«Revolucionários profissionais» segundo o Que Fazer? (1902), de V. I. Lenine: Gustav Husák (76 anos, ex-desempregado, funcionário do Partido Comunista da Checoslováquia), Todor Jivkov (78 anos, operário tipógrafo, funcionário do Partido Comunista Búlgaro), Erich Honecker (77 anos, operário da construção civil, funcionário do Partido Comunista Alemão), Mikhail Gorbachev (58 anos, licenciado em economia, funcionário do Partido Comunista da União Soviética), Nicolae Ceausescu (71 anos, operário sapateiro, funcionário do Partido Comunista Romeno), Wojciech Jaruzelski (66 anos, camponês, militar, funcionário do Partido Comunista Polaco) e Janos Kádár (77 anos, operário tipógrafo, funcionário do Partido Comunista Húngaro).
Existem acasos curiosos. Lia no Expresso um artigo de José Pedro Castanheira sobre a eleição do novo Comité Central do Partido Comunista Português e a sua composição. Ali se referia que, dos seus actuais 158 membros, 100 são funcionários do partido, 6 são funcionários da JCP, e, dos restantes, a maioria tem ocupações como sindicalista a tempo inteiro, deputado ou autarca, mas antes de o serem foram também funcionários do PCP. Pouco depois, ao procurar uma matéria na Internet, dei de caras com a fotografia acima reproduzida, tirada em Bucareste a 7 de Julho de 1989, cerca de quatro meses antes da Queda do Muro de Berlim, durante a derradeira reunião dos chefes dos partidos e dos estados do Pacto de Varsóvia após a qual se tornaram irreversíveis «a destruição da URSS e as derrotas do socialismo no Leste da Europa» (in Teses do XVIII Congresso). E não pude deixar de reparar na composição social do grupo. Só o leitor poderá dizer se faz ou não algum sentido esboçar uma analogia entre os dois momentos.
Adenda – Não, não se trata de desvalorizar a inevitabilidade de funcionários desta natureza. Em democracia ou em ditadura, eles existem para cumprir profisionalmente determinadas tarefas. Mas sim de chamar a atenção para o estilo de «ligação à vida», comendo e respirando sempre o mesmo ar, que desenvolvem pessoas com vinte, trinta, cinquenta anos de casa como funcionários partidários ou sindicais. E o que isso provoca em partidos ou sindicatos nos quais a maioria esmagadora dos dirigentes se encontra nessa situação. Os da fotografia acabaram como se sabe.
Só quem é cego ou não diferencia um par de atacadores de um laço de usar ao pescoço não reparará na forma moderna e cuidada de José Sócrates se ataviar. E, já agora, de se calçar e de cortar o cabelo (sim, que aquele corte dispensa o pente no bolso de trás das calças). No panorama masculino da política portuguesa ele representa, sem qualquer dúvida, um caso insólito. Para além de penoso, seria bastante enfadonho enumerar aqui as figuras públicas masculinas de porte sem gosto, antiquado ou mesmo grotesco, muitas delas até bem mais novas que o primeiro-ministro, que desfeiam os nossos dias. Aliás, a tendência geral integra-se numa tradição antiga, historicamente ancorada na estética burguesa oitocentista, pós-calvinista e pós-revolucionária, que considera serem apenas as mulheres a terem o direito à cor e ao bom aspecto. «Os homens não se querem bonitos», diz o adágio português, acentuando uma tendência que na Península Ibérica se cruzou ainda com uma sobriedade estimulada pela legislação anti-sumptuária do século XVIII. Para os cavalheiros reserva-se então a sobriedade escura, cinzenta, agora apenas dourada por um nó de gravata «à Windsor», ou, vá lá, um corte de cabelo à Santana Lopes. Suspeito mesmo que algum político caseiro apanhado a ler a Esquire ou a Men’s Health (para não falar da Arena), ou a quem se descubra a estranha mania de usar cremes hidratantes e regeneradores, possa ver definitivamente comprometida a carreira. O pessoal das «jotas» sabe-o muito bem.
