Author Archives: Rui Bebiano

Uma entrevista inútil

Parece-me escusada a entrevista que Maria Eugénia Neto, a viúva de Agostinho Neto, deu ao Expresso. E não gostei de ver o Expresso publicar uma entrevista que apenas serve para desvalorizar a personalidade da entrevistada e nada acrescenta a nada. As suas posições são ambíguas, fugidias, estão mal explicadas ou mostram algo que não se percebe muito bem se é astúcia ou simples dislate. A informação que oferece é nula: a entrevistadora parece até melhor informada que a entrevistada sobre os assuntos que esta supostamente deveria conhecer. E os comentários que Maria Eugénia faz aos momentos e episódios mais dramáticos da história angolana dos últimos 35 anos são sempre esquivos e irrelevantes: «não sei como foi», «não me apercebi», «são coisas em que não meti o nariz», «não quero entrar em pormenores», «estou-lhe a dizer que não sei», «não quero falar disso», [Neto] «não devia saber», [em casa] «não falava de coisas políticas». Para além das referências às circunstâncias dos primeiros anos da sua vida com Agostinho Neto, a parte mais afirmativa da entrevista ocorre quando, ao referir-se a Dalila Cabrita Mateus (co-autora do livro Purga em Angola, no qual se redescobre o golpe sangrento de 27 de Maio de 1977), considera que esta «é desonesta, é mentirosa». Porém, quando a jornalista pergunta, a propósito das informações avançadas no livro, «então quantas pessoas morreram?», a resposta daquela que era então a mulher do principal responsável do MPLA e do Estado angolano é tristemente esclarecedora: «Não sei, não estava dentro de nada. Mas isso é mentira».

    História, Memória

    Português nada suave

    Pacheco
    Luiz Pacheco, 1925-2008

    «Os Amigos são: simpáticos, afáveis, delicados, escondem-nos as verdades-verdadinhas, poupam-mos com hipocrisias e blandícias, são ambíguos às vezes, cobiçam-nos a fêmea (…). Os mesmos Amigos ouvem-nos com paciência, com ironia, disfarces, facadas ou bonacheiradas, promessas depois fáceis de não cumprir (esquecer ou iludir com outras inda mais tentadoras), fiteiros de uma figa que nos lixam na nossa máxima fraqueza ou dor como se, sim (e para dizer tudo), sim, como se a nossa queda desamparada na miséria ou no vício lhes servisse a eles, ou justificasse a eles, os auxiliasse a eles a vencer a eles nalguma coisa. Escutam. Fingem às vezes que acreditam. Com toda a compreensão.»
    «Os Amigos. Os Bambinos», Exercícios de Estilo, Estampa, 1971

      Memória, Recortes

      STASI minds

      Os resultados de um inquérito realizado pela Universidade Livre de Berlim, tendo como universo de respondentes cerca de 5.000 alunos alemães com idades compreendidas entre os 15 e os 17 anos moradores na Renânia do Norte-Vestefália, na Baviera, em Berlim e no Brandeburgo, foram encarados pelo Le Monde com bastante alarme. O diário francês considerou-os inquietantes e um claro sinal das graves lacunas na informação sobre a história recente do seu próprio país que muitos desses jovens possuem.

      Perto de 37 por cento deles, por exemplo, considerou que a STASI, o eficientíssimo órgão de segurança e de contra-informação do Estado da ex-RDA – que se autodesignava como «Escudo e Espada do Partido» e integrava milhões de agentes e informadores –, era «um serviço de informações como outro qualquer». 54,4 por cento dos inquiridos não tinha conhecimento do ano de construção do Muro de Berlim nem sabia que este foi erguido por iniciativa do governo comunista alemão. E 40 por cento entendia que o regime democrático no qual actualmente vive não é melhor que a anterior ditadura comunista, valorizando alguns factores de segurança no emprego que esta parecia assegurar.

      O singular é que um artigo não-assinado do Avante! («O sonho do socialismo») põe de lado as inquietações do Le Monde e não disfarça a felicidade e o contentamento pela desculpabilização do antigo regime leste-alemão que parece revelar a débil memória histórica dos jovens inquiridos. Fala rancorosamente, e com uma dose notável de ignorância e parcialidade, sobre «a verdadeira história do muro de Berlim e as pesadas responsabilidades das três potências administrativas ocidentais, que impuseram a divisão da Alemanha no pós-guerra contra a vontade da União Soviética»(*), e aponta alegremente para o facto de 32 por cento dos inquiridos não se importarem de regressar a um sistema no qual fosse possível recuperarem as «vantagens daquela sociedade», aceitando «restringir as suas liberdades individuais» para o conseguirem. As frases transcritas em itálico são do Avante!.

