Arquivos Anuais: 2011

Euro-eunucos

Monsieur Barroso
imagem retirada daqui

Da crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso deste sábado («O voo dos abutres»):

«(…) Por sorte deles [os abutres americanos das agências de notação], encontraram em Bruxelas uma cambada de eunucos, uma colecção de políticos sem nenhuma visão política de futuro, aterrorizados pelas opiniões públicas locais e as suas conjunturas eleitorais, um clube de cobardes sem alma nem grandeza, que irão dar cabo da mais fascinante ideia política desde o pós-guerra, que é a da unidade europeia. Aquele triste ajuntamento de cromos fotográficos não percebeu ainda que está sob ataque concertado e ajoelha-se perante a ofensiva de três agências americanas que estiveram directamente envolvidas no eclodir da crise mundial, ao acompanharem o irresponsável senhor Greenspan, ex-presidente da Reserva Federal americana, e o idiota do ex-Presidente Bush na cobertura do mais inacreditável roubo alguma vez cometido na história da economia — que foi o roubo da economia americana por parte do seu sector financeiro, com consequências que sobraram para o mundo inteiro. Estes tipos que, com o seu aval, permitiram que os Madoffs e os Lehman Brothers roubassem as poupanças e a confiança dos que trabalharam uma vida inteira para terem a sua reforma e a sua casa; que, lá de longe, assinaram a falência de milhares de empresas do mundo inteiro e condenaram dezenas de milhões de trabalhadores ao desemprego, agora exigem que Bruxelas assine por baixo que uma nação com quase nove séculos de história, como Portugal, seja lixo, e uma nação, como a Grécia, que fundou a Europa e que fundou a democracia e a civilização mediterrânica, há dois mil anos, seja tratada ao nível de merceeiro.

Em 1945, logo depois do final da guerra, Winston Churchill, que mobilizou a Europa e o mundo livre contra o nazismo, foi à Grécia para mostrar que a Europa livre apoiava a Grécia que resistia a ser encerrada na Cortina de Ferro de Estaline. Quando desembarcou, combatia-se uma guerra civil nas ruas de Atenas e ele nem conseguiu sair do aeroporto, porque nem sequer havia um poder estabelecido para o receber. Mas esteve lá, em nome da Europa e em nome da liberdade. Hoje, um qualquer finlandês ou polaco decide em Bruxelas sobre o futuro da Grécia, numa lógica de castigo e humilhação, e Bruxelas assiste, sem reagir, a que umas agências americanas, sem rosto nem qualificação para tal, decidam em seu nome se a Grécia deve ser reduzida a pó e Portugal a lixo. Para que a economia do planeta fique entregue ao combate final entre os especuladores financeiros da América e os piratas do dumping social asiático. Eis o que o capitalismo fez com a sua vitória histórica sobre o socialismo de Estado! (…)»

    Atualidade, Opinião, Recortes

    Uma menina exemplar

    Na última crónica que enviou para o DN, pressentindo a morte já muito perto de si, Maria José Nogueira Pinto fez um balanço profundo da sua vida. De uma ponta a outra, nele consigo ver reflectido – eu que até nasci no mesmo ano que ela e me formei sensivelmente na mesma época e na mesma universidade – o avesso da minha própria vida, dos valores que fui adoptando, dos combates que resolvi travar, da ausência de fé que mantenho, das causas e da perspectiva do mundo que fiz e conservo minhas. E no entanto não consigo deixar de admirar o seu trajecto. Mas julgo que sei porquê. Porque o assumiu, com coerência e frontalidade, sem desvios e trejeitos ínvios adaptados às circunstâncias, na defesa de uma perspectiva do mundo, da vida, da pátria, da moral, da família, da fé, que fez seguir por onde lhe pareceu certo e não por onde seria mais conveniente e até mais fácil que seguisse. Porque aplicou o princípio, que agora mesmo lembrou, de acordo com o qual «uma vida boa não é uma boa vida». Pessoas assim são raras e, estejam lá elas em que família política estejam, sempre exemplares.