Por isso não me espanta que o diário espanhol El Mundo tenha considerado Sócrates, mais os seus trajes Armani e os seus sapatos Prada, como dando corpo, e provavelmente também alguma alma, ao 6º homem-figura pública «mais elegante do mundo». O galardão, que colocou Karl Lagerfeld em primeiro, Roger Federer em segundo, Barack Obama em terceiro e Brad Pitt em quarto lugar, apenas contém uma inexplicável nódoa: Carlos de Inglaterra encontra-se, apesar do seu look enfatuado e, peço perdão, algo asinino, classificado em 8º lugar (ok, mas sempre usa uma roupinha «à Príncipe de Gales»). Para quem todos os dias tem de suportar governantes mal vestidos, deputados com gravatas horríveis, sindicalistas com bigodes inestéticos ou desportistas com penteados de pesadelo, a imagem visual de Sócrates até poderia constituir um lenitivo. Isto se o nosso primeiro se visse menos e falasse num outro tom, evidentemente. Não se pode ter tudo. Visualmente falando, claro.
Também me parece isto que fizeram a Sofia Loureiro dos Santos – pessoa que por acaso que nem conheço pessoalmente – um acto repugnante que não pode passar em branco. Não importa se estou ou não de acordo com ela na «questão dos professores» (e provavelmente até nem estarei): trata-se de um caso de preservação da liberdade de opinião e do direito de cada um à privacidade e ao bom nome. Exemplos de delação e enxovalho público desta natureza – agora também na blogosfera – têm infelizmente um lastro histórico bastante longo e tenebroso que me dispenso agora de mencionar.
Aquilo que pode surpreender num artigo publicado pelo American Journal of Human Genetics e referido hoje no suplemento P2 do Público não é o que anuncia, mas sim a amplitude dos números ali adiantados. Um estudo recentemente publicado por aquela revista científica revela que 30,4% dos homens portugueses traz inscrita na sua matriz genética uma origem sefardita (19,8%) ou magrebina (10,6%). A sul do Tejo, então, a percentagem sobe particularmente (36,3% de judeus e 16,1% de mouros), chegando a níveis que em toda a Península Ibérica apenas podem ser comparados, superando-os até, aos da Andaluzia. O que não deixa de ser uma ironia da história – já António José Saraiva o sublinhou quando descreveu a Inquisição como uma «fábrica de cristãos-novos» – é que a maior parte da miscigenação se produziu precisamente por intervenção do sempre atento «Tribunal do Santo Ofício». Quando, para escaparem à morte, à deportação ou ao confisco dos bens, numerosos judeus, e também muitos muçulmanos, foram constrangidos a converterem-se ou o fizeram por vontade própria. Somos, pois, ainda mais mestiços do que pensávamos. Sabe bem.
Adenda – Sobre algumas confusões que circulam por aí a propósito do artigo invocado: 1) estamos a falar de herança genética e não de legado cultural; 2) o estudo foi feito apenas em homens, e não em mulheres, por razões que não cabe aqui explicar mas são explicadas no estudo; 3) este trabalho não refere a herança «negro-africana», a qual, entre outros particularismos, e salvo situações episódicas, se manteve quase residual até à década de 1980 do século passado.
À volta da «questão dos professores» todos os argumentos possíveis têm sido adiantados, tornando-se difícil dizer qualquer coisa que não tenha já sido dita e redita. Aliás [bocejo], isto mesmo já foi por mim aqui publicado e republicado. Associadas a essa repetição, a maioria das posições que encontramos na blogosfera têm tomado partido, de forma quase sempre unívoca e até um tanto agressiva, por uma das partes. Reforma boa contra imobilismo mau, professores malandros versus ministra boazinha, bruxa má contra santos inocentes, e por aí afora. Por isso, talvez valha a pena insistir que nada do que se prende com o assunto é simples e redutível a uma caricatura da intifada.
Todos sabemos que existem professores, provavelmente muitos e geralmente com a complacência dos sindicatos, que sendo «em princípio a favor de uma avaliação» se recusam a admitir uma que os distinga de facto de acordo com o trabalho executado, a preparação científica e os resultados obtidos. Daí a caricata contraproposta da Fenprof pretendendo colocar no primeiro e decisivo patamar do processo de qualificação dos docentes a auto-avaliação. Mas todos sabemos também que o Ministério, e principalmente alguns dos organismos que o representam no terreno – das direcções regionais a certos conselhos executivos mais fiéis -, têm modelado a sua actuação crispada pela imposição de normas burocráticas que mais têm a ver com a redução de despesas e a apresentação artificial de resultados que saiam bem na fotografia das estatísticas do que com a eficácia e a justiça do sistema de ensino que tutelam.
