Já aqui ficou demonstrado, com o apoio de instrutivos links, como a originalidade da ideia do governo Sócrates de co-financiar a produção do Magalhães, um «computador português» de baixo custo destinado aos alunos do ensino básico, é em certa medida uma fraude. Trata-se de colocar uma vez mais o carro à frente dos bois, pois o governo não tem investido o suficiente no apoio prioritário à introdução dos conteúdos na rede e no desenvolvimento das capacidades informáticas dos professores – a maioria pouco mais continua a saber fazer que servir-se primariamente do Word ou do Powerpoint e utilizar de forma quase sempre passiva o browser –, fornecendo assim o martelo sem dar os pregos. Mas constitui também um gesto de mau gosto, espera-se que não de mau agouro, organizar uma homenagem em vida ao secretário de Estado (e ex-«deputado informata») José Magalhães.
32 anos depois de Johnny Rotten ter pronunciado um primeiro «fuck off» em directo na televisão e de Anarchy In The U.K. ter sido lançado, 29 anos decorridos sobre a morte por overdose de heroína de Sid Vicious, ver e ouvir uns Sex Pistols recauchutados numa das noites do festival de Paredes de Coura apenas funcionará como momento nostálgico ou como sessão de espiritismo. Essencialmente efémero e ruminando uma arte pobre, ou mesmo uma não-arte, o movimento punk viveu depressa e morreu novo. Os média em breve tomaram posse dos seus vestígios e a cultura popular quase os esqueceu. Procurar revisitar-lhe a alma fora dos manuais de história dos anos setenta e da época do thatcherismo tem hoje qualquer coisa de mórbido e de patético.
Não se trata de uma juíza qualquer. Ana Gabriela Freitas, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, que acaba de tecer considerações onde utiliza qualificativos de carácter abertamente racista aplicados aos ciganos – os quais alega serem inapelavelmente «marginais e traiçoeiros» – é a mesmíssima magistrada que em 2005 mandou Fátima Felgueiras, recém-fugida a prisão e julgamento, aguardar o curso da justiça em liberdade. Por apenas «alegadamente» haver estado refugiada no Brasil, sendo a sua conhecida fuga coisa «aparente». Sorte a da Dona Fátima por não pertencer a essa mesma etnia que a dra. Gabriela considera levar uma vida sistematicamente «pouco edificante».
O governo chinês prometeu aquilo que todos sabíamos que jamais iria cumprir. Os honoráveis Comités Olímpicos fingiram que acreditaram. Os governos democráticos fizeram de conta que não era com eles. Os partidos políticos não consideraram o assunto uma prioridade. A Amnistia Internacional e outras organizações não-governamentais têm sublinhado a constante violação dos direitos humanos na China, mas a sua voz raramente passa das páginas interiores, dos suplementos de faits-divers, das entrelinhas do teletexto.
Incomodam-me os activistas de uma causa só. Os que apenas observam o seu ângulo do mundo, o seu estrito móbil, a sua obsessão, distraindo-se de tudo o resto. «Save the whales» e que se lixe o próximo. Muitas organizações ecologistas partilham dessa atitude, e por isso, apesar da importância de alguns dos seus motivos, as olho quase sempre com desconfiança. Já passou muito tempo, bem sei, mas não esqueço como algumas delas se aproximaram, durante a República de Weimar, do nacional-socialismo. Ou como para muitas não existe política fora das questões ambientais. O movimento Greenpeace elogia agora o empenhamento das autoridades chinesas em fazer da sua capital um bilhete-postal, um cartão de visita, um primor: «O que é particularmente singular nestes Jogos Olímpicos é que vão deixar um legado ambiental importante na cidade de Pequim em áreas como os transportes, infra-estruturas, energias renováveis, gestão da água e resíduos.» Uma cidade histórica mas moderna, assombrosa, com amplas avenidas e muito clean. Desejável, mais verde e cheia de brisas favoráveis aos passantes. Bem limpa de ratos, de mendigos e de discrepantes.
Uma das frases mais profundas que ouvi nos últimos tempos foi pronunciada ontem por um comentador que se referia à etapa decisiva do Tour-2008: «A História pode escrever-se no papel, mas faz-se em cima de uma bicicleta». Aprende-se muito a ouvir os noticiários desportivos.
