Ainda sobre Gainsbourg. Ou melhor, sobre a conversa que tem andado a correr em alguns blogues a propósito da forma como certos cronistas da nossa melhor imprensa se têm servido de posts publicados para, através da vil arte do plagiato, pouparem um pouco no génio e no esforço. Um artigo publicado na Rue 89refere-se ao modo como, pelo lado do pastiche ou mesmo da paródia, Serge se apropriou de alguns fragmentos de peças clássicas para fazer canções sublimes. E únicas. Claro que falamos de conceitos diferentes e de atitudes dificilmente comparáveis. Este apontamento é apenas um pretexto para falar, à tangente, deles e delas.
Da esquerda para a direita: José Carlos Fernandes, Kim Jong-Il e Luís Henriques
Do lado dos meus autores favoritos de BD – portuguesa ou alienígena – José Carlos Fernandes e Luís Henriques acabam de publicar na Tinta da China A Metrópole Feérica, o volume primeiro de uma série anunciada como Terra Incógnita, autodesignado «atlas ilustrado de criptogeografia, completo e fidedigno inventário cartográfico de cidades desaparecidas, impérios fabulosos, reinos utópicos & outras ocorrências lendárias». A propósito das declarações do director executivo da Lonely Planet, que decepcionado com a revelação de Thomas Kohsstamm sobre o facto deste ter redigido um guia da Colômbia sem sair de São Francisco afirmou publicamente que todos os restantes guias «são credíveis», cita-se na badana um tal Thomas Hook, fundador da Agência de Viagens Estacionárias Couch Potatoe. Uma frase de Hook serve então de mote para a sequência que parece ficar apalavrada: «Pois eu sonho um dia em que todos os guias sejam escritos sem visitar os locais e os viajantes que os seguem se percam e frequentem restaurantes não recomendados, e comam o arranjo floral sobre a mesa julgando tratar-se de um prato típico, e contraiam doenças desconhecidas da medicina, e façam gestos com as mãos que poderão exprimir afecto no Ocidente Civilizado mas que noutras paragens poderão insinuar que o interlocutor mantém relações íntimas e regulares com caprinos (…), e caminhem inadvertidamente de havaianas, boné de baseball e iPod aos berros sobre o túmulo do profeta Al-nasdaq, e sejam perseguidos por uma turba enfurecida que os quer fritar em azeite como punição por tão inimaginável sacrilégio». Como se pode docilmente constatar, um projecto assaz auspicioso que não deixará de cativar o fiel ledor de obras tão supérfluas quanto inquietantes e aprazíveis.
Era o mínimo. O activista chinês Hu Jia foi condenado a três anos e meio de prisão depois de ter participado em Novembro de 2007, via teleconferência, numa reunião do Parlamento Europeu sobre Direitos Humanos. A sentença, que considerou essa participação um delito por «tentativa de subversão», foi-lhe atribuída em Abril deste ano, durante uma única sessão de julgamento. O mesmo órgão conferiu-lhe agora o Prémio Sakharov, servindo o gesto, nas palavras do seu presidente, Hans-Gert Pöttering, para «enviar um sinal de claro apoio a todos aqueles que defendem os Direitos Humanos na China».
Uma atitude positiva e mais corajosa que a do Comité Nobel, incapaz de aguentar a pressão das autoridades chinesas. Mais arrojada ainda quando a maioria das agências noticiosas, dos jornais ou das televisões tem atribuído maior importância à reacção negativa de Pequim, e às eventuais dificuldades colocadas à agenda política de Bruxelas na região, do que à questão fundamental. A condenação de Hu Jia foi uma bofetada na cara de quem acreditou nas promessas chinesas quando da candidatura aos Jogos Olímpicos, mas pelo menos neste caso o Parlamento Europeu fez por honrar os seus compromissos. E não se ficou.
A descrição é quase hermética: «from techno to nujazz, tech house to triphop, minimal tech to downtempo, deephouse to electrohouse-jazz, house-jazz to dance-jazz, breakbeat-jazz to electro-dance». Refere-se à edição japonesa de um álbum, Daylight, do austríaco Marcus Füreder aka Parov Stelar. Aqui, em «Tango Muerte».