O pior serviço que se pode fazer na tentativa de solucionar o impasse em que estamos, promovendo uma verdadeira mudança nos padrões de funcionamento do ensino em Portugal, é pois generalizar discursos sobre a maldade ou a bondade dos professores ou do governo. Como se não existissem professores que pensam pela sua cabeça e têm sentido de justiça. Como se o governo fosse completamente insensível à opinião e à experiência daqueles que governa. Mas mau também, já agora, é divulgar, como acontece num artigo de Fernanda Câncio, a ideia de que só porque eleito e apoiado numa maioria parlamentar, absoluta ou não, este governo, ou qualquer governo, possa avançar toda a sorte de medidas insensatas, apresentadas como «reforma», sem o protesto, tumultuoso se necessário, sonoro sempre, dos cidadãos directamente afectados. A democracia não se esgota nas eleições – embora não as possa ignorar, evidentemente – e eu pensava que esse era um dado adquirido por todos os democratas. Mas, claro, no fogo da luta todos nós fazemos e dizemos coisas insensatas.
Confiando naquilo que, em The Blithdale Romance, Nathaniel Hawthorne conta de Charles Fourier, este acreditava que o inevitável progresso da humanidade rumo à perfeição faria com que um dia o mar passasse a saber a limão. O fascínio da imaginação utópica assenta em operações e em convicções desta natureza, que auguram um futuro de absolutos, programados e construídos à imagem dos desejos e da determinação de quem os projecta. O problema começa quando os fabricantes de utopias começam a pretender fixar as percentagens do açúcar, do ácido cítrico e do sódio, dando todo o poder ao laboratório que passará a gerir o fabrico, a manutenção e a partilha da água marítima. E, claro, condenando ao degredo o sabor a laranja.
O partido-da-língua-de-pau não muda. Enquanto os outros apoiam ou aplaudem, ele «saúda» sempre. E se os cumprimentados o merecerem, «saúda calorosamente». Quando os restantes definem metas, ele possui «objectivos claros». Se os mais falam da experiência que vão ganhando, ele diz «a vida ensina». Quando os outros apresentam ideias ele «reafirma a sua base ideológica». Se falam de discussão, ele prefere «um amplo e profundo debate». Se organizam encontros, ele prepara as coisas em «1600 reuniões ou plenários, nos quais participaram mais de 26000 militantes». Enquanto se esgrimem posições, ele dá logo «uma resposta inequívoca». Quando os outros reestruturam, ele promove um «reforço da organização». Chama os fascistas de «fâchistas». Creio mesmo que prefere ainda designar o espaço de «cosmos». E os mais indefectíveis militantes continuarão por certo a relembrar como Лайка a saudosa cadela Laika.
Adenda: A Gestapo encorajava alguns prisioneiros que suspeitava de serem comunistas a escreverem pequenos artigos. O objectivo era confirmarem a sua filiação pela análise da linguagem. Uma tarefa fácil, diziam os agentes.
O objectivo de uma cadeia voluntária que circula por aí é achar aquilo que não existe: «a melhor canção de amor de sempre». Porque todas as canções de amor são como todas as cartas de amor: um pouco estúpidas, sim, como dizia o menino Fernandinho, e fugazes, mas «para sempre». Por isso são quase todas boas. Avanço com uma fiftie, febril e imortal. Podiam ser outras mil.
Paul Anka – Put Your Head on My Shoulder [aumentar bastante o som]
O secretário-geral falou de «dimensão totalitária» ao pronunciar-se contra a lei dos partidos que impõe o voto secreto. Um conhecido militante, bloguista e comentador profissional de blogues, acusa-me algures de defender o totalitarismo ao depreciar não sei onde o significado do congresso comunista. As políticas autoritárias e autistas de Sócrates, essas todos os dias são chamadas de «fascizantes». Parece que no número 3 da Soeiro Pereira Gomes e na sua rede de sucursais ocorre neste momento um problema com as palavras. Ou não?
