um governo do Chega se este tiver mais um só voto. Não esquecer ainda que no tempo de António Costa mostrou-se contra a Geringonça, preparando-se, antes de ser derrotado em eleições internas no PS, para avalizar o 2º governo de Passos Coelho. Aquele que se mobilizava para ir ainda mais «além da troika» e felizmente durou só 27 dias.

            Quero acreditar que uma convergência progressista e mobilizadora ainda é possível para quem ama a democracia e quer combater as forças do passado e do ódio não ter de aceitar propostas mornas e pusilânimes como a que a figura de AJS reúne. Ou para numa segunda volta não ter de engolir um sapo de dragonas.

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              Desconfiar da liberdade entre quem por ela se bate

              O tema da liberdade e do seu papel nas sociedades contemporâneas pode parecer pouco relevante para o campo plural da esquerda política e cultural, dado vivermos um tempo em que a sua preocupação maior e mais urgente é, com todo o sentido, o avanço do populismo, do autoritarismo, do ódio, do egoísmo, do racismo e, no geral, dos valores, metas e métodos da extrema-direita. Conta-se entre estes, aliás, a manipulação demagógica do ideal de liberdade, utilizado, com a ajuda das redes e de alguma comunicação social – e sem o equilíbrio oferecido pela responsabilidade, pela verdade comprovada e pelo conhecimento adquirido –, para influenciar a consciência dos cidadãos.

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                Presidenciais: as hesitações do PS e uma urgência

                O Partido Socialista teve uma prestação razoável nas autárquicas, afastando para já, espero que por muito tempo, o crescimento do Chega e o espectro de uma bipolarização partidária à direita. A boa prestação deveu-se em alguns casos, como em Coimbra, a um discurso positivo, diverso da arrogância de há não muito tempo, e à celebração de acordos políticos com outras forças de esquerda. No caso, o Livre, o PAN e os Cidadãos por Coimbra. Aliás, sem este acordo, e ao contrário do que já escutei nos «mentideros» da urbe, a vitória de Ana Abrunhosa não teria sido possível. Basta fazer as contas para o perceber. O que posso dizer é que ainda bem que assim foi, servindo a abertura para materializar uma mudança face ao marasmo, e para estabelecer laços entre setores progressistas que por vezes se encaravam com desconfiança. Pena foi apenas que a aproximação não tivesse ido mais longe, englobando o Bloco de Esquerda e, embora esta fosse uma possibilidade pelo próprio julgada contranatura, ainda o PCP.

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                  Boas pessoas ou programas?

                  Mais que quaisquer outros momentos eleitorais, as autárquicas – disputadas num território essencial da nossa democracia – comportam bastantes vezes alguns equívocos. É certo que em quaisquer atos de natureza política, a qualidade das pessoas que os protagonizam, e se possível a sua proximidade de quem vota, têm grande importância, mas nas eleições autárquicas esse fator de proximidade tem um peso maior. Para o bem e para o mal, diga-se. Por um lado, conhecem-se melhor muitas das pessoas que se candidatam, o que pode ser positivo, por outro, existem por vezes relações individuais que causam os tais equívocos. 

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                    Coimbra: três bloqueios em tempo de autárquicas

                    Uma das grandes conquistas do nosso regime democrático constitucional é a afirmação do poder autárquico. Sob a ditadura, além de não resultar de eleições livres e de estar fora do escrutínio público, quem o representava era escolhido pelo governo e controlado a partir da capital, detendo reduzida capacidade de decisão e orçamentos sempre curtos, dependentes da intervenção de figuras «da terra» com poder, dinheiro e ligações a quem mandava. Mesmo reconhecendo que, em democracia, o poder autárquico foi por vezes discricionário, de vistas curtas e pouco transparente, ele jamais deixou de conter uma importante dose de dedicação, criatividade e proximidade, capaz de trazer claras melhorias às populações, aos seus lugares e à sua vida.

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                      Gaza e o outro Israel

                      A inqualificável e inaceitável política genocida praticada sobre a população civil de Gaza pelo governo de Netanyahu e dos seus aliados da extrema-direita fundamentalista, é nefasta mesmo para uma boa parte da população de Israel. Tem como resultado prático, para além do sofrimento sem fim do povo palestiniano, o bloqueio absoluto de uma imprescindível solução de dois estados independentes e pacíficos, aquela que se funda verdadeiramente na história da região e dos seus povos – não é isto o que dizem as pessoas parciais ou desconhecedoras posicionadas de ambos os lados – e a única que pode pôr fim à instabilidade e ao contínuo tormento. Ela tem também como consequência uma generalização do combate contra todos os cidadãos israelitas, parte deles muito erradamente identificados como «judeus», bastantes até muçulmanos, que se opõem ao atual governo e às suas políticas. Infelizmente, estes constituem em Israel ainda uma minoria, embora ela seja uma grande minoria, ilustrada até pelos resultados eleitorais, que não pode ser olhada como mera cúmplice dos crimes em curso.