      Apontamentos, Memória, Olhares

      Doença crónica

      leninismo

      No debate sobre os caminhos mais próximos da «esquerda à esquerda» será bom reflectir sobre um aspecto, apenas aparentemente menor, que é mais fácil de abordar por quem fala do lado de fora de qualquer organização, sem compromissos com essa noção de unidade – ou de combate de tendências – que constrange sempre a liberdade crítica. O vício e a formação de historiador das ideias levam-me aqui a uma curta viagem até ao passado e a dois livros que cruzaram a história da esquerda, fundando um padrão de combate de ideias que me parece perverso e está na origem de parte considerável de alguns dos piores tiques e sintomas de doença crónica que atravessam a esquerda de matriz marxista. O primeiro foi a Crítica do Programa de Gotha, um dos mais importantes trabalhos de Marx, editado em 1891 mas escrito muito mais cedo, em 1875. O segundo foi A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, publicado em 1918 por Lenine. Um e outro tiveram como alvo a crítica de «oportunismos», ou «desvios», em ambos os casos tomados como formas inaceitáveis de pactuar com o capitalismo. Um e outro tiveram também como objectivo a defesa de uma «tirania das maiorias» consumada no rosto, mais vago e benévolo em Marx, mais cru e objectivo em Lenine, da «ditadura do proletariado». O que importa aqui não é, porém, debater o conteúdo de cada uma das obras, mas sim observar os termos em que foram escritas. (mais…)

        Atualidade, Memória, Olhares, Opinião

        A música, o silêncio

        silence

        Benjamin, ele de novo, lembrou a distância, ou mesmo o conflito, que ocorre entre a obra de arte criada manualmente, envolta nessa aura que associou a um fulgor etéreo, imaterial, advindo da sua existência única, e aquela outra, vulgarizada, afastada da dimensão do sagrado porque sujeita a um processo de «reprodutibilidade técnica», de multiplicação mecânica, como aquela projectada, no seu tempo, principalmente pelo cinema e pela fotografia. O recuo da dimensão ritualizada da obra de arte, ou, se se preferir, a reconsideração do próprio conceito de aura, não possuíam contudo, para o filósofo, uma dimensão necessariamente negativa, como expressão de uma qualquer decadência, definindo antes a entrada num universo de tipo novo, mais preenchido e ruidoso, no qual se vai perdendo esse instante singular em que a obra de arte emerge do silêncio e apenas dialoga com o interlocutor privilegiado. Este jogo de oposições e proximidades entre o silêncio criador, acessível a uns quantos, e um ruído que aproxima a criação das pessoas comuns, põe-se de uma forma particularmente aguda no contexto actual de multiplicação da música gravada escutada em estado de solidão.
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          Música, Olhares

          Di cosa parliamo, quando parliamo di…

          De novo ao encontro de apontamentos guardados. Este de Abril de 2004.

          Arendt associava  a centelha da revolução ao momento no qual o fio do tempo «começa subitamente de novo», revelando «uma história inteiramente nova, uma história nunca antes conhecida ou contada.» Entendida desta maneira, ela chispa obrigatoriamente nos momentos luminosos, inesperados, irrepetíveis, da experiência colectiva. O mesmo se pode aplicar à vida individual: não é revolucionário quem simplesmente o deseje, ou defenda um programa capaz de proclamar com décadas de antecipação a necessidade histórica da mudança mais abrupta. Mas sim aquele que, num infinito jogo de risco, é capaz de inscrever na sua vida, principalmente na parte da vida que partilha com os outros, instantes ruidosos, insurrectos, de afirmação do inesperado e do ainda não contado. O que consegue, como um dia escreveu Adorno, «contemplar todas as coisas como se elas se apresentassem sempre sob uma perspectiva redentora». Sabendo aproveitar o vento da urgência.

            Apontamentos, Olhares

            República, Estado e Igreja revisitados

            Jesuíta
            Medição antropométrica da cabeça de um jesuíta.

            Se tivermos em conta os contributos aparecidos nos últimos dois anos em redor da passagem do seu centenário, a República Portuguesa saída do 5 de Outubro de 1910 é agora um dos períodos da vida nacional mais inquiridos pelos historiadores. Esta circunstância não invalida porém – é esse aliás o principal interesse de toda a História viva –, a possibilidade de ocorrerem interpretações inovadoras, por vezes a contracorrente, que sistematicamente alertam para os limites de leituras estereotipadas e condicionadas por respostas previamente escolhidas. Aquilo que de marcadamente inovador contém A Separação do Estado e da Igreja, de Luís Salgado de Matos, é pois a sua capacidade, apoiada numa investigação pormenorizadíssima e numa argumentação liberta de apriorismos, para ler com outras lentes aquilo que já foi repetidamente abordado e sobre o qual tudo pareceria estar dito e escrito.