O louco da aldeia representa sempre um duplo papel: funciona como divertimento daqueles que são incapazes de escapar às rígidas normas da vida comunitária e descodifica a realidade através de metáforas inusitadas e enigmáticas. Aquilo que diz raramente faz sentido, mas é sempre escutado. São esses os sinais da diferença que o tornam ao mesmo tempo relevante e rejeitado. Suspeito que em sociedades mais complexas ele possa perder a importância primordial, dada a proliferação de códigos e de vozes. Porém, quando vejo na televisão o programa A Liga dos Últimos, perco a certeza de que a sua função originária se tenha tornado descartável.
A pretexto de uma ideia inicial curiosa – encontrar e mostrar a alma das piores equipas do futebol federado – passou a organizar-se ali uma espécie de vitrina nacional para pessoas dementes, bêbedos incorrigíveis, mulheres subjugadas, idosos senis e pobres diabos. Pessoas sem dinheiro, sem poder, sem instrução, de roupa disforme e dentes invariavelmente estragados, que, de tão contentes por defenderem o clube da sua terra e de por uma vez sem exemplo lhes ser dada voz, se deixam humilhar diante de todos. Uma iniciativa indigna que nos deveria encher a todos de pena e de tristeza. Mas que a estação «pública» passa sem remorso – e com a exibição de um ar de obsceno gozo da parte dos apresentadores – no horário nobre das sextas à noite.
Tal como muitos outros gadje, mais ou menos instruídos e ciosos de exotismo, que até um passado recente recolheram, a ocidente, a tradição iluminista de deferência por quem nos chegava do Levante, partilhei um dia uma certa atracção pela figura, supostamente misteriosa e refractária, do cigano. O retrato de Carmen, a tabaqueira sedutora de Mérimée e de Bizet, como a silhueta da beldade dançante de flamenco, a «linda cigana», reproduzida nos maços de Gitanes que fumei aos milhares ou em quadros decorativos para as paredes da classe média da província, acompanhavam, a par do interesse menos comum por algumas das Rapsódias Húngaras de Liszt ou pela guitarra de Django Reinhardt tocando Les Yeux Noirs, a atracção quase atávica por esse universo paralelo que imaginava livre e feliz. E fazia esquecer o rasto de pobreza, fedor, lixo e desolação deixado pela maioria dos ciganos que conhecia.
Talvez seja nessa romantização orientalista e partilhada da figura do cigano, ou da sua cultura própria – associada a uma absolutização dos valores da solidariedade para com os humilhados e os diferentes -, que reside a origem de um certo desinteresse de alguns dos defensores do Estado social pelos destinos das comunidades romani. Em Portugal, muito mais que em Espanha ou em França, onde uma presença e uma tradição cultural afirmativa empurraram as populações nómadas, ou recém-sedentarizadas, para outro patamar de visibilidade social, essa idealização e essa displicência conduziram a uma situação dramática. Saber, seguindo os dados publicados no Expresso, que, entre os cerca de 50 milhares de ciganos portugueses apenas existem 4 licenciados, e que 35.000 deles recebem o Rendimento Social de Inserção (o que não impede uma parte significativa de se dedicar à mendicidade), não pode deixar-nos apenas atónitos: deve deixar-nos também tristes pelo espectáculo de miséria humana que apenas os focos mediatizados de exclusão, de racismo ou de violência, e os relatórios da PSP e da GNR, tornam visível. E não nos venham dizer que é lá com eles e com a sua cultura extravagante, resistente e persistentemente «admirável». É preciso fazer mais, muito mais. De um modo fraterno mas também com firmeza. Ouvindo e falando.
P.S. em 28.Jul.2008 – Se as afirmações de um dos fundadores da União Romani Portuguesa e do coordenador do gabinete de apoio às comunidades ciganas junto do Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural, transcritas hoje pelo Público, captam a essência das suas declarações ao jornal, estamos perante um bom exemplo de atitudes que mostram uma preferência por conhecer ou compreender a «admirável» diferença, ou mesmo por atribuir apenas a um dos lados a culpa da «guetização», em vez de promoverem condições para uma afirmação conjugada da integração, da afirmação identitária e da valorização desta minoria no âmbito da nossa vida colectiva.
Se bem que a sua sombra assome ainda em algumas evocações, a Guerra Fria terminou com a liquidação da União Soviética. Não pode dizer-se, porém, que o mundo que lhe sucedeu seja mais seguro do que aquele que lhe serviu de cenário, e prova disso é que um dos espectros que alimentou – o de uma guerra nuclear causadora do Armagedão – continua presente. Tal como há trinta ou quarenta anos atrás, a fonte do perigo reside menos na capacidade do armamento do que nas mãos de quem dele se possa servir.
