E por falar em teorias da conspiração: acaba de me chegar a nova edição, actualizada, do The Rough Guide to Conspiracy Theories, de James McConnachie e Robin Tudge. Dos Templários a Litvinenko, passando pelas hipóteses mais ou menos delirantes acerca das causas da Peste Negra, da negação do Holocausto, da morte de Elvis Presley ou da explicação do 9/11. Um instrumento de trabalho muito útil – com bibliografia e links actualizados – para rever a origem de determinados mitos, reconsiderar algumas possibilidades ou inventariar perfeitas tolices que podem mover montanhas.
Detestando tudo aquilo que o candidato John McCain representa – para a América e para o mundo – não posso deixar de ver com alguma pena que os blogues capazes de fazerem ecoar a menor ventosidade que este possa expelir para atacarem a sua campanha – com o meu aplauso, sublinho –, façam agora de contas que não se passou aquilo que se passou e que pode ser visto aqui. A democracia, desculpem lá, passa também por reconhecer a razão e a frontalidade dos nossos adversários. Sem que com eles tenhamos de pactuar. O vale-tudo em política tem uma história muito trágica.
(Ui, já estou a ver o pessoal das teorias da conspiração a dizer que aquelas pessoas foram plantadas ali de propósito, para ajudarem a limpar diante do eleitorado hesitante a imagem do candidato republicano. E que assim fosse?)
A vila de Ansião – velhas placas indicativas ainda lhe chamam «Ançião» – situa-se numa das regiões mais deprimidas do país. Refiro-me a uma área situada a norte do distrito de Leiria, que começa a leste do concelho de Pombal, onde o mar já fica longe demais para dele se sentir o odor, e se estende depois por essa mancha verde-escura, chamada «do pinhal», que segue até à serra da Lousã e se prolonga a nordeste pelos distritos de Coimbra e Castelo Branco. Apesar da melhoria das estradas e de alguns esforços no sentido de contrariar a desertificação que ali se iniciou com a emigração rural da década de 1960, trata-se de uma região que permanece sem perspectivas de desenvolvimento visíveis, assente ainda numa agricultura de subsistência que tende a desaparecer, no pequeno comércio que não pode concorrer com os hipermercados mais próximos e em serviços quase inteiramente dependentes do Estado ou das autarquias. Existem tentativas para inverter o processo, algumas delas a partir de expectativas criadas por um turismo incipiente, mas o panorama não é animador, persistindo a fuga de muitos habitantes para os centros populacionais maiores, onde a vida é menos monótona e talvez exista mais emprego. Nada de estranho, como é sabido, uma vez que esta é uma tendência que segue a de outros países europeus nos quais a concentração urbana se iniciou mais cedo, transformando áreas outrora prósperas em autênticas no man’s land.
Mas porquê individualizar aqui Ansião? Porque foi ali que Cavaco Silva inaugurou ontem, com a inevitável pompa assegurada pela ordem unida da valorosa corporação de bombeiros e pela vestimenta de ver-a-Deus das autoridades nativas, um «Centro de Negócios» (sic), «com serviços de apoio ao tecido empresarial de todo o concelho», no qual se esturraram dois milhões de euros. O carácter megalómano e absurdo da empresa parecerá óbvio a qualquer pessoa com a cabeça fria e sem interesses no projecto. Ela terá resultado, ainda admito, de um esforço que a autarquia – falha talvez de alternativas, mas com orçamentos razoavelmente generosos associados a fundos comunitários – rápida e facilmente acarinhou. Mas é dramático não parecer existir uma voz audível, e com capacidade de intervenção, que pudesse ter impedido um disparate destes. Que possa impedir desatinos desta grandeza.
Como todos sabemos, o país está, aliás, repleto de situações análogas. «Parques industriais» sem um plano de ocupação, «centros de congressos» ao abandono, «centros culturais» sem uma actividade estruturada, «auditórios» sobredimensionados, «museus» semi-vazios ou organizados sem critério, «bibliotecas» razoavelmente equipadas mas sem dinamismo, «pavilhões gimnodesportivos» excessivos para as necessidades locais, tantas vezes projectados sem norte, sem uma clara política de gestão e sem uma programação que lhes dê sentido, sem quadros até que os saibam orientar. E gastando milhares de milhões, muitos milhares de milhões. Para não falar das praças, rotundas e avenidas tantas vezes desnecessárias (uma queixa estafada dos eternos maledicentes, como é sabido), ou das estátuas e esculturas quase sempre de mau ou deplorável gosto, erguidas muitas das vezes apenas para alimentar a vaidade dos pequenos nabucodonosores locais ou para assombrar o povo com a magnitude do seu poder. Claro que existem algumas obras de mérito e de utilidade, e não serão poucas, mas a regra ainda é o desleixo, a inadequação e o despesismo.