      (*) Disponível nas livrarias uma investigação sólida escrita num registo invulgar: O Muro de Berlim. 13 de Agosto de 1961 – 9 de Novembro de 1989, de Frederick Taylor (Tinta da China).

        Atualidade, Memória

        Exultate, jubilate

        Tive hoje a oportunidade de presenciar dois fedayin proibicionistas a entrarem lampeiros e coruscantes num restaurante sem espaço para fumadores. Li-lhes nos olhos e bebi-lhes das palavras a alegria e o arrebatamento dos iluminados. E tremi.

          Atualidade, Devaneios

          Agrião obrigatório

          O meu último post de 2007 era previsível e contém, digamos, uma espécie de declaração de derrota.

          Desde que o proibicionismo antitabagista se preparou para substituir as campanhas contra os malefícios do tabaco, insisti na ligação entre o gozo de fumar e práticas culturais tão válidas quanto o são aquelas que associamos ao consumo do álcool e do café. Serão males que, para muitas pessoas, se foram traduzindo num bem maior: o acesso a um padrão de vida que têm todo o direito de escolher. Em seu nome – e apesar de quase não fumar ou consumir bebidas alcoólicas – fui tomando aqui e ali a defesa de uma política equilibrada, capaz de combinar os interesses de todas as partes.

          Em vão, pois no final ganhou uma delas. Aquela que foi capaz de associar uma maioria de políticos e legisladores profissionais – que procuram mostrar um «ar de modernidade» empurrando, hipocritamente, concidadãos para um gueto – à minoria de fanáticos e exaltados que entende ser a sua maneira de viver a única irrepreensível e aquela que merece todos os direitos de cidadania.

          Por isso deixarei praticamente de fumar, uma vez que apenas o fazia em sociedade e não aceito passar a ser tratado a partir de agora como um pária. Confinado a expelir baforadas furtivas em pátios e portarias, exposto à chuva, ao vento e ao opróbrio dos higienistas triunfantes. Mas vou vingar-me nas carnes verdes, pois a minha esperança de vida ainda integra a possibilidade de me ver um dia reduzido ao consumo obrigatório do agrião, do nabo e da cenoura. Não posso perder tempo.

            Atualidade, Opinião

            Cumplicidades

            Diversos têm sido os blogues que têm apontado A Terceira Noite como um dos seus apeadeiros favoritos no ano que agora acaba. Como não se trata de mais uma votação sem critério visível, mas sim da expressão subjectiva do genuíno interesse de quem declara a escolha, agrada-me a empatia que ela revela.

            Esta aproximação leva-me a discordar em pelo menos um ponto do artigo «A cultura do blogue nacional», que José Pacheco Pereira fez sair no Público e agora divulga, ligeiramente ampliado, no seu Abrupto. No todo, ele parece-me um retrato transparente – embora apenas um retrato – deste território de partilha. Parece-me excessiva, porém, a crítica da rede das cumplicidades criadas entre esses «viveiros de elogios mútuos e de complacência» que considera dominarem a blogosfera portuguesa. Não que me agrade o «amiguismo» da citação, o constante cruzamento de hiperligações e referências em circuito fechado, o fechamento a quem se situe fora da mesma área política, o elogio da semelhança e a recusa liminar da diferença. São males reais, que diminuem a independência e o próprio impacto dos numerosos blogues que os praticam. Mas um dos aspectos que me parece mais característico deste espaço de comunicação é também a capacidade que este revela para gerar empatias e aproximações, concretizáveis ou não de uma forma física – o que aqui nem sequer é essencial – e criadoras de áreas de sociabilidade tão tonificantes e legítimas quanto o são aquelas que construímos, a partir do papel, em volta do jornal ou do cronista que nos agrada e escolhemos ler.

            É esta forma de solidariedade que me parece existir na enunciação de cumplicidades da qual A Terceira Noite tem sido objecto. E é por isso que ela me agrada. Obrigado pois pela preferência.

              Atualidade, Cibercultura

              «Os 100 Dias»

              Para um inventário do anedotário jornalístico de 2007: com um destaque idêntico aquele atribuído ao funeral de Benazzir Bhutto e à vaga de violência que o acompanhou, os telejornais recordaram ontem «os 100 dias no desemprego» do treinador de futebol José Mourinho. A normalização da falta de sensibilidade e de civismo associada à mais genuína estupidez.

                Etc.