A verdade é que as armas de destruição maciça incorporam um perigo potencial que advém, em primeiro lugar, do facto de a sua gestão ser de natureza humana e, nessa condição, de o seu uso jamais poder ser inteiramente previsível. Só que existem imprevisíveis menos imprevisíveis que outros, e colocar em idêntico plano a posse de armas nucleares pelos Estados Unidos e por Israel, ou mesmo pela China, com aquela que ocorre em países instáveis, como o Paquistão, ou que se encontra nas mãos de fanáticos como o são muitos dos dirigentes iranianos, tal como António Vilarigues deixa hoje implícito no Público, é pura demagogia.
Para relativizar o perigo iraniano, assevera mesmo AV que algumas dessas armas se encontram igualmente nas mãos deu um Estado, Israel, «que se reclama de origem divina». Como se a identidade cultural e religiosa do Estado hebraico – não falo, naturalmente, dos grupos de extremistas judaicos que também o habitam – possa ser comparável à do Irão, onde o recuo civilizacional imposto por uma leitura literal do Corão se tem traduzido numa presença no poder de sectores que associam a prática política à dimensão, primordialmente religiosa e penitencial, da vida terrena. Todos sabemos como os falcões americanos ou israelitas não são propriamente meninos de coro, mas a verdade é que eles movem-se no interior de regimes democráticos, sob um razoável controlo da opinião pública e da comunidade internacional: torná-los piores que os iranianos é puro dislate. AV recupera também, pela enésima vez, os exemplos abomináveis de Hiroshima e de Nagasaki, mas qualquer pessoa sensata concordará que evocá-los como molas percutoras da actual política internacional americana é tão anacrónico como servir-se do Pacto Gernano-Soviético de 1939 para atacar a linha política dos actuais partidos comunistas.
Em Persepolis, a perturbante banda desenhada autobiográfica entretanto transformada em filme de animação, Marjane Satrapi fala-nos desse universo no qual a razão de Estado e os direitos das pessoas comuns (ali principalmente os das mulheres) se encontram submetidos à voracidade dos impulsos motivados por uma moral redentora cuja essência está para além do humano. O slideshow que aqui se apresenta permite-nos também revisitar parte desse universo tão próximo. É nas mãos de gente que admite, estimula ou legitima a violência extrema que este «normaliza» que pode estar, ou que pode vir a estar, a capacidade de manipulação de armamento nuclear. Colocar esta situação ao mesmo nível, ou a um nível menos ruinoso, daquele que pode ser associado a outros países que o utilizam hoje «apenas» como instrumento de dissuasão ou de chantagem – ou, pior, conferir-lhe uma dimensão emancipatória (embora não seja esta, sublinho, a posição de AV) –, só não é uma atitude de cegueira porque se funda numa linha política cujo suporte ético transforma sistematicamente em amigo, ou pelo menos em aliado, o inimigo do inimigo. Ainda que este possa encarnar o Mal na sua formulação mais absoluta e manifesta. Que importa isso perante a possibilidade de dar um bom puxão de orelhas aos bastardos do Império?
Clique nos botões para mover o slideshow.
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Existe um website do Dr. Dragan Dabic. E também uma biografia. Um disfarce fora do comum, sem dúvida, que permitiu a Karadzic – para quem, na pele de Dabic, «por trás de cada homem capaz existe sempre outro homem capaz» – construir uma nova vida pública e quase fazer esquecer a primeira. Quase.
O regresso aos ecrãs da televisão do «caso Maddie», suscitado pelo arquivamento do inquérito que foi anunciado pela Procuradoria-Geral da República, trouxe também de volta às nossas casas um certo jornalismo de escoadouro – as cansativas reportagens realizadas em Inglaterra pela RTP1 constituem um deplorável exemplo – ocupado em provocar desconfianças, em suscitar animosidades, em exacerbar irrelevâncias e sobretudo em reanimar junto do espectador um interesse diluído pelo efeito de banalização que ele mesmo despoletou.
A captura de Radovan Karadzic, infelizmente tardia, leva-me a conceber o duro labor do cabeleireiro que trabalha para os calabouços do Tribunal Penal Internacional, com sede na Haia. O ex-general Ratko Mladic exigirá, espera-se, bem menos esforço daquele profissional.
Mudando de registo: esta gente não merece o respeito que o TPI lhe irá inevitavelmente garantir. Sarajevo e Srebrenica existiram, os seus executores também. Perdoar nestes casos é impossível, pois eles não perdoaram.