Entendo perfeitamente que, a estas coisas, os governos e os partidos que são alternativa de poder, habitualmente com um discurso público sobre o rigor financeiro, façam ouvidos de mercador. Uma grande parte destas iniciativas parte afinal das suas clientelas, e assegura muitas das vezes – panis et circencis – a manutenção local de um score eleitoral favorável. Digamos que sob uma determinada perspectiva não se trata de desperdício financeiro, mas antes de um bom investimento político. E daqui por mil anos, quando desenterrarem toda esta parafernália de cimento, aço e betão, os arqueólogos do século XXXI pensarão ter encontrado vestígios de uma época de singular prosperidade. Embora dominada por um gosto algo duvidoso.
Não acontece apenas no palacete do Largo do Rato. Também entre os homens e as mulheres da Fundação Nobel, que não foram capazes de atribuir o Prémio da Paz ao dissidente Hu Jia, escasseia a coragem. Hu é neste momento o mais conhecido e reconhecido activista chinês dos direitos humanos. Encontra-se, desde Abril deste ano, a cumprir uma pena de três anos e meio de prisão por «incitar à subversão contra o poder de Estado».
Confira-se entretanto o cinismo das autoridades chinesas ao manterem um site, em inglês, em louvor da actual situação dos Direitos Humanos num país que controlam com pulso de ferro.
«Si du moins il m’était laissé assez de temps pour accomplir mon œuvre, je ne manquerais pas de la marquer au sceau de ce Temps dont l’idée s’imposait à moi avec tant de force aujourd’hui, et j’y décrirais les hommes, cela dût-il les faire ressembler à des êtres monstrueux, comme occupant dans le Temps une place autrement considérable que celle si restreinte qui leur est réservée dans l’espace, une place, au contraire, prolongée sans mesure, puisqu’ils touchent simultanément, comme des géants, plongés dans les années, à des époques vécues par eux, si distantes, – entre lesquelles tant de jours sont venus se placer – dans le Temps.» (M. Proust)
A atitude indigna e pusilânime dos deputados do Partido Socialista que hoje votaram na Assembleia da República contra a sua consciência – somados àqueles, parceiros de bancada, que habitualmente apenas se limitam a votar no que as direcções do grupo e do partido desejam que seja votado, e que têm a consciência apontada noutras direcções – acabará por voltar-se contra o partido e contra eles próprios. Contra o partido, porque ela pacifica a parte homofóbica e mais despolitizada do eleitorado ao rejeitar a lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo mas implica uma perda de respeito da parte de alguns dos sectores mais democráticos, empenhados e modernos da sociedade que governa. Contra eles próprios, porque assim, com atitudes deste jaez, vão perdendo de vez a já limitada estima que ainda poderiam colher junto dos cidadãos que prezam, nas pessoas públicas, o rasgo, a coragem e a rectidão de princípios. Quem os avisa…
A um turista que tenha passado acidentalmente por Melbourne ninguém fará perguntas sobre a saúde financeira da Austrália, mas a mim, porque estive durante alguns dias do último Agosto na Islândia, tem sido insistentemente perguntado se já então notara indícios da crise que pode agora levar a ilha à bancarrota. Confesso que tenho feito um esforço para recordar alguma coisa: um sinal, um sintoma, uma indicação, uma ameaça. Será que Briet, a bonita recepcionista do hotel, sobrevivia já, sem que eu me apercebesse, com uma única refeição diária? Correria à boca pequena que os edifícios da Biblioteca Universitária estavam hipotecados ao banco Kaupthing e eu fiz orelhas moucas? Teriam os músicos daquele memorável concerto no Kjarvalsstöðum revelado ao público que os seus instrumentos eram propriedade da máfia russa e eu simplesmente achei que se tratava de uma piada? Mas nada, nenhum prenúncio, sinal algum. Ao contrário, a vida parecia correr normal, tranquila, com marcas bem visíveis de prosperidade e optimismo. É verdade que pairava sempre sobre o país a ameaça de arrastamento até a um mundo inferior como aquele que o professor Otto Lidenbrock e o seu sobrinho Axel descobriram, no conhecido romance de Júlio Verne, ser capaz de unir o vulcão de Sneffels ao centro da Terra, mas não se notava que os habitantes de Reiquiavique se preocupassem de maneira especial com tal eventualidade. Tudo, de facto, parecia correr bem. É essa aparente ausência de presságios que torna a situação actual ainda mais assustadora.