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              História

              O PCP entre Abril e Novembro

              PCP

              Simplificando propositadamente, pode dizer-se que o biénio revolucionário português de 1974-1975 representou um Fevereiro de 1917 sem o subsequente Outubro. A tese central deste livro de Raquel Varela – na origem a sua dissertação de doutoramento – sublinha que, se este esteve perto de chegar, tal não aconteceu, ao contrário do que é frequentemente propagado, em larga medida devido às escolhas e aos métodos adoptados na altura pelo Partido Comunista Português. Deixa ainda claro que o fim daquele período de rápida mudança e de grandes expectativas, e a subsequente passagem a um regime democrático-liberal, foram pacíficos e ocorreram com escassa resistência devido à posição e às acções do mesmo partido. Em consonância com esta ideia, procura mostrar, uma vez mais ao contrário das interpretações dominantes, que bem ao invés das intenções revolucionárias e golpistas que lhes têm sido atribuídas nos momentos decisivos os comunistas escolheram governar com o Partido Socialista, procurando contornar as clivagens e as circunstâncias que pudessem pôr em causa essa linha estratégica.

              A História do PCP na Revolução dos Cravos inscreve-se no campo de investigação próprio da história do presente, o qual oferece inúmeras possibilidades de pesquisa mas escapa aos domínios relativamente assépticos e mais facilmente consensualizáveis no qual trabalham os historiadores que se dedicam a épocas mais recuadas. Relaciona-se com interesses e preocupações ainda próximos, cuja energia se não diluiu, e incorre por isso em análises inevitavelmente controversas, sujeitas a confrontações, o que acontece neste caso. A abordagem documental da política do PCP face ao desenvolvimento do processo revolucionário e às posições dos socialistas e do MFA é exaustiva e permite contornar muitas das eventuais objecções, mas os limites colocados à investigação das fontes, em particular os erguidos pelo próprio PCP, não sendo da responsabilidade da historiadora deixam sempre em aberto a possibilidade do enredo escolhido vir a precisar de alguma afinação. Poderá, por exemplo, revelar-se útil uma inquirição das iniciativas e das pulsões revolucionárias experimentadas pelos sectores do partido mais directamente envolvidos nos movimentos de massas. Não é este no entanto o ângulo de análise deste trabalho, assumidamente centrado na intervenção do núcleo dirigente reunido em volta de Álvaro Cunhal. Neste sentido, nenhum estudo futuro poderá contornar a investigação exaustiva que lhe serviu de fundamento e o valor da dose de informação que oferece.

              Raquel Varela, A História do PCP na Revolução dos Cravos. Bertrand Editora. 400 págs. Publicado na LER de Junho de 2011.

                História, Memória

                Guevara e Theroux

                Che

                Conta Pierre Kalfon, um dos seus mais isentos biógrafos (poucos entre muitos), que numa tarde de Abril de 1964, durante uma breve passagem por Paris – a caminho da União Soviética em missão diplomática da então jovem revolução cubana – Ernesto Guevara almoçou numa pizzaria da Boulevard Saint-Michel. Passeou depois por meia hora pelas imediações do Collège de France e da Sorbonne, que muito antes conhecera de leituras e de filmes. Relatará o próprio «Che» que de repente, na Rue des Écoles, um sujeito reparou no seu inconfundível aspeto – barba rala e desalinhada, a boina preta estrelada e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que o acompanhava: «Vê bem a lata daquele tipo ali, a imitar o Che Guevara!» Desde muito cedo a figura do argentino viu-se de facto colada ao ícone que excedia já o seu corpo físico, definindo-se muito para além do lugar datado e material que a História lhe reservou.

                De início, e durante bastantes anos, ela ganhou vida no espectro das crenças insurretas que interpretavam as possibilidades de erguer um mundo melhor, mais igualitário e mais justo. Conquistado no entanto, se preciso fosse, a tiro de bazuca e de metralhadora. Esse é o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com sentido de missão ou necessidade de ratificação tribal, ainda transportam consigo, como vestígio de uma real ou imaginada insolência, em medalhas, autocolantes e t-shirts. Quase sem de tal se aperceberem, rompem porém as configurações da rebeldia e do desespero, associando-as a algo de mais amplo que integra o conjunto de sinais dos quais se servem habitualmente os imaginários de fuga. Aproximando-se do logótipo dos velhos cigarros Camel, do mapa irregular de uma ilha das Caraíbas gravado na publicidade colorida de uma marca de rum, das capas tentadoras dos livros de Bruce Chatwin ou de Paul Theroux. Para os quais olhamos sem grandes conjeturas, projetando a ideia da viagem, da partida, associada a uma vaga e errática noção de liberdade.