Algumas das declarações do jornalista-astro e respeitável plumitivo José Rodrigues dos Santos na entrevista publicada hoje no Diário de Notícias a propósito da saída do seu novo romance A Vida Num Sopro.
«Temos supostamente grandes autores, mas ninguém os consegue ler, são intragáveis.»
«Se calhar temos aqui um pouco de Somerset Maugham, um pouco de Isabel Allende, um pouco de Jeffrey Archer, um pouco de Eça.»
«Sinto-me à vontade em qualquer género, o que importa é que eu e o leitor tenhamos prazer.»
«No outro dia disseram-me que o Comité Nobel não galardoou Miguel Torga porque ele não tinha muitas obras traduzidas. Não sei se isso é verdade, mas é sintomático.»
«Tivemos de baixar o nível de exigência do texto de modo a que ele fosse mais bem compreendido pelos leitores americanos.»
«Existe uma elite cultural que não gosta de sexo à portuguesa nos livros (…). Ou seja, amor só em língua estrangeira é que é bom.»
«Jogo Duplo», o concurso «do Malato» que passa na RTP1, teve hoje um momento de especial comoção para quem se interessa pelos inesperados movimentos de vaivém da memória colectiva. Trata-se, para quem não saiba do que estou a falar, de uma prova «de cultura geral», com formato de teste à americana, que requer dos concorrentes uma preparação mínima. Pelo menos algo mais, digamos, do que saber nomear a capital da Finlândia, designar qual o presidente norte-americano que foi assassinado em Dallas ou conhecer o símbolo químico da prata. E quem aparece por lá são pessoas com cursos médios ou superiores, uma vida profissional aparentemente estável, e de aspecto urbano e bem-tratado. Pois nesta sessão, se exceptuarmos o mais velho dos cinco concorrentes, nenhum dos outros quatro – com idades que oscilavam entre os 25 e os 37 anos – foi capaz de acertar no nome actual da cidade de Lourenço Marques. Sim, aquela que foi, entre 1898 e 1975, a bela capital colonial de Moçambique. As hipóteses colocadas foram Luanda, Pretória e, naturalmente, Maputo.
O M. mandou-me um link declarando serem estas coisas que o fazem sentir-se de esquerda. Digo mesmo mais, são coisas destas que me fazem recordar uma das melhores frases de Otelo. Não o Mouro de Veneza, o outro. E são coisas assim que às vezes me fazem estalar o verniz democrático. Mas recomponho-me logo.
[Dias depois. Eduardo Pitta teve o cuidado de sublinhar a condição de private jokeda sua referência. Mas alguns dos comentadores exaltados que brindaram o Lutz Brückelmann por se ter referido simpaticamente a este post levaram a coisa mesmo a sério, forçando-o a dar uma explicação. Olhem que a famosa frase do Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho sobre a hipotética deslocação dos «fascistas» para o Campo Pequeno foi logo na época tomada como uma hipérbole. Mesmo pela generalidade da esquerda radical. Claro que ninguém quer colocar aquela gente horrível que Laurinda Alves tanto aprecia no Campo Pequeno. Nem sequer para bater palmas a umas quantas chicuelinas, a umas tantas veronicas, a uma ousadíssima pega de cernelha. Era mesmo preciso dizê-lo?]
Que não se assanhem nem se abespinhem os amigos que têm concedido a este blogue a honra dos dardos. Aos primeiros que o fizeram, ainda remeti uma missiva declarando que há cerca de um ano decidi e fiz constar por entre tôdolos povos somente entrar em cadeias se o meu senhor rei Ricardo, o do Coração-de-Leão, tal me ordenar. Mas por ora, bem medida já uma boa dúzia de probos cavaleiros e de ínclitas damas que me concederam semelhante benesse, muito agradeço que contenham os seus nobres gestos. Sei ser insigne o seu intento e que nenhum deles será sequaz do execrado Xerife de Nottingham, mas rogo encarecidamente que cuidem de entender a minha vontade. Mui penhorado de vosoutros me quedo, cuidando eu também das minhas orações que vos incluem, em assaz risonho quão pacífico ermo. Thank you!