No livro sobre Eichman, Hannah Arendt falou de uma «banalização do mal» para se referir à entrada do anti-semitismo no discurso do Estado e na esfera do público, produzindo as condições para uma normalização do Holocausto. O uso inapropriado de palavras que se referem a circunstâncias históricas e a tempos nos quais o humano e o monstruoso conviveram, desvirtuando a clareza do seu significado e atribuindo-lhes sentidos indeterminados e brumosos, pode sempre produzir um efeito análogo, trivializando o sinal de perigo que transportam nas entranhas. Podem ser ditas por ignorância ou má-fé, mas o efeito será o mesmo.
Enquanto metia na ranhura o cartão de plástico, corria no monitor da máquina Multibanco uma frase a vermelho-escuro: «Violência no namoro não é amor!» Assim mesmo, a bold e com o ponto de exclamação. Afinal é preciso dizê-lo em voz alta, gritá-lo, pois uma boa parte da violência no casamento começa de facto muito antes dele: acontece com uma em cada quatro pessoas, diz um estudo recente da Universidade do Minho. Ao mesmo tempo, as mulheres-guerrilheiras que jamais aceitarão um insulto, um murro, uma chapada, sem os restituírem e seguirem o seu caminho na direcção contrária, são ainda uma minoria. Mesmo aqui, a ocidente do ocidente. E o futuro é já a seguir.
Versão de um texto publicado originalmente na revista LER
Como experiência, destino e utopia, o ideal comunista possui uma história poucas vezes apoiada por narrativas abrangentes e razoavelmente isentas. Esta obra de Robert Service, escrita sensivelmente ao mesmo tempo que a trilogia biográfica de Lenine, Estaline e Trotsky, esforça-se por preencher essa ausência. Da sua tentativa de traçar um panorama da mais importante, dinâmica e persistente corrente política dos últimos cem anos resultou um trajecto enumerativo que começa no comunismo pré-marxista e vai até ao embrionário «socialismo do século XXI», mantendo como eixo a Revolução de Outubro e a transformação da União Soviética em exemplo e estímulo de um alcance planetário. Capítulos que basicamente resumem informação conhecida convivem, no entanto, com outros nos quais se notam um maior investimento do autor e também algumas novidades. É o que acontece quando mostra como os bolcheviques se lançaram ao assalto do poder sem uma matriz para a nova ordem a criar, como foram enunciadas as primeiras divergências teóricas em relação ao template estalinista do «marxismo-leninismo», como se organizou a propaganda pró e anticomunista durante a Guerra Fria, ou como foi o modelo soviético reproduzido no pós-guerra, durante a rápida mas complexa fase de construção das «democracias populares».
O esforço de síntese é notável, e de um ponto de vista informativo parece conseguido, transformando este livro numa útil introdução à história geral do comunismo. Ele deve, todavia, ser mediado por uma atitude crítica atenta e contínua, uma vez que a nítida aversão do autor aos valores do comunismo interfere na objectividade e até na clareza de diversos passos. Pior, ela tê-lo-á afastado de uma compreensão aprofundada da génese social, filosófica e ética do ideal comunista e da eventual perpetuidade da sua capacidade de atracção. É verdade que Service admite, de início, que um dos seus intentos é responder à dúvida de décadas sobre a natureza «inerentemente despótica» ou «potencialmente libertadora» do comunismo, mas concentra-se sobretudo no primeiro dos aspectos, dando pouca atenção ao segundo, justamente aquele que potencia a capacidade de atracção e de mobilização daquele ideal. Em consequência, sugere que o carácter perverso de algumas das práticas dos comunistas – no poder ou fora dele – os afasta de todo de um papel positivo nos processos de edificação democrática e lhes retira até legitimidade na sua participação no combate social, apontando-os como vírus maligno que «provou ter características metastizantes» e continuará a viver mesmo após o desaparecimento do último Estado socialista. O que contraria a prometida isenção desta obra, ainda assim, dada a falta de alternativas acessíveis, de utilidade. Uma nota negativa adicional para a perceptível imperfeição da tradução e da fixação do texto, infelizmente muito comum, como é sabido, nas obras editadas pela Europa-América.