                  História, Memória, Olhares

                  O país sem luz

                  Coreia do Norte

                  Em 2010 a jornalista Barbara Demick, que já havia sido premiada por Logavina Street (1996), uma corajosa e emocionante cobertura do cerco de Sarajevo (1992-1996), ganhou o Prémio Samuel Johnson de não-ficção com o livro Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea. Demick segue aí o percurso de seis cidadãos norte-coreanos: dois namorados que durante mais de uma década tiveram medo de contar um ao outro a sua recusa do regime; um jovem sem-abrigo; uma médica um tanto idealista; uma operária que ama Kim Il Sung mais do que a sua própria família; e a sua filha rebelde. Apesar das enormes limitações que precisou enfrentar para fazer o seu trabalho, procurou compreender os mecanismos de sobrevivência, de aceitação ou de resistência, de pessoas comuns vivendo sob um regime totalitário que proíbe Gone with the Wind por considerar o enredo subversivo, que controla a informação e as comunicações de maneira absolutamente férrea mantendo-se o único país do mundo sem Internet, e que durante as manifestações de apoio ao regime fotografa as expressões dos cidadãos para aferir da sua fidelidade. O livro acaba de sair em edição portuguesa com o título A Longa Noite de um Povo. A vida na Coreia do Norte (Temas e Debates/Círculo de Leitores), e começa assim: «Se olharmos para uma fotografia de satélite do Extremo Oriente, à noite, vemos uma grande mancha a que, curiosamente, falta luz. Essa área de escuridão é a República Popular Democrática da Coreia.» Quanto às pessoas que habitam esse mundo com a iluminação pública em ruínas regido por um governo despótico e brutal, delas diz a jornalista que «talvez não estejam à espera de nada em particular, apenas à espera de que algo mude.»

                    Atualidade, Democracia

                    Do sentido do transitório

                    poeta

                    Percorrendo os arquivos de um dos meus primeiros blogues, dou de caras com este post-proposta datado de Dezembro de 2003. Pura arqueologia, pois.

                    O poeta, porque transporta consigo a liberdade, é um viajante. Longe de se perder nas esferas menores do reino do efémero,  cruza a mais antiga memória com impaciência juvenil diante do não visto e do que está por cumprir. Crivado de passados, organiza emoções e renova desejos. Combina experiência e invenção. É moderno na medida do seu arcaísmo. É o próprio tempo. Por isso todos os ministérios, direcções-gerais, gabinetes jurídicos, administrações, conselhos directivos, estados-maiores, deverão no futuro integrar um núcleo avançado de poetas. Para que jamais percam o sentido do importante, do realmente importante, que é o transitório.

                    Uma possibilidade maiakovskiana que não pesaria muito no Orçamento Geral do Estado.

                      Devaneios, Olhares, Poesia

                      Vanitas vanitatum, et omnia vanitas*

                      o académico

                      Eleito por 17 votos contra outros 7 dos auto-proclamados «imortais», o escritor franco-libanês Amin Maalouf acaba de ocupar na Académie Française, fundada em 1635 por Luís XIII, o cadeirão deixado vago em Outubro de 2009 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Dois homens com obra extensa e admirável que não havia necessidade de colocar precocemente num expositor de museu. Ao qual jamais pertenceram, por vontade da vetusta Academia ou dos próprios, figuras como Sartre, Beauvoir, Camus, De Maistre, Balzac, Descartes, Diderot, Flaubert, Molière, Rousseau, Proust, Verne, Gautier ou Zola. Mas se Maalouf se sente bem na sua fauteil, quem somos nós, seus atentos e carinhosos leitores, para lhe criticar o pequeno prazer?
                      ___
                      * Não, não é esta a divisa da Académie Française.

                        Etc.

                        Wstawać

                        Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto. Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, depois de descoberta a sua ascendência judia, ser enviado para o campo de extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de memória», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem, com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza – se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento. (mais…)

                          Direitos Humanos, História, Leituras, Memória

                          Já vi este filme (o caso Rui Tavares)

                          Rui Tavares

                          Aquilo que mais me preocupa no caso da demissão de Rui Tavares do lugar de deputado europeu independente pelo Bloco de Esquerda não é saber quem «tem razão». Ou quem cometeu mais ou menos erros. Ou se as coisas poderiam, por cada uma das partes, ter sido conduzidas de outra forma. Provavelmente poderiam. Como provavelmente todos deram passos em falso, embora aceitando que alguns desses passos em falso foram mais passos em falso do que outros.

                          Também não é coisa que me perturbe a evidente divergência das posições públicas do Rui Tavares em relação ao que parecia ser a linha oficial do partido. Aliás, foi justamente a sua condição de independente, foi o trabalho dele, e, em regra, foram as suas posições públicas muitas vezes autónomas, que aproximaram muitos eleitores do Bloco ou impediram outros de dele se afastarem. No que me diz respeito, foram pessoas como o Rui, o José Manuel, o Miguel, a Marisa, e tantas outras em quem confio, ou cujo trabalho aprecio mesmo quando não penso exactamente como elas, que, contra ventos e marés – para não atribuir nomes próprios a esses ventos e a tais marés – me fizeram votar uma outra vez, apesar de certas perplexidades, no BE.