                Déjà vu

                O último e mais substancial daqueles que, no Syllabus da encíclica Quanta Cura (1864), o papa Pio IX considerou serem os oitenta «principais erros» do seu tempo, consistia em aceitar que «o Pontífice Romano tem de se reconciliar e acordar com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna». Condenava-se ali, sem contemplações, aquilo que na altura era associado à chamada «heresia do americanismo»: a defesa da liberdade de religião e da liberdade de pensamento, bem como o reconhecimento da separação da Igreja do Estado. Lê-se o relato da manifestação que decorreu hoje em Espanha, organizada pelo Arcebispado de Madrid, com perto de um milhão de pessoas a gritarem na rua «por la familia cristiana» e «contra el laicismo radical», e sobrevém uma enjoativa sensação de déjà vu. Mas também de receio e incerteza.

                  Atualidade, História

                  Vício solitário

                  Dentro do grupo dos fumadores, faço parte de uma minoria que vai ser especialmente oprimida a partir do dia 1 de Janeiro. Acontece que gosto de fumar mas não sou viciado em tabaco: fumo apenas enquanto leio ou escrevo, no final de uma refeição mais forte ou demorada, em alturas sociais como jantares de amigos, aniversários, casamentos ou funerais. Além disso, pergunto sempre se incomodo antes de acender o cigarro, a cigarrilha ou um ocasional charuto, e jamais o faço em reuniões ou salas-de-espera, ou perto de crianças e de idosos não-fumadores. Depois não «travo o fumo», não o engulo, saboreio-o simplesmente, expelindo-o devagar e, por vezes, limpando com as mãos a nuvem que se forma. Um maço dá-me assim, à vontade, para três ou quatro dias. Na verdade fumo «culturalmente», levado, como acontece com todos os que fazem parte desta minoria, apenas pelo gosto genuíno de fumar e pela memória preservada do gesto. Parece-me assim injusto – além da nada razoável – que um hábito educado e pacífico passe a ser tomado como novo «pecado do vício solitário», execrado pelos moralistas de turno. Mas não me espantarei se estes vierem dizer-nos que provoca a cegueira, causa a impotência e conduz ao inferno.

                    Apontamentos, Olhares

                    O cão que mordeu o homem

                    O telejornal da SIC tem abusado dos grandes planos de um dos pivots acompanhados de uma legenda que anuncia «ÚLTIMA HORA» sobre um fundo a vermelho. Na noite de ontem, a chamada de atenção da apresentadora Clara de Sousa serviu para anunciar «a contratação do treinador português Artur Jorge pela selecção de futebol do Irão». Isto «após outros três grandes treinadores internacionais terem rejeitado o convite da federação iraniana». Gostava muito de saber em que escola de jornalismo se ensina esta técnica idiota para ludibriar o espectador e descredibilizar o próprio conceito de notícia de impacto. Só por curiosidade.

                      Apontamentos

                      Descrença

                      Creio que comecei a descrer por causa do Natal. Talvez por esperar que naquela noite um anjo me batesse à porta para anunciar: «e agora qualquer coisa de completamente diferente». Podia ser um sinal no céu, ou um enorme trovão, ou, melhor ainda, uma chuva de chocolates Candy-Bar (na época os meus preferidos). Mas nada, sempre nada. E cansei-me de tanto esperar. Talvez por isso, cada 26 de Dezembro passou para mim a ser um dia de conforto e bonança, no qual a ordem do mundo retoma o seu caminho sem qualquer mistério, equívocos ou truques baratos.

                        Apontamentos

                        Escritores da Liberdade

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                        No âmbito de uma das correntes que neste momento deslizam entre os blogues que se expressam em português, Joana Lopes considerou-me merecedor do «Prémio Escritores da Liberdade». Agradeço a lembrança e a simpatia, perdoando-lhe o exagero óbvio. Desta vez, porém, não me sinto capaz de manter a esperada sequência. Procurando não ser demasiado verboso – e menos ainda um grande chato – tento explicar porquê.

                        Como poderemos encontrar, no universo dos blogues, um «escritor da liberdade»? Um dos critérios será, naturalmente, seguir a trajectória do blogger, confirmando tanto quanto possível o seu papel, pela escrita e pela acção, e em todas as circunstâncias, na defesa da democracia e na afirmação da liberdade de expressão. Não vale, por exemplo, um resistente antifascista que no passado tenha fechado ou que hoje feche os olhos a múltiplas formas de coação da livre expressão da palavra. Esse jamais será um «escritor da liberdade».

                        Outro critério, mais lato e difícil de definir, situá-lo-á como aquele que actualmente seja capaz de pensar de forma autónoma e de exercer o direito à crítica sem pensar se aquilo que escreve ou diz se conforma com este ou aquele modelo. Chamemos-lhe escritor-herói: o que sistematicamente utiliza os instrumentos que tem à mão – um blogue, por exemplo – para escapar à lógica de padronização e de conivência que domina hoje a política e a comunicação social mainstream. E, mesmo de entre estes, só poderão verdadeiramente contar aqueles que forem capazes de exercer até ao fim a responsabilidade e a convicção do seu gesto, dando o nome, um contacto, e, quando necessário, também a cara. De outra forma, a sua ousadia facilmente se transforma em nada.