Cheguei tarde à música do Lucien Ginzburg, de Serge Gainsbourg. Claro que trauteei entre dentes «Je t’aime, moi non plus» e «La décadanse», mas este, descobri-o depois, foi um Gainsbourg menor, apoiado no inevitável poder de atracção de um erotismo exibicionista que não invadira ainda a esfera do público. Depois disso o judeu-francês ficou esquecido durante algum tempo porque não mostrava uma mensagem política intuitiva e a sua auréola de alcoólico, tarado sexual e fumador inveterado parecia constituir a antítese do militante sóbrio, vigoroso e moralmente impoluto que muitos erguiam como modelo a emular. Ainda agora, sempre que tento converter à música de Gainsbourg algumas pessoas que chegam mais ou menos da minha geração e do meu quadrante vivencial, dou de caras, quase sempre, com a incompreensão ou a indiferença.
E, no entanto, ela encontrava-se – na percepção da novidade, como na polissemia das letras e na capacidade para combinar influências e registos – muito à frente da música popular francófona do seu tempo. Dizia-me um amigo mais recente que, actualmente, a visão dos pequenos filmes de Serge «envelheceu a de Brel». E eu, que continuo a gostar muito dos discos do filho desobediente da burguesia flamenga, mas que fui corrompido pela intensiva audição periódica do artista de variedades que acendia Gitanes uns nos outros, concordo inteiramente com ele. Olhamos a presença terrena destes dois homens, ambos tão feios e tão singulares, e compreendemos como, sendo eles praticamente contemporâneos – Jacques Brel era até um ano mais novo, embora não pareça -, os separavam universos que pareciam incompatíveis. Um, o do belga, um tanto melancólico, invocava principalmente passados, tempos perdidos e reencontrados, amores errantes, cidades que se cerravam sob uma ordem social odiada que só o sarcasmo fendia. O outro, o do judeu, celebrava cadências em crescendo, instantes que permaneciam em suspenso, uma sensualidade plasticamente alardeada que arriscava cuspir na cara da moral reinante. Eram apenas canções, nada mais que canções? Duvido.
Começou pelos treinadores de futebol, depois passou para os bruxos, de seguida para os presidentes das distritais partidárias, e agora parece que se generalizou. Falo daquela expressão utilizada quando a equipa perde, quando o feitiço falha, quando as eleições foram um desastre, ou quando um casamento falha: «assumo a responsabilidade». Frase à qual não corresponde depois qualquer acto de reparação que dê sentido à exibição da culpa. Wen Jiabao, o moderno primeiro-ministro chinês, entra na onda ao assumir a responsabilidade do seu governo no escândalo do leite contaminado (em larga medida possível, parece óbvio, pelo estado de selvajaria no qual prospera o «segundo sistema» chinês). Consequências políticas? Nenhumas, claro. Ou provavelmente a substituição de dois ou três funcionários, mas a intocabilidade do autoproclamado supremo «responsável». No futebol, despede-se um sub-director qualquer. Entre os bruxos muda-se, quanto muito, de filtro ou de criptónimo. Dentro dos partidos espera-se que passe. Nos casamentos pede-se perdão. E la nave va.
Em artigo publicado ontem no caderno P2 do Público, Jorge Almeida Fernandes aborda um problema que tem tanto de actual quanto de complexo. A partir da notícia da abertura do primeiro processo «da História contra o franquismo», tornado possível pela intervenção do juiz Baltasar Garzón, refere um manifesto público lançado por importantes historiadores que se erguem contra a multiplicação das leis de criminalização do passado afirmando que «a História não pode ser escrava da actualidade nem ser escrita sob o ditame de memórias concorrentes». A ideia não é consensual, naturalmente. Nem sequer o é entre os historiadores. É entretanto a partir dela que anoto três perguntas, cuja intenção é apenas ajudar a reflectir sobre algumas das possíveis implicações da manipulação do passado na penalização ou no julgamento público de certas pessoas. As perguntas são: Deve o historiador tomar posição sobre o passado? Deve, em consequência, tomar posição sobre iniciativas de natureza penal que sobre ele incidam? E deve aceitar a manipulação mediática da história e da memória?