Robert Service, Camaradas. Uma História Mundial do Comunismo. Tradução de Fernanda Oliveira. Publicações Europa-América, 568 págs. ISBN: 978-972-1-05928-3
A palavra cosmopolitismo é uma palavra manchada. Suscita os ataques de alguma esquerda, diz Appiah, devido ao seu padrão aparentemente diletante e elitista. A direita, por sua vez, abomina-o pois acredita que o cosmopolita é sempre alguém que questiona o nacionalismo e a ideia de pátria. O autor anglo-ganês não procura contestar estes preconceitos, buscando antes expor os fundamentos de um novo cosmopolitismo, superador do velho paradigma iluminista, e avaliar da sua viabilidade como instrumento de uma política de aproximação entre culturas. O grande desafio na actualidade, segundo declara, é «pegar nas mentes e corações formados ao longo de milénios em tribos locais e equipá-las com ideias e instituições que nos permitem viver em conjunto». Como filósofo, procura também persuadir o leitor de que existem algumas questões conceptuais interessantes que podem contribuir para a construção de um diálogo em torno da globalização capaz de substituir as posições de desvalorização de uma moral comum que integram as teses relativistas mais radicais. De um ponto de vista político, sugere a combinação entre o respeito pela diversidade das vidas humanas – não apenas da vida humana – e a ideia de que existem obrigações para com os outros dentro de um contexto de «universalismo» e de cidadania partilhada. A ler e a debater, apesar da versão portuguesa por vezes tornar a leitura um pouco dolorosa.
Kwame Anthony Appiah, Cosmopolitismo. Ética num Mundo de Estranhos. Trad. de Ana Catarina Fonseca. Europa-América, 180 págs. ISBN: 978-972-1-05929-0
1. A maioria dos portugueses desconhece hoje a origem do feriado que, entre o passeio pelo maior centro comercial das imediações e uma multicultural caipirinha bebida à lareira, passa em família ou com os amigos, fazendo de contas que abre um pequeno parêntesis na crise. No entanto, a restauração do reino de Portugal em relação à «Coroa de Espanha», na qual se encontrava integrado desde o final trágico da aventura marroquina de D. Sebastião, e a Guerra da Aclamação que se lhe seguiu, representaram um ponto de viragem fulcral na definição da identidade política e cultural dessa pátria da qual se ouve ainda, nos estádios de futebol e nos desfiles militares, «a voz dos seus egrégios avós».
No dia 1 de Dezembro de 1640, porém, não ocorreu revolução alguma, como falseou durante décadas a historiografia salazarista. O que aconteceu não passou, de início, de um rápido putsch militar local contra a política centralista do Conde-Duque de Olivares: prendeu-se a vice-rainha Margarida de Sabóia, passou-se pelas armas o odiado Miguel de Vasconcelos e aclamou-se rei o duque de Bragança, enquanto a maior parte da nobreza e do alto clero se mantinha fiel a Madrid. Já decisivas foram depois as campanhas militares, prolongadas em diferentes fases, em território ibérico, entre 1640 e 1668, e alargadas ao combate pela manutenção do Império, principalmente no Brasil, em Angola e na Índia. Vinte e oito anos de guerra dura e custosa, no correr dos quais se foram autonomizando e desvinculando da influência espanhola – definindo-se, como nunca antes ocorrera, uma forte identidade antimadrilena -, a prática política, a actividade diplomática, a língua portuguesa, a literatura nacional, a organização militar, o discurso historiográfico e até a oratória sagrada.
2. Foi no cinema Restauração, em Luanda, que vi O Último Tango em Paris. A democracia tinha meses, e brancos, pretos e mulatos, homens e mulheres, velhos e crianças, acotovelavam-se em filas enormes por um bilhete para a «cena da manteiga» do primeiro «filme pornográfico» legalmente exibido. Corria o ano de 1975 e, ao que me disseram, era então novidade o encontro no foyer de pessoas cujo tom de pele, um ano antes, lhes teria interditado aquele espaço. O cinema Restauração hoje já não é cinema e mudou de nome. Chama-se Casa das Leis e tem servido de sede à Assembleia Nacional angolana. Mas todos os angolanos europeus que por lá passaram continuam a usar a denominação colonial. Eu próprio, anticolonialista que por sê-lo passei por duas «custódias», é assim que o recordo.