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                        Reconhecimento da Palestina por Portugal

                        É um caso ao qual se aplica a expressão popular «mais vale tarde do que nunca». O governo português, apesar de visivelmente contrariado, cedeu à pressão e reconheceu o Estado palestiniano, sendo o 13º país da União Europeia a fazê-lo. Como aconteceu com outros países, este reconhecimento está vinculado à iniciativa da Autoridade Palestiniana e não do Hamas, o que me parece justo, em primeiro lugar para o próprio povo palestiniano. Todavia, e sendo absolutamente favorável à solução de dois Estados pacíficos para a região, e completamente avesso à ideia absurda e antissemita do apagamento de Israel do mapa, não me parece nada bom que, na declaração formal agora assinada, a condenação da política agressiva e genocida do atual governo israelita para Gaza não seja mais claramente vincada.
                        [Originalmente no Facebook]

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                          Tudo ao contrário na educação

                          Começo com parte de um importante post de alerta publicado no seu mural do Facebook por Paulo Marques:

                          «Recentemente, o ministro da Educação, Fernando Alexandre, de visita a uma escola, numa aula, disse a alunos do 12.º ano que “quem anda em manifestações perde a aura”. Não se trata de uma frase inocente, nem de um simples deslize retórico. É uma mensagem política e, diria, perigosa.

                          “Aura” é uma palavra carregada de simbolismo. Sugere prestígio, distinção, brilho pessoal. O que o ministro transmitiu àqueles jovens foi claro: quem protesta, quem se envolve, quem ocupa o espaço público para reclamar justiça, perde reputação, mancha a sua imagem, arrisca o futuro.

                          Mas não é exatamente o contrário? Se hoje temos direitos fundamentais, do voto universal à liberdade sindical, da escola pública ao Serviço Nacional de Saúde, foi porque milhares de pessoas saíram à rua, arriscaram empregos, enfrentaram repressão, desafiaram a ordem estabelecida.»

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                            Generalizações tóxicas e discurso eleitoralista

                            A tendência para referir determinados grupos sociais utilizando uma generalização que dilui as suas diferenças internas e salienta apenas aquilo que num determinado contexto lhes é apontado como comum, é uma prática tão antiga quanto a existência humana registada. Desde a criação da escrita na Suméria, a evocação pública dos protagonistas da história, fosse esta a dos poderosos ou a dos povos, sempre deu voz a esse processo de filtragem da realidade que dilui as efetivas diferenças e contradições. Neste sentido, é vulgar falar-se como de um todo do «povo», dos «portugueses», dos «europeus», dos «trabalhadores», dos «estudantes», dos «árabes» ou dos «ciganos», qualificando cada grupo como bloco possuidor de um carácter comum, muitas vezes apresentado como estereótipo que reforça a separação entre um «nós» e um «eles». 

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                              Uma sondagem que nos confronta

                              Saiu nesta sexta-feira, 12 de setembro, a primeira sondagem, do Barómetro DN/Aximage, que coloca a extrema-direita parlamentar à frente nas intenções de voto em eventuais eleições legislativas. Segundo os resultados divulgados, o Chega teria 26,8% dos votos, seguindo-se a AD (25,9%) e o PS (23,6%). De seguida viria o Livre (6,5%), que ultrapassa a Iniciativa Liberal (6,2%). Por fim surgiriam o PCP/CDU (3,1%), o Bloco de Esquerda (2,4%) e o PAN (1,7%). Pode dizer-se que se trata apenas de um indicador, mas é sem dúvida um indicador muito preocupante e que não pode deixar de ser tido em linha de conta.

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                                O necessário direito ao silêncio

                                Com o arranque e a expansão da «era industrial» passámos, sobretudo nos países e regiões que a levaram mais longe, a viver um tempo pautado pela omnipresença do ruído. Este traduz uma sobrecarga de estímulos sonoros não naturais, associados a uma agitação e a um ritmo acelerado da vida coletiva, tendente a fazer recuar os grandes espaços de silêncio que, salvo em situações excecionais – como em festas, guerras ou espetáculos ocasionais – por milhares de anos definiram o cenário dominante da vivência humana. O crescimento incontornável do ruído começou nas grandes cidades, alargou-se depois às menores e está hoje por toda a parte, pautando uma vida onde o contacto com o silêncio é cada vez mais limitado, evitado até por muitas pessoas moldadas ao barulho e que sob este se socializam.

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                                  Xi, Kim, Vova e o Sonasol

                                  Constato, por um rápido périplo online, que o encontro em Pequim dos ditadores da China, da Coreia do Norte e da Rússia, respetivamente Xi Jinping, Kim Jong-un e Vladimir Putin, em conjunto com alguns dos seus melhores apoiantes, como Aleksandr Lukashenko, da Bielorrússia, Miguel Díaz-Canel, de Cuba, Ukhnaa Khurelsukh, da Mongólia, Luong Chuong, do Vietname, ou Masoud Pezeshkian, do Irão, a pretexto da celebração com parada militar do 80º aniversário da rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial, está a deixar entusiasmadas por cá algumas pessoas que se imaginam e autoproclamam anti-imperialistas e «de esquerda». Como se afirmava num antigo anúncio do detergente Sonasol, «o algodão não engana». Ou engana apenas quem gosta de ser enganado e o assume.
                                  [Originalmente no Facebook]

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