Saul Leiter, Café des Deux Magots, Saint-Germain-des-Prés, 1959 [mais]
No breve mas esplêndido Paris, recém-editado pela Tinta da China, um livro que data de 1991 mas contém reminiscências muito anteriores, Julien Green falava da nostalgia que experimentava pela cidade, a sua cidade, dos tempos medievais. Uma época, dizia, na qual «o homem ainda era habitado intimamente por uma paz que nós já perdemos». Essa simpatia colocava-o numa posição inteiramente oposta à enunciada pelos românticos, para os quais a fonte de atracção pelo mundo dos castelos e das catedrais advinha de uma percepção heróica e romanesca da vida que os havia preenchido. Ou, pelo menos, da vida daqueles – cavaleiros e donzelas, príncipes e santos, bom povo devoto e respeitador da vontade dos seus padres e senhores – que nesse mundo a um tempo verdadeiro e imaginado verdadeiramente contavam.
Jamais senti uma «nostalgia em diferido» dessa natureza, uma inclinação afectiva, absoluta e incondicional, pelo silêncio e pelos seus cenários plausíveis do passado. Mas tenho-a – com a mesma legitimidade e idêntica dose de engano – por certos tempos de ruído que não vivi. Nos quais era possível experimentar rumores que, ao invés daqueles, misturados, que hoje nos seguem para todo o lado, mesmo até ao interior das casas e dos quartos onde dormimos, pareciam então o único ruído sobre a Terra.
De todos eles, vindos de diferentes tempos, um daqueles que se afigura como mais atraente e fecundo para pessoas da minha geração, ou próximas dela, talvez seja o de certos cafés da Paris do pós-guerra, narrados e reinventados em inúmeros filmes e romances, ou pelas descrições de espectadores em trânsito como Antony Beevor (Paris after the Liberation: 1944 -1949, já traduzido), Stanley Karnow (Paris in the Fifties) ou James Campbell (Paris Interzone. Richard Wright, Lolita, Boris Vian and others on the Left Bank 1946-1960). Nos quais a ressaca dos anos beligerantes de pólvora e morte, da desconfiança perante todos os olhares, dos futuros sitiados, parecia abrir espaço para todos os possíveis mais impossíveis, incluindo-se nestes o desfrute do excesso. O fragor nocturno/diurno das conversas cruzadas, o fumo dos cigarros consumidos até ao fim em ambientes fechados, os aromas da pastelaria fina, das bebidas alcoólicas, da roupa das mulheres, da tinta no papel: tudo parecia evocar um início de mundo.
Dir-me-ão que, no fim de contas, nada terá sido assim, que tudo aquilo que se conta daquela Paris de depois da Libertação é coisa que vem dos livros, do cinema francês de autor, das canções usadas de Madame Gréco, dos maços fétidos de Gauloises. Mas os nossos acessos de nostalgia não vêm apenas do que vivemos: ele chegam também, e talvez em primeiro lugar, daquilo que imaginamos ter sido vivido pelos outros, daquilo que criamos a partir de indícios. Que jamais vimos fora das fotografias que recuperamos hoje com retoques de Photoshop, ou de sequências de filmes guardadas no YouTube. Das quais se vai apropriando a nossa memória, memória construída, de ladrões de passados.
Num post aparecido no novo O País Relativo, o Tiago Barbosa Ribeiro considera que é «o tempo da ofensiva ideológica» dos socialistas europeus em prol de um modelo social de gestão do capitalismo. Obrigatório, uma vez que o anticapitalismo «é um anacronismo sem regresso» e a direita liberal «inviabiliza o alargamento da regulação económica no seio de uma economia de mercado». Propõe assim, como ponto de partida para um rejuvenescimento da capacidade de afirmação do «socialismo democrático», como que um regresso ortodoxo a Eduard Bernstein (1850-1932). Isto como ponto de partida para se perceber de uma vez por todas em que capitalismo «devem os agentes desenvolver a sua actividade económica e qual a sua relação de forças com o Estado numa sociedade liberal». Partindo de premissas sobre a irreversibilidade do capitalismo como sistema dominante e etapa definitiva da História que foram fixadas pelo teórico social-democrata alemão há mais de cem anos atrás. Com toda a sinceridade, esperava um pouco mais de imaginação e de capacidade de antecipação – até de um ponto de vista semântico – a propósito dos futuros possíveis que nos devem preocupar. Principalmente quando se sugere a necessidade, real sem dúvida, de pensar com ousadia o socialismo de hoje. O socialismo, repito.
