Dois belos feios

Cheguei tarde à música do Lucien Ginzburg, de Serge Gainsbourg. Claro que trauteei entre dentes «Je t’aime, moi non plus» e «La décadanse», mas este, descobri-o depois, foi um Gainsbourg menor, apoiado no inevitável poder de atracção de um erotismo exibicionista que não invadira ainda a esfera do público. Depois disso o judeu-francês ficou esquecido durante algum tempo porque não mostrava uma mensagem política intuitiva e a sua auréola de alcoólico, tarado sexual e fumador inveterado parecia constituir a antítese do militante sóbrio, vigoroso e moralmente impoluto que muitos erguiam como modelo a emular. Ainda agora, sempre que tento converter à música de Gainsbourg algumas pessoas que chegam mais ou menos da minha geração e do meu quadrante vivencial, dou de caras, quase sempre, com a incompreensão ou a indiferença.

E, no entanto, ela encontrava-se – na percepção da novidade, como na polissemia das letras e na capacidade para combinar influências e registos – muito à frente da música popular francófona do seu tempo. Dizia-me um amigo mais recente que, actualmente, a visão dos pequenos filmes de Serge «envelheceu a de Brel». E eu, que continuo a gostar muito dos discos do filho desobediente da burguesia flamenga, mas que fui corrompido pela intensiva audição periódica do artista de variedades que acendia Gitanes uns nos outros, concordo inteiramente com ele. Olhamos a presença terrena destes dois homens, ambos tão feios e tão singulares, e compreendemos como, sendo eles praticamente contemporâneos – Jacques Brel era até um ano mais novo, embora não pareça -, os separavam universos que pareciam incompatíveis. Um, o do belga, um tanto melancólico, invocava principalmente passados, tempos perdidos e reencontrados, amores errantes, cidades que se cerravam sob uma ordem social odiada que só o sarcasmo fendia. O outro, o do judeu, celebrava cadências em crescendo, instantes que permaneciam em suspenso, uma sensualidade plasticamente alardeada que arriscava cuspir na cara da moral reinante. Eram apenas canções, nada mais que canções? Duvido.

    Memória, Música.