A ignição iraniana

Se bem que a sua sombra assome ainda em algumas evocações, a Guerra Fria terminou com a liquidação da União Soviética. Não pode dizer-se, porém, que o mundo que lhe sucedeu seja mais seguro do que aquele que lhe serviu de cenário, e prova disso é que um dos espectros que alimentou – o de uma guerra nuclear causadora do Armagedão – continua presente. Tal como há trinta ou quarenta anos atrás, a fonte do perigo reside menos na capacidade do armamento do que nas mãos de quem dele se possa servir.

A verdade é que as armas de destruição maciça incorporam um perigo potencial que advém, em primeiro lugar, do facto de a sua gestão ser de natureza humana e, nessa condição, de o seu uso jamais poder ser inteiramente previsível. Só que existem imprevisíveis menos imprevisíveis que outros, e colocar em idêntico plano a posse de armas nucleares pelos Estados Unidos e por Israel, ou mesmo pela China, com aquela que ocorre em países instáveis, como o Paquistão, ou que se encontra nas mãos de fanáticos como o são muitos dos dirigentes iranianos, tal como António Vilarigues deixa hoje implícito no Público, é pura demagogia.

Para relativizar o perigo iraniano, assevera mesmo AV que algumas dessas armas se encontram igualmente nas mãos deu um Estado, Israel, «que se reclama de origem divina». Como se a identidade cultural e religiosa do Estado hebraico – não falo, naturalmente, dos grupos de extremistas judaicos que também o habitam – possa ser comparável à do Irão, onde o recuo civilizacional imposto por uma leitura literal do Corão se tem traduzido numa presença no poder de sectores que associam a prática política à dimensão, primordialmente religiosa e penitencial, da vida terrena. Todos sabemos como os falcões americanos ou israelitas não são propriamente meninos de coro, mas a verdade é que eles movem-se no interior de regimes democráticos, sob um razoável controlo da opinião pública e da comunidade internacional: torná-los piores que os iranianos é puro dislate. AV recupera também, pela enésima vez, os exemplos abomináveis de Hiroshima e de Nagasaki, mas qualquer pessoa sensata concordará que evocá-los como molas percutoras da actual política internacional americana é tão anacrónico como servir-se do Pacto Gernano-Soviético de 1939 para atacar a linha política dos actuais partidos comunistas.

Em Persepolis, a perturbante banda desenhada autobiográfica entretanto transformada em filme de animação, Marjane Satrapi fala-nos desse universo no qual a razão de Estado e os direitos das pessoas comuns (ali principalmente os das mulheres) se encontram submetidos à voracidade dos impulsos motivados por uma moral redentora cuja essência está para além do humano. O slideshow que aqui se apresenta permite-nos também revisitar parte desse universo tão próximo. É nas mãos de gente que admite, estimula ou legitima a violência extrema que este «normaliza» que pode estar, ou que pode vir a estar, a capacidade de manipulação de armamento nuclear. Colocar esta situação ao mesmo nível, ou a um nível menos ruinoso, daquele que pode ser associado a outros países que o utilizam hoje «apenas» como instrumento de dissuasão ou de chantagem – ou, pior, conferir-lhe uma dimensão emancipatória (embora não seja esta, sublinho, a posição de AV) –, só não é uma atitude de cegueira porque se funda numa linha política cujo suporte ético transforma sistematicamente em amigo, ou pelo menos em aliado, o inimigo do inimigo. Ainda que este possa encarnar o Mal na sua formulação mais absoluta e manifesta. Que importa isso perante a possibilidade de dar um bom puxão de orelhas aos bastardos do Império?

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