Charles Najman, escritor e cineasta, é um dos filhos de deportados judeus franceses que foi entrevistado por Nadine Vasseur para Eu não lhe disse que estava a escrever este livro. Solange, a mãe, sobreviveu a Auschwitz e foi a partir da sua história que Najman realizou em 1995 o documentário La mémoire est-elle soluble dans l’eau? Nele, Solange, uma mulher com um profundo sentido da vida enquanto acto de júbilo, propõe uma abordagem da sua condição de deportada pelo lado da ironia, contando por vezes histórias cómicas, sem cultivar a vitimização, trocando a exposição do sofrimento – que obviamente viveu de uma forma profundíssima – pelo testemunho de um quotidiano no campo marcado também pela vitalidade e pela esperança. Na noite da estreia, Najman estava à entrada do cinema à espera que os espectadores saíssem quando viu duas pessoas afastarem-se, completamente indignadas, dizendo uma para a outra: «É um escândalo! E para mais ela nem sequer se parece com uma deportada!».
Algo de semelhante ocorreu com A Vida é Bela, o filme de Roberto Begnini: a exaltação ficcional do riso como acto de resistência e de apego à vida foi mal recebida por muitos daqueles que fazem da memória histórica uma espécie de disciplina religiosa, grave e sacralizada, na qual apenas existe lugar para o estereótipo do mártir, onde a dissemelhança é recusada, a derrisão inteiramente depreciada. Mas parte da resistência à opressão totalitária nas suas diversas variantes fez-se também na construção de trajectos pessoais como actos de júbilo, de amor pela vida, recorrendo ao riso e à cor, e não apenas na assunção do sofrimento físico ou da brutalização imposta pelos canalhas. Teremos uma melhor relação com esse passado, senti-lo-emos mais próximo, se o recolhermos múltiplo, e não apenas com lugar de sentido único, baço e miserável.
Isto (incluindo o detalhe desprezível da «excepção» para consumo jota interno). Esta gente dúctil anda por aí a dar tiros nos próprios pés, a sujar tudo de sangue, a atrair as moscas (quando ainda se não metamorfoseou como Gregor Samsa), e não parece aperceber-se disso.
(Bom, quem ignorar o primeiro link não perceberá rigorosamente nada deste post. Quem o seguir, perceberá só aquilo que quiser perceber. De vez em quando é melhor assim.)
A partir de um post da Ana Matos Pires surgido no 5 Dias, cheguei à posse de uma preciosa dedução científica. Aparentemente proveniente de estudos desenvolvidos pela mesmíssima equipa de cientistas que terá integrado a tripulação da Arca de Noé, ela foi lapidarmente enunciada em recente data: «Bastaria observar a natureza que nos rodeia e notar como se cruzam os animais, para concluir que, desde que o mundo é mundo, este cruzamento sempre se fez entre sexos diferentes. E, se do reino animal passarmos para o reino vegetal, confirmaremos que para a produção do fruto, há sempre, embora de forma diversa, a intervenção dos dois sexos.» Tudo se mantém assim na ordem da natureza, como nos regrados tempos do bom velho Éden.
Por via das dúvidas, e não fossem as dioptrias enganarem-me, mudei de óculos por duas vezes. Mas li sempre o mesmo, a mesma afirmação. Para Jaime Gama, o nosso enfadonho presidente da Assembleia da República, que falava durante a apresentação do livro Carlucci vs. Kissinger – Os EUA e a Revolução Portuguesa, é absolutamente fascinante aquela tradição política americana que «regista tudo, que intercepta até as próprias conversas telefónicas para as registar, que grava mesmo as conversas de gabinete», de modo a tornar possível a publicação ulterior de toda essa informação. Será que passam pela mente da segunda figura do Estado as perigosas consequências políticas, e até o carácter desumanizador da vida dentro dos espaços do poder, que podem resultar de processos desta natureza? Ou isso agora já não lhe importa grande coisa? Ou terá falado apenas na óptica do voyeur?