                          O que de facto alarma, e muito, é ver a divergência política tratada com recurso ao processo – historicamente ancorado na tradição da esquerda velha, autoritária e rezingona – da calúnia, da insinuação, da ideia de «traição», da deturpação, avançados com uma violência desproporcionada em relação à que se utiliza para atacar os verdadeiros adversários políticos. E numa altura e que essa divergência deveria servir, justamente, para estimular o debate, que se torna imperativo travar, em torno das escolhas, dos métodos, e sobretudo da orientação política e dos objectivos, complementarmente dos rostos, de um Bloco de Esquerda capaz de recuperar do recente e significativo desaire.

                          Para quem já passou por isto noutros carnavais – pelo que ouviu, pelo que leu, e sobretudo pelo que viveu – há aqui uma sensação pesada de déjà vu. De voltar atrás no tempo, na história, regressando às mesmas injustiças personalizadas, aos mesmos exageros pautados por uma rígida agressividade, à mesma sensação de tempo perdido. Aquilo de que a esquerda, esta esquerda, precisa, não é de acusar, de diabolizar, de apontar hipotéticos traidores, de empurrar figurantes para fora do tablado, de alimentar uma qualquer caça às bruxas. É, justamente ao contrário, de ouvir, de confrontar, de discutir e de traçar caminhos partilhados, abertos, com base numa pluralidade que se faz das ideias e das escolhas mas também das pessoas.

                            Apontamentos, Atualidade, Opinião

                            Luta pelo socialismo ou combate pela democracia?

                            BSS

                            Durante um entrevista concedida neste sábado, dia 18 de Junho, à Antena 1, Boaventura de Sousa Santos fez algumas considerações de um enorme interesse sobre os objectivos e reorganização da esquerda, justificando a maior atenção de quem, dentro deste campo, procure verdadeiramente uma maneira de sair do actual impasse que não seja a da habitual e suicidária fuga para a frente. Depois de afirmar que agora «a esquerda tem que se repensar muito», ou mesmo «completamente», Boaventura recorda que a «esquerda à esquerda», na qual engloba o Bloco e o PCP, foram construídos e conservam-se dentro de um imaginário fundado no princípio de acordo com o qual «a luta é uma luta anticapitalista», tendo o socialismo como horizonte único. Aceita, evidentemente, que este horizonte existe e continuará a existir durante muito tempo, «enquanto houver capitalismo», mas enfatiza que «neste momento a questão fundamental não é o capitalismo, é a democracia». Insistindo em que «o que está em causa é a sobrevivência da democracia». Daí que «das duas uma: ou esta esquerda quer participar na defesa desta democracia, ou não quer participar.». Precisa escolher. Boaventura entende também que o carácter imperativo de tal escolha se aplica a ambos os partidos, mas considera que aquele que está em condições de defrontar mais rapidamente este problema é o BE, uma vez que o Partido Comunista existe ainda, fundamentalmente, como força de protesto, enquanto o Bloco pode desenvolver-se na perspectiva de vir a participar «num arco de governabilidade» – obviamente assente em princípios – destinado em primeiro lugar a defender os valores essenciais, que são também sociais, do Estado democrático. A entrevista encontra-se aqui.

                              Atualidade, Democracia, Opinião

                              Elena Bonner

                              Andrei e Elena

                              Desapareceu este sábado em Boston, aos 88, a antiga dissidente soviética Elena Bonner (1923-2011), viúva do físico nuclear e dissidente soviético Andrei Sakharov. Durante os anos cinzentos de Brejnev, muitos se habituaram a vê-la sempre ao lado de Andrei na denúncia comum da corrida ao armamento, da manutenção dos campos do Gulag, da perseguição dos dissidentes. Dado o prestígio internacional do marido, que o protegia um pouco dos excessos da repressão, foi muitas vezes Elena quem mais directamente sofreu com os ataques do KGB motivados pela atitude partilhada de enfrentamento do regime. As autoridades, a sua polícia e os seus porta-vozes gostavam de destacar as suas origens judaicas para acusá-la de estar a serviço de potências estrangeiras e de ter desviado Shakarov – Prémio Estaline de 1954, Prémio Lenine de 1956 e antigo membro da Academia das Ciências da União Soviética – «do bom caminho».

                              Em 1938, na época da mais intensa repressão, Elena vira o pai ser fuzilado e a mãe condenada a oito anos de trabalhos forçados. Ainda assim aderiu