Vida bela, ainda assim

Charles Najman, escritor e cineasta, é um dos filhos de deportados judeus franceses que foi entrevistado por Nadine Vasseur para Eu não lhe disse que estava a escrever este livro. Solange, a mãe, sobreviveu a Auschwitz e foi a partir da sua história que Najman realizou em 1995 o documentário La mémoire est-elle soluble dans l’eau? Nele, Solange, uma mulher com um profundo sentido da vida enquanto acto de júbilo, propõe uma abordagem da sua condição de deportada pelo lado da ironia, contando por vezes histórias cómicas, sem cultivar a vitimização, trocando a exposição do sofrimento – que obviamente viveu de uma forma profundíssima – pelo testemunho de um quotidiano no campo marcado também pela vitalidade e pela esperança. Na noite da estreia, Najman estava à entrada do cinema à espera que os espectadores saíssem quando viu duas pessoas afastarem-se, completamente indignadas, dizendo uma para a outra: «É um escândalo! E para mais ela nem sequer se parece com uma deportada!».

Algo de semelhante ocorreu com A Vida é Bela, o filme de Roberto Begnini: a exaltação ficcional do riso como acto de resistência e de apego à vida foi mal recebida por muitos daqueles que fazem da memória histórica uma espécie de disciplina religiosa, grave e sacralizada, na qual apenas existe lugar para o estereótipo do mártir, onde a dissemelhança é recusada, a derrisão inteiramente depreciada. Mas parte da resistência à opressão totalitária nas suas diversas variantes fez-se também na construção de trajectos pessoais como actos de júbilo, de amor pela vida, recorrendo ao riso e à cor, e não apenas na assunção do sofrimento físico ou da brutalização imposta pelos canalhas. Teremos uma melhor relação com esse passado, senti-lo-emos mais próximo, se o recolhermos múltiplo, e não apenas com lugar de sentido único, baço e miserável.

    Cinema, História, Memória.