Arquivos Mensais: Outubro 2021

A conversa e o monólogo

Como escrevi ontem e agora reafirmo, não irei argumentar mais – com outras pessoas ou mesmo sozinho – a propósito do tremendo e grave erro político do Bloco e do PCP. A partir de certa altura, já estamos a falar em círculo, ou como surdos, o que a nada mais leva que não seja a levantar demasiado a voz e a um desgaste. Acrescento apenas, em forma de síntese, que as legítimas reivindicações adiantadas por ambos os partidos – não vamos agora debater se, no conjunto, seriam exequíveis sem se cortar em outras rubricas do orçamento – jamais justificariam juntarem-se à direita e à extrema-direita para fazerem cair o atual governo. Tiveram sempre a possibilidade, que a maioria dos seus eleitores por certo aceitaria (fui um deles), de se absterem na votação, continuando a negociar. É esse o ponto. Aliás, o argumento de que se fez o que se fez porque o PS pretendia eleições e a maioria absoluta é, no contexto, inteiramente absurdo, pois será justamente isso a que ambos abriram a porta.

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    O Bloco e uma dor partilhada

    Ao contrário do habitual, esta crónica inclui uma forte componente pessoal, partindo da posição adotada pelo Bloco de Esquerda ao rejeitar o Orçamento de Estado. Sei que o essencial do que vou referir, em especial a identificação de um sentimento de perda e de uma desilusão, está a ser partilhado por um bom número de homens e de mulheres que mantiveram as mesmas expectativas, agora perdidas ou em vias de o serem. 

    Nunca fui militante do Bloco. Em 1999, o ano da fundação, era apenas mais um daqueles milhares de cidadãos, politicamente empenhados desde os anos da ditadura e da revolução, então conhecidos como «independentes de esquerda». Foi nessa qualidade que participei em reuniões ligadas ao processo de formação do partido. Não me tornei militante porque de há muito compreendera não ter temperamento para a disciplina partidária, que tantas vezes impõe o silêncio da dúvida e da crítica, mas passei desde aí a colaborar com o novo partido, participando como «companheiro de jornada» em muitas das suas iniciativas.

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      Equivocados

      Deparo nas redes sociais com posts de amigos do Bloco e do PCP, para quem a fé move montanhas, que entre artifícios de demagogia e malabarismo se esforçam por mostrar que os problemas criados com a votação do Orçamento ao lado da direita e da extrema-direita são praticamente inexistentes. Quanto muito, serão um mal que vem por bem. Para eles, o que aconteceu a 27 de outubro foi pois da exclusiva responsabilidade do PS, esse partido «de direita» que «só pretendia eleições antecipadas» (sic). Além disso, os inúmeros apoiantes e votantes seus que se estão a mostrar incrédulos, indignados e desiludidos – bem mais do Bloco que do PCP, por razões sociológicas e políticas conhecidas – não estarão é a entender patavina da estratégia aplicada. Nas palavras desses amigos, o crescimento eleitoral será mais que seguro e tudo se irá resolver lá para janeiro, pelo que a história os absolverá. Quem não perceba isto só pode ser gente de má-fé, pouco inteligente ou crédula. Tudo isto é triste e tudo isto existe, embora não seja fado.

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        O desastre anunciado

        Podemos estar a viver um desastre anunciado, relacionado com uma forma redutora de fazer política. Na sua aceção mais básica, esta é, desde a antiga Grécia, a arte de participar na governação da comunidade. Visa o todo, não a parte, e o que em democracia separa os partidos com vocação de governo daqueles que se décadas a fio se limitam a uma atitude protestativa ou de representação de setores minoritários, é justamente a capacidade que têm para considerar uma ampla diversidade de interesses na definição das suas estratégias e das suas campanhas. 

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          Mitografias, certezas e insónias

          Seja ele o passado, o presente ou um idealizado futuro, não podemos viver sem ficções do real que recorrem a mitos. A definição de mito – os relatos fantásticos que deram significado à vida quotidiana da Grécia antiga serão sempre o seu modelo primordial – é complexa e cheia de sentidos; todavia, para o que aqui importa, destaco dois que constam do Dicionário Houaiss: «a construção mental de algo idealizado» e, a ela ligado, «um valor social ou moral (…) decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época». O mito é, pois, indispensável para o funcionamento das sociedades humanas, ao participar como peça nuclear na construção da sua coerência e dos diferentes sentidos de pertença de quem as habita. As mitografias, por sua vez, juntam constelações de mitos, com eles compondo modos sistemáticos de representar o mundo.

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            Exercícios de estilo

            Tenho dito e escrito isto em diversos lugares e diferentes momentos: aquilo de que mais gosto quando leio um texto de não-ficção (alguns de ficção também) é de pensamento complexo expresso de forma clara e razoavelmente transparente. É claro que quando falo de pensamento complexo não me refiro a juízos crípticos, mas a raciocínios que não são meramente lineares, de mera causa-efeito. E que quando falo de formulações claras, não estou a falar de discursos simplórios, expectáveis e cravados de clichés.

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              Menos que uma canção de embalar

              Qualquer força política, para não ser um irrelevante conjunto de homens e de mulheres agrupados à volta de uma sigla, de uma bandeira e de um programa mínimo, para ser mais que um mero instrumento na partilha dos poderes, e sobretudo para ter alguma utilidade na organização do quotidiano das sociedades democráticas, precisa conciliar e aplicar dois fatores tão críticos quanto decisivos. O primeiro prende-se diretamente com os interesses materiais dos indivíduos e dos grupos, o que significa atender aos vários processos reivindicativos e fazer-se porta-voz destes, seja qual for a dimensão em que se coloquem: regalias, condições, direitos, garantias, expetativas e afins. O segundo fator prende-se com a gestão das sociedades a médio prazo ou a perspetiva proposta para o seu desenvolvimento, bem como com os caminhos para a produção de um futuro coletivo e para o desenho que este possa tomar. Ambos os fatores são imprescindíveis, mas apenas pesam e têm consequências se forem combinados. 

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                Gil, Caetano e a Internet

                Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».

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