                        Nestas condições e feitas as contas – que não consideram muitos dos que já foram premiados, entre eles alguns dos nossos comuns amigos –, peço desculpa mas confesso-me incapaz de apontar mais do que dois ou três bloggers que conheço suficientemente bem para garantir a justeza do distintivo. Como julgo que eles pensam mais ou menos como eu, prefiro não os desafiar.

                          Apontamentos, Memória

                          Prémio Pessoa

                          Ainda que com atraso, não posso deixar de referir a merecida atribuição do Prémio Pessoa 2007 à historiadora Irene Flunser Pimentel. Para além desta distinção chamar a atenção de um público alargado para releituras não-assépticas de alguns temas da história portuguesa recente (as organizações femininas no Estado Novo, os judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, a PIDE e a censura, a propaganda da Mocidade Portuguesa Feminina, e, ao que se anuncia, também a vida de José Afonso), ela valoriza igualmente a requalificação da História como instrumento da cidadania. Permitindo ver de que forma se podem conjugar método e rigor com esse «dever de memória» que constitui, afinal, desde pelo menos Heródoto, a essência da própria actividade historiográfica. E mostrando como, neste campo, é possível – e também urgente – escrever ao mesmo tempo para dentro e para fora da academia. Sem que essa escolha implique necessariamente uma simplificação do discurso ou um abrandamento do seu grau de fundamentação. Os meus parabéns a Irene Pimentel.

                            Atualidade, História, Memória

                            Livros e mais livros

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                            São numerosos os blogues portugueses que falam habitualmente de livros, mas poucos os que se ocupam sobretudo dos livros. E menos ainda aqueles que procuram acompanhar de perto a actividade editorial, oferecendo com regularidade, para além de artigos sobre outros assuntos, leituras críticas actualizadas e consistentes. Nesta altura, talvez só o Da Literatura, animado por Eduardo Pitta e João Paulo Sousa, e em parte A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, o tenham vindo a fazer sem quebras aparentes. Chega agora, porém, o Bibliotecário de Babel, da iniciativa do jornalista, crítico e «veterano da blogosfera» José Mário Silva (um dos animadores do saudoso Blog de Esquerda, que fechou sem deixar substituto à altura). Além das notas críticas regulares e de alguns apontamentos avulsos, o José Mário oferece também informação actualizada sobre o universo dos livros, dos escritores e da edição, colocando ao nosso dispor uma excelente ferramenta. Assim consiga, ao que parece inteiramente a solo, manter a energia com a qual arranca. Um único reparo para aspectos do grafismo – a dimensão das colunas, as cores em tonalidades light, as fontes escolhidas, em particular a usada na citação que encima a coluna da direita – que atenuam um pouco o prazer da leitura deste interessante (e, espera-se, brevemente babélico) Bibliotecário.

                              Novidades

                              «Meia prostituta, meia freira»

                              Como adenda ao post Outubro (7), um fragmento de Anna Akhmatova, essa «mulherzinha fanática», «meia prostituta, meia freira», «representante típica de uma poesia vazia e desprovida de ideias, estranha ao nosso povo», de acordo com as palavras públicas de A. Jdanov. Akhmatova seria excluída da União dos Escritores e proibida de publicar durante décadas. Muitos poemas seus circularam, todavia, em versões samizdat.

                              Fiquei a saber como murcham os rostos
                              como das pálpebras o medo assoma,
                              como o sofrimento escreve nas faces
                              rijas páginas de escrita cuneiforme,
                              como se tornam súbito prateadas
                              as madeixas ruças, madeixas pretas,
                              murcha o sorriso nos lábios subjugados
                              e no risinho seco tremem medos.
                              E estou a rezar não só por mim, mas
                              por todas que estiveram ali comigo
                              no calor de Julho e no frio cruel
                              junto ao muro vermelho e cego.
                              (…)
                              Porque receio esquecer, na morte calma,
                              o ribombar dos carros negros, o estalido
                              da porta odiosa, e como uivava
                              uma velha, tal um animal ferido.
                              Que das pálpebras imóveis de bronze
                              corra, como lágrimas, derretida neve
                              e a pomba da prisão arrulhe ao longe
                              e naveguem lentas as naves pelo Neva.

                              De Só o Sangue Cheira a Sangue (Assírio & Alvim)
                              Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra

                                História, Recortes