É difícil mudar os mapas que nos mostraram durante anos, por isso, para muitos, é difícil designar as cidades angolanas pelo nome legítimo actual. Luanda e Benguela continuam a ser Luanda e Benguela, e quase todas as pessoas sabem que o Huambo foi em tempos Nova Lisboa. Mas que dizer do Soyo, de Luena, de Saurimo, de Lubango, de Tombwa? Para muitos, não necessariamente obstinados colonialistas ou seus ressabiados descendentes, são ainda Santo António do Zaire, Luso, Henrique de Carvalho, Sá da Bandeira e Porto Alexandre. E, voltando ao início, como se chamará hoje a antiga Avenida dos Restauradores de Angola? Tenho a resposta: chama-se Rua do Congresso do MPLA, apesar de na rua toda a gente lhe chamar… Avenida dos Restauradores. Podem, todavia, encontrar-se sinais contraditórios: dizem-me que a Rua Karl Marx passou há algum tempo a Avenida de Portugal, o que sempre será indício de uma reconciliadora esperança de sabor pós-colonial.
3. O momento de mais um aniversário da Restauração da Independência serviu também para que pudesse começar a compreender um pouco melhor a política de alianças do PCP. Tendo em vista aquele que, presumo, possa ainda ser o seu interesse pela partilha de responsabilidades de poder. Após os ataques, durante este XVIII Congresso, à dimensão «social-democratizante» (sic) do Bloco de Esquerda e aos propósitos dos chamados «alegristas», marcados como uma espécie de quinta coluna destinada a desviar da linha justa o eleitorado que considerem ser naturalmente «seu», fiquei a ruminar sobre que espécie de forças imaginará o PCP poder ter como aliadas no combate – julgo que não meramente protestativo ou limitado à repetida «táctica da trincheira» -, por uma alternativa de governo. Para além, claro, da anuência instintiva dos organismos-criatura, um tanto ridículos e sem qualquer representatividade, como os chamados «Verdes» ou a Intervenção não-sei-o-quê (peço desculpa mas não consigo recordar agora o nome). Julgo ter resolvido a dúvida lendo hoje, no caderno P2, as palavras de simpatia do «senhor dom» Duarte de Bragança, descendente reconhecido do monarca restaurador e o nosso actual «reizinho», pelo carácter eminentemente patriótico do Partido Comunista Português.
A dada altura do jogo de futebol Sporting-Guimarães, incomodado pela bátega de água que de repente atingiu o estádio de Alvalade («num ápice», teria dito o clássico Gabriel Alves), o desabafo técnico-táctico do comentador e ex-jogador António Simões: «A chuva vem esquinada e entra-me aqui por uma diagonal aberta.»
Contada ao longo de décadas nos países do «socialismo real», a anedota supostamente antisoviética que há dias aqui transcrevi acabou por servir de mote a uma cadeia que tem feito circular pela blogosfera portuguesa historietas de idêntico teor. Em casos isolados, elas activaram também o ressentimento de pessoas inaptas, nos momentos de transmissão do seu credo político vertidos sempre em solenes liturgias, para aceitarem a dimensão do humor e do nonsense como exercícios de ginástica da crítica e até da elevação da sua qualidade de vida. «Com certas coisas não se brinca» é um mote velho, velho de muitos séculos, que sempre exprimiu a primeira etapa da repressão do humor e da dimensão sardónica e crítica do riso. E o esquecimento da afirmação que Beaumarchais deixou n’O Barbeiro de Sevilha: «Faço por rir de tudo e de todos, com medo do dia em que for obrigado a chorar.»
Essa é também uma das marcas consistentes da ortodoxia marxista-leninista, com raízes históricas que pontuaram igualmente, ainda que com a integração de outros factores, uma parte significativa da ética vivencial que certos movimentos radicais – como os maoístas da linha dura, os adeptos do terrorismo urbano, os nacionalistas irredutíveis ou os fundamentalistas religiosos – recuperaram e desenvolveram. Tal como, aliás, é possível aferir ainda hoje pela análise dos seus padrões de discurso e pelo modelo de propaganda que alguns continuam a exibir. Pode dizer-se, sem grande margem de erro, que parte dessa recusa da dimensão lúdica da sociabilidade humana e da actividade política se radicou numa concepção da luta pelo poder como combate de extremos, em cujo contexto a utilização do riso enquanto instrumento de crítica interna poderia ser interpretada como atitude pusilânime ou de traição.