Não tenho resposta unívoca para as duas últimas perguntas – que retomarei mais adiante – mas creio que tenho para a primeira: não só deve tomar posição, como é inevitável que o faça. O tipo de «posição» que possa tomar deve, porém, sempre ser informado pelo conhecimento e pela capacidade analítica. Não existindo uma história absolutamente «objectiva», existem fenómenos históricos objectiváveis, e todo o exercício de crítica, de interpretação e de narração, mesmo quando se apresenta como «asséptico», resulta sempre de escolhas subjectivas e datadas. Neste sentido, o historiador exprime obrigatoriamente um ponto de vista, uma «posição», mas esta não é, não pode ser, a mesma do político, do jornalista ou, por maioria de razão, do cidadão comum. Será mais completa, eventualmente mais racional, mas nunca inequívoca e definitiva.
Naturalmente, quando a proximidade em relação à época ou aos problemas observados é maior, essa subjectividade aparece exponenciada. Mas no cumprimento do seu papel social, o historiador, principalmente aquele que aborda um passado mais ou menos recente, sobre o qual os reflexos da memória individual e colectiva incidem de uma forma mais poderosa, deve fazer um esforço suplementar para procurar a objectividade possível, apurando os processos de análise documental e confrontando o máximo volume de informação disponível. Torna-se inevitável, porém, pelo facto simples de se reportar a episódios cujo «calor» ainda se mantém, que se envolva um pouco mais com as suas escolhas do que os colegas seus que abordam tempos mais recuados. Negá-lo será enganar-se a si próprio e induzir os seus leitores num logro. Escolher como tema do trabalho de investigação a Revolução de Outubro, a Guerra Civil de Espanha, o Salazarismo, o Holocausto, o Gulag ou a Primeira Guerra do Iraque, implica remexer em destroços ainda fumegantes. E implica por isso sujar um pouco as mãos. Mas essa é a sua opção e será com ela que terá de conviver.
Oh (Ohio), o álbum, mesmo acabadinho de sair, como sempre em registo alt-country, dos Lambchop. Aqui, «Slipped, Dissolved and Lossed» em tarde de sábado.
Ainda sobre aquilo a que chama «o episódio Kundera», F. Guerra contesta, em O Vermelho e o Negro, as posições de alguns bloggers. Uma delas a minha. No essencial, parece começar por defender uma bússola moral absoluta, relativa a traços do carácter individual, que seria inerente à condição do escritor, ou do artista, e deveria orientá-lo em todas as situações. O essencial do seu argumento centra-se, porém, na tentativa de aproximar aquilo que, sinceramente, não me parece aproximável se não forçarmos um pouco a nota. Para o efeito confronta o caso Kundera com o vivido por Elia Kazan, procurando mostrar como o pulha de um delator o é sob quaisquer circunstâncias, e como nos Estados Unidos da pior fase da Guerra Fria não ocorreram, «em nome da América», canalhices menores e menos justificáveis que sob os ambientes de denúncia «ao serviço da classe operária e de todo o povo» presentes no universo do socialismo real.
Não posso deixar de ver com algumas reservas esta comparação. Claro que o ambiente da «caça às bruxas» em Hollywood foi terrível, opressivo, levando inúmeras pessoas a delatar o nome de colegas, conduzindo outras à ruína ou ao suicídio. Provavelmente fizeram-no pensando que tal lhes favoreceria (ou pelo menos não lhes prejudicaria) a carreira, o que por vezes aconteceu. É sobre isto The Front (O Testa de Ferro), o filme-documento de Woody Allen estreado em 1976. Mas também deram a cara, na mesma altura, figuras com a maior visibilidade pública como Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Danny Kaye ou John Huston, que foram capazes de empenhar o seu nome e a sua segurança para limparem a América da paranóia mccarthista, dando um exemplo de coragem e rectidão. Além de que não falamos, neste caso, de um sistema repressivo construído como tal, mas sim de uma situação de coerção psíquica e económica, que já então se mostrava, aos olhos de muitas pessoas honestas, como uma arbitrariedade.
No caso checo, como em outros casos do «socialismo real», ou mesmo dos diferentes fascismos, falamos da crença generalizada num destino histórico, concebido como salvífico e imortal, apresentado como capaz de revelar definitivamente aquilo que separa o bem do mal. E este destino conheceu, na época de afirmação dos sistemas de coacção totalitária, uma fase de simpatia que mobilizou muitíssimas pessoas. A Kundera também? Talvez. Dizem que sim, parece que sim. Provavelmente mais uma folha para a história universal de ignomínia.