Um texto muito mas muito abrasivo de João Tunes. Num registo paródico engatado algures entre entre as correntes de aço de um realismo socialista às arrecuas e uma versão outlet do nosso mais suave e escorreito neo-realismo. Jamais saberei servir-me desta forma da lixa número 1.
«O único lado» ao qual o novo partido Movimento Mérito e Sociedade aceita pertencer «é ao lado da frente». Para lá chegarmos será necessária uma força, esta, a única realmente capaz de dirigir «a estratégia e a política de desenvolvimento» em condições de «resolver de forma sensata os aspectos negativos da nossa organização social, política e económica». Claro que o MMS não é de esquerda, direita ou centro, uma vez que «esses são conceitos que já não se aplicam a uma sociedade contemporânea», pois «tiveram o seu papel na história mas estão ultrapassados». No essencial, é preciso levar o mérito ao poder, pois o seu reconhecimento «constitui um fantástico indutor de desenvolvimento equilibrado e sustentado de uma sociedade». Este permitirá maximizar «o espírito de conquista e desembaraço dos portugueses», que afinal até dispõem da maior zona económica marítima da Europa como «princípio activo». Ora aqui estão a mensagem e o discurso mobilizador dos quais andávamos há tanto tempo à espera. Falta agora levá-los «a todas as famílias e a todas as casas». Passando à frente dos missionários da Bíblia, dos angariadores do Citibank e dos adeptos irredutíveis do SMS.
Publicado originalmente no programa de sala de Platónov, de Anton Tchékhov. No Teatro Nacional São João, Porto. Encenação de Nuno Cardoso.
Pode um herói sobreviver distante da luz? Teseu terá morrido infeliz por ter sido abandonado pelos atenienses, quando acreditava merecer todas as honras pela bravura que, sozinho e por repetidas vezes, revelara sob o olhar dos deuses. Napoleão não resistiu ao silêncio das noites em Elba e deixou-se amargurar até ao fim em Santa Helena. Garibaldi foi incapaz de suportar o primeiro dos exílios na ilha de Caprera. É próprio dos heróis lutarem ao sol, convivendo mal com a obscuridade e o esquecimento.
A atitude heróica pode afirmar-se como uma disposição admirável, mas não o é sem pesados custos para quem a exercite. A força que o herói detém permite-lhe impor aos outros a dimensão exemplar das suas qualidades, mas estas definem sempre um compromisso entre o seu desejo de se distanciar da vulgaridade e as exigências de estabilidade e de normalização que pautam a sociedade que lhe serve de cenário. É sempre um errante, deambulando entre um mundo superior que só ele consegue vislumbrar e a realidade de uma vida terrena, estável e repetitiva, afundada na vulgaridade, que contraria a sua essência. Assume uma capacidade para criar o único e o novo – nos gestos, nas palavras, nas atitudes – como expressão da mais elevada forma de viver o humano, mas essa condição força-o a uma inexorável solidão, afastando-o da comunidade.
Por isso o herói – como o anti-herói, que não é o seu oposto mas uma sua contrafacção, menos harmónica e mais frágil, contida em regra pela vaidade e pelo egoísmo – apenas o é num insulamento que cultiva. Este pode ser fonte de grandeza, mas também instrumento de uma queda que o conduz à decadência e à morte. Na Crítica da Razão Prática, Kant excluiu o culto do heroísmo da pedagogia da moral justamente porque este impõe um afastamento «dos deveres comuns e correntes» para com os outros, que aos olhos dos seus cultores parecem insignificantes e descartáveis. Estes auto-excluem-se de uma vivência partilhada, embora necessitem dela como quadro que valida esse destaque que sempre demandam.
A figura de Platónov inscreve-se nesta categoria de ser que caminha a passo, apenas aparentemente seguro, entre a luz que espera de uma condição que estabelece para si próprio como rara, invulgar, e a sombra imposta por um meio que a não aceita como sua. Herói para si próprio, porque se presume singular e necessário, e anti-herói para os outros, que apenas o olham como um corpo estranho, irregular, ocasionalmente admirado, quase sempre desprezado, ou, no limite, invejado e odiado pela desfaçatez de transportar consigo o estigma da diferença.
