A Oposição ao Estado Novo e «o Leste» cultural

Em Portugal, a Guerra Fria teve como importante aspeto um anticomunismo visceral que acompanhou todo o trajeto do Estado Novo. Parte deste associava um mal incontornável à simples existência do que chamava «a Rússia» e dos outros regimes do «socialismo realmente existente», como estes se autodefiniam até 1989. Por um efeito de contraposição, muitos oposicionistas vislumbraram nesses territórios, em regra de forma acrítica, o seu desenho de sociedades perfeitas. Fruto deste olhar, ainda hoje muitos militantes e simpatizantes do PCP, a partir de uma visão acrítica, parcial e a-histórica, imaginam como ideal a realidade daqueles Estados através das décadas de existência que fecharam com a Queda do Muro de Berlim. Em particular a da «pátria dos sovietes», proclamada «o país do sol radioso», que iluminava o caminho a desbravar desejavelmente pela humanidade no seu todo.
Ao divulgarem junto do cidadão comum uma imagem demoníaca, brutal e não menos ignorante daquelas realidades, os publicistas diretos do Estado Novo e os seus imitadores, suscitando um efeito adverso afinal à sua intenção, acentuaram aquela filiação positiva. Recordo-me de, ainda pré-adolescente, ter lido, a partir das inesquecíveis carrinhas da biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian, todos os clássicos russos ali disponíveis, apenas porque eram… intrigantes e sinalizadores de realidades alternativas e que, contrariamente aquela em que era forçado a viver, seriam potencialmente «boas». Quando passei a frequentar os setores da esquerda mais radical dos quais me aproximei, descobri de que modo, apesar do seu distanciamento do que consideravam ser o regime burocrático da URSS, essa atração por tudo quanto era «russo» ou «do Leste», mantinha uma importante força.
O mesmo se passava com o cinema, celebrando muitos espetadores tudo o que chegava do outro lado da Europa – muito pouco, devido à censura – como potencialmente subversivo. Até o cinema de animação para crianças da escola de Zagreb ou a superprodução romantizada do Guerra e Paz, de Tolstoi, filmada em 1966 pelo russo Sergei Bondarchuk, serviram de alimento para essa voracidade. O mesmo se passou, por exemplo, com filmes iniciais do realizador checo Milos Forman, como Os Amores de uma Loira, de 1965, e O Baile dos Bombeiros, de 1967, ou ainda Comboios Rigorosamente Vigiados, realizado por Jiří Menzel em 1966. O curioso, de que só mais tarde me apercebi, é que se tratava de filmes profundamente críticos da sociedade e do regime da Checoslováquia, que muitos espetadores foram ver, descartando essa dimensão incómoda, sobretudo como um gesto de secreta oposição ao poder do salazar-marcelismo e aos seus valores.
Como toda a gente avisada sabe, ou deveria saber, a realidade, seja a passada ou a presente, jamais se revela unívoca.
Rui Bebiano
[Imagem: Fotograma de O Baile dos Bombeiros, de Forman]