Um pequeno e precioso livro, este que hoje encontrei por acaso. Em formato de bolso, 50 ou 60 páginas não numeradas, com esparsas palavras e imagens a branco e preto do fotógrafo espanhol Luis Baylón (Blur Ediciones). Chama-se Sólo Fumadores e nele podemos observar engraxadores, empregados de mesa, prostitutas, banqueiros, donas de casa, empresários, estudantes, sujeitos com um aspecto razoavelmente abonado e outros claramente lumpen. Pessoas que partilham um mesmo prazer, e às quais – não será exagero do editor – «o tabaco conseguiu igualar como nenhum sistema político e social ao longo da história». Fotografias de fumadores, reflectidos em flagrante delito, naqueles lugares infectos e condenados à ignomínia onde agora são forçados a refugiar-se. Ruas frias e chuvosas, praças inóspitas, portais dos edifícios, bares «de tolerância» (onde os pecadores são tolerados), divisões-ghetto de lugares que por instantes, e por enquanto, ainda lhes vão consentindo o vício. «Um canto à liberdade, ao direito a escolher e, por isso, a equivocar-nos», anuncia o texto prévio. Pois se fumar, tal como a vida, mata, os fumadores são capazes de entender que, apesar desse inconveniente, «tanto um como a outra merecem ser fruídos intensamente e sem medo».
Keith Jarrett, com Gary Peacock e Jack DeJohnette, swingando em Autumn Leaves. Uma versão de Les Feuilles Mortes, a canção de Joseph Kosma e Jacques Prévert. A voz original, gravada em 1950, foi a da Yves Montand.
A notícia que a revista praguense Respekt pôs a circular sobre o possível papel de Milan Kundera como denunciante, em 1950, do estudante checo Miroslav Dvořáček, por este haver desertado do serviço militar – conduzindo-o a uma condenação a 22 anos de prisão que incluiu trabalhos forçados numa mina de urânio -, não pesará apenas sobre os ombros de Kundera, abalando muitas das pessoas, e conto-me entre elas, que a par do escritor nele viram uma voz autorizada da resistência ao regime absoluto de Gustáv Husák. A ter acontecido, ela é apenas um sintoma mais da dimensão amoral do marxismo-leninismo aplicada à vida social – não digo do comunismo, pois esse é um dos grandes ideais igualitários da humanidade, que sobreviverá à ideologia perversa que dele se apoderou – , a qual relativiza os conceitos de verdade, de amizade, de honradez, de decência, de compaixão, sempre em função do conteúdo «de classe» que cada um desses valores adquira. Bom ou mau, benigno ou nefasto, excelso ou descartável, verdadeiro ou falso, de acordo com o papel desempenhado no andamento do «processo histórico». É esse conteúdo que traça a ténue linha demarcando o herói do canalha.
E o pior é que essa atitude foi e continua a ser apresentada como modelar. Se Kundera fez aquilo que dizem agora ter feito, é provável que, naquele tempo – e um desertor era um desertor –, entendesse que estava a realizar o que, enquanto cidadão de uma «sociedade nova», enquanto candidato a «homem novo», esperavam dele. Não se presumiria um pulha. O delator não era um delator, mas sim um cidadão-modelo, ainda que o delatado, transformado em «inimigo de classe», fosse um amigo, a amante ou até um familiar chegado: tal aconteceu, de facto, muitos milhares de vezes. Foi essa ductilidade ética que esteve na origem de alguns dos piores dramas humanos vividos, ao longo de décadas, no universo do «socialismo real». A ser verdade o que se diz agora dele, Kundera apenas seguiu o modelo dominante. Reproduziu uma atitude, detestável hoje, sem dúvida, para a maioria de nós. Inevitavelmente horrível para quem lhe sofreu as consequências. Mas que naquele tempo e naquele ambiente – estávamos, recordo, em 1950 – nada tinha de singular ou de publicamente condenável.
P.S. – Se nada do que foi descrito e documentado sobre o papel de Kundera se confirmar, ainda assim o modelo aqui mencionado adequar-se-á a todos os outros delatores que partilharam da mesma explicação para conviverem, mais ou menos de boa consciência, com o resultado dos seus actos.