«A mim nada me pode estorvar. Eu sou como uma pedra imóvel. As pedras imóveis são para estorvar…», declara, sempre ostensivo, algures no primeiro acto. Amoral, crendo-se imune tanto à admiração como ao amor, à estima como ao ódio. «A felicidade individual é egoísmo», concederá mais adiante, «e a infelicidade individual é uma virtude!» Mas, ainda aí, o Platónov-personagem apenas retomará, no essencial, o mal de vivre romântico que não é comiseração mas êxtase, determinado pela condição própria do solitário.
As estratégias de sobrevivência de Platónov passam ainda pelo cinismo e pela paródia. A vida comum parece-lhe abjecta e não hesita em afirmá-lo, mesmo correndo o risco de magoar os seus próximos. «Vamos beber pelo fim auspicioso de todas as amizades, incluindo a nossa!», atira a Anna Petrovna. As qualidades comuns e as grandes expectativas merecem-lhe a derrisão e inspiram-lhe o constante sarcasmo. Que alarga a si próprio, ainda que – uma vez mais – o faça para marcar a própria singularidade. Para Sofia Egoróvna: «Sem falar das outras pessoas, o que é que eu fiz para mim pessoalmente? O que é que semeei em mim, o que acalentei, o que fiz crescer?… Tenho vinte e sete anos, aos trinta serei o mesmo – não prevejo mudanças! Depois serei gordo e negligente, o entorpecimento, a completa indiferença por tudo o que não seja a carne, e por fim a morte! A minha vida está perdida!». «Admirem-me por isso!», faltar-lhe-á dizer.
Quando anuncia o suicídio que verdadeiramente será incapaz de cometer – «Finita la commedia! Menos um canalha inteligente!» – enuncia ainda o carácter trágico e irrevogável da incompreensão diante do único, e a sua forma de percorrer este mundo sempre e sempre como um actor. De pé à boca de cena, fugindo de uma penumbra que acredita não ser para si e jamais merecer.
No final, trespassado já pelo tiro fatal de Sofia, resta-lhe apenas o espanto de um momento, o derradeiro – «Espere, espere… Mas que é isso?» – que o herói, como o anti-herói, jamais concebe: o da morte que o remeterá ao implacável desfecho, à escuridão eterna. À vulgaridade.
Pode ler aqui um texto de Filipe Guerra que consta do mesmo programa.
Completa hoje 90 anos de idade o sócio número 37096 do Sporting Clube de Portugal, Nelson Rolihlahla Mandela, nascido a 18 de Julho de 1918 em Qunu, Transkai, África do Sul.
Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein, foi, provavelmente, um dos filmes que mais vezes vi. Todas elas, salvo uma, na época em que «ir ver o Potemkine», em sessões privadas e com legendas invariavelmente em francês, representava, mais que um momento de amor pelo cinema, um pequeno gesto de ousadia (porventura mais imaginada do que real) e de aprendizagem de militância. Dele emergia, em cada uma daquelas salas escuras, apinhadas de jovens sentados no chão que se esforçavam por ignorar o ruído incomodativo do projector, a apreensão de um modelo de heroísmo revolucionário e daquele que poderia, em parte, ser um dia o seu próprio destino. E também o reconhecimento da génese de uma salvífica e exemplar Revolução (assim mesmo, com um R maiúsculo). A de Outubro, naturalmente.
Originalmente o filme deveria constituir apenas um de seis episódios de um projecto mais abrangente, o qual, todavia, jamais foi terminado. De acordo com Manuel Cintra Ferreira, «o que devia ser um amplo fresco do ano revolucionário de 1905 transformou-se ali na narrativa de um único acontecimento, e mesmo um dos menos significativos que, pela força das imagens novas criadas por Eisenstein, se tornou o símbolo da revolução, e uma sequência imaginada pelo realizador, o massacre na escadaria, o episódio central da narrativa.» Hoje mesmo, na colecção «Grandes Realizadores», o Público oferece a versão restaurada desta obra-prima de Eisenstein, realizada em 1925. Poderemos revê-la agora, essencialmente, como objecto plástico e como documento histórico. Não enquanto reconstituição de um episódio – que o não é, pois incorpora numerosas fantasias -, mas como peça importante na edificação da estrutura mítica do ideal comunista. E como módulo utilizado na fundamentação de uma experiência que cumpriu a sua missão histórica. Para alguns, todavia, as suas imagens permanecem como parte constitutiva do seu próprio crisol de convicções. Também por isso elas continuam presentes.
Jean Ferrat – Potemkine
PS – Sobre a Revolução de Outubro vejam-se aqui alguns textos publicados neste blogue. Todos eles pertencem a uma série que ainda não se encontra concluída.