No campo comunista, a origem do trajecto pode ser examinada. Logo após a Revolução de Outubro, proliferaram, num ambiente de efervescência revolucionária, novas técnicas de agitação e de propaganda. Elas incluíram o uso instrumental do humor na crítica da velha sociedade mas também na detecção das contradições, erros e possibilidades da nova, que se acreditava estar em vias de ser erguida. Um bom exemplo desse ambiente pode ser dado pela obra de Mikhail Koltsov, comunista de origem judaica, membro o conselho editorial do Pravda e fundador de várias revistas satíricas, como a Krokodil, que se dedicava à sátira política e, entre outros alvos que usava no seu trabalho, escarnecia do oportunismo político de muitos intelectuais e quadros soviéticos. Em 1932, Koltsov abriria a sua intervenção no decurso do I Congresso dos Escritores Soviéticos contando uma anedota sobre os burocratas sindicais. A maioria dos delegados presentes riu-se, mas o gesto teve imediatamente vozes contra. Estas argumentaram que «zombar do Estado proletário por meio dos velhos dispositivos satíricos e, assim sendo, abalar-lhe os alicerces (…) é, no mínimo, uma insensatez e uma desconsideração.» Pouco tempo depois Koltsov partiria para Espanha, onde iria trabalhar como correspondente durante a Guerra Civil. De regresso, foi preso logo em 1938, no âmbito dos Processos de Moscovo, sendo executado dois anos depois.
Entretanto, o avanço da dogmatização, da colectivização da opinião, da censura e da imposição do pensamento único, iria deixando as suas marcas também neste domínio. A vitória naquele Congresso, instaurador formal dos princípios do Realismo Socialista, fora a dos adversários de Koltsov. Um tal Panteleimon Romanov, levantou-se após a sua intervenção e falou do futuro do riso sob a ditadura do proletariado: «Gostaria de exprimir o desejo de que, quando terminar o Plano Quinquenal, a necessidade de haver sátira tenha desaparecido da União Soviética, deixando apenas lugar para um humor de grande precisão, que é o das gargalhadas de júbilo.» Ao «homem novo» deveria assim corresponder um «humor positivo» que exprimisse «o riso dos vencedores, um riso tão refrescante quanto o exercício matinal, um riso evocado não pela zombaria do herói mas sim pela alegria por ele».
Um passo importante na construção de uma disjunção entre um «humor» oficial, público, que era essencialmente propaganda, e um humor oficioso, privado, por vezes rebelde, impossível de controlar apesar da censura e do trabalho incansável dos informadores da polícia, que pertencia ao domínio essencial da vida colectiva traduzido no recurso à sátira e mesmo à zombaria. No ambiente maniqueísta vivido sob a extensão da luta de classes a todos os campos do real, o humor informal, expresso através de anedotas do domínio da cultura popular, foi rapidamente empurrado para uma classificação como acto contra-revolucionário, equiparável ao boato. Milhares de pessoas foram presas, exiladas e até mortas por contarem essas anedotas ou por não denunciarem quem o fazia. São os herdeiros, conscientes ou não, do valor excludente desse «humor positivo», sempre sectário, que ainda hoje consideram intolerável a crítica do sistema soviético morto e enterrado ou a dos seus discípulos.
Termino com outra anedota, uma das mais antigas da história da URSS, que talvez possa ter uma receptividade mais unânime. Uma velha camponesa está de visita ao jardim zoológico de Moscovo, onde vê um camelo pela primeira vez na vida. «Oh, meu Deus», diz a velhota, «vejam só o que os bolcheviques fizeram àquele cavalo.»
São muitas as fotografias de Vladimir Maiakovski nas quais este segura um cigarro aceso entre os dedos ou suspenso dos lábios. Sabemos como ao longo daquele século que deixámos para trás – existem livros inteiros sobre isso – o cigarro, para além do prazer sem constrangimentos que podia oferecer ou do vício pesado que teimava em perseguir, funcionava como um emblema de estilo, associado frequentemente a figurações de mistério, poder, volúpia ou inteligência. Aquilo que apenas hoje soube é que Maiakovski, proibido de fumar desde a juventude devido a doença pulmonar, insistia em exibir um cigarro aceso sempre que era fotografado. O que confirma o velho e sábio princípio dândi de acordo com o qual o estilo pode ser, é, um valioso arrimo da própria vida.