Pois é, um dos problemas do marxismo-leninismo consiste em mostrar-se simultaneamente «contrário à dogmatização e à revisão oportunista dos seus princípios e conceitos fundamentais». Situação que poderá transformar-se numa pesada contradictio in terminis e em factor de bloqueio. Mas graças a Deus e à sua infinita Misericórdia que existe sempre um grupo de pessoas, vanguarda da «vanguarda da classe operária e de todos os trabalhadores», que apetrechado desse «instrumento científico de análise da realidade», desse miraculoso e quintaessencial «guia para a acção», combate a «ideologia social-democrata» e determina a todo o instante, «em ligação com a vida», qual a exactíssima curva da estrada na qual é possível moldar o dogma e qual essoutra onde começa a infame e criminosa revisão oportunista. (Ainda a propósito das Teses moicanas do PCP, naturalmente, que agora já li todinhas da silva. Nem tudo são rosas nesta vida de leitor.)
Só não é completamente inacreditável porque já todos estamos habituados à comercialização de tudo. Inclusive da vida privada, seja ela passada, presente ou futura. Mas o projecto que visa transformar o Forte-Prisão de Peniche em mais uma Pousada de Portugal, servindo-se do sofrimento de décadas de tantos antifascistas como factor de charme e de valorização comercial, ofende profundamente a nossa memória colectiva. Como ofensiva é a «naturalidade» com que o projecto se apresenta aos olhos dos responsáveis pelos organismos estatais e autárquicos que apadrinham ou facilitam esta iniciativa abjecta do Grupo Pestana. Ela será sempre, independentemente do formato que possa tomar, uma «suavização» do salazarismo e uma forma de apagamento da vida vivida e do combate daqueles que lhe resistiram.
Leia a propósito o texto que Irene Pimentel publicou nos Caminhos da Memória. E depois passe a palavra.
Versão de um texto publicado na revista LER de Setembro
Designar como nova uma biografia de Lenine publicada em 1994 suscita alguns equívocos. É verdade que esta reformula ou completa biografias anteriores, muitas delas concebidas num registo apologético ou difamante, pois recorre a documentos apenas disponibilizados após a derrocada da União Soviética. Mas não só o faz de forma moderada – estudos posteriores foram mais longe com a mesma informação – como recorre as estratégias argumentativas de teor a-histórico, abusando de movimentos fast-forward para explicar decisões e episódios ocorridos muitos anos antes. Mais do que propriamente «nova», esta biografia será antes uma revisão, e um ajuste de contas, com o passado do autor e com a sua aceitação inicial da figura tutelar do líder revolucionário russo.
Dmitri Volkogonov foi um general soviético que dirigiu durante anos o trabalho ideológico e político no Exército Vermelho, não tendo manifestado então grandes dúvidas em relação às orientações do regime ou ao papel axial do seu fundador. Terá sido apenas em 1991, quando, na sequência da frustrada tentativa de golpe que levou Ieltsin ao poder, passou a presidir à comissão nomeada para analisar os arquivos soviéticos, que encontrou no antigo edifício do Comité Central do PCUS perto de 4000 documentos não publicados de Lenine e começou a reconhecer, no rosto do homem que até então incondicionalmente admirara, traços bem diferentes daqueles que o regime apeado projectara.
Tal como fez com as biografias de Estaline e de Trotski, Volkogonov serviu-se de documentação inédita para reler o mito e ajudar a derrubá-lo. Procurou, desde logo, pôr termo à vulgar distinção, ainda hoje corrente, entre a doutrina política «benigna» do leninismo e a irrefutável bestialidade do estalinismo, denunciada em 1956, por Krushchev, como uma corrupção da primeira. Tentou então provar que, afinal, a génese do estalinismo se encontrava já contida na intervenção e no cinismo político do pai-fundador: estavam lá a criação da Cheka e do Gulag, a perseguição da Igreja ortodoxa, o crescente cerco à imprensa, o esmagamento da maior parte da intelligentsia, a repressão sobre uma larga fatia do campesinato, o controlo férreo dos sindicatos, e sobretudo a instituição de um aparelho político-partidário que viria a funcionar como um poder autónomo dentro do próprio Estado. Documentou ainda os antecedentes familiares judaicos e alemães de Vladimir Ilitch, um assunto que havia permanecido tabu durante décadas.
Uma escrita pobre e algumas afirmações tendenciosas atenuam um pouco o interesse desta biografia. Mas ela valerá sempre por ter sido uma das primeiras a divulgar o conteúdo de alguns dos muitos escritos que permaneceram na sombra e jamais integraram as Obras Completas de Lenine. As quais, por tal motivo, permanecem parciais.
Dmitri Volkogonov, Lenine: Uma Nova Biografia. Tradução de Hugo Chelo e Miguel Morgado. Edições 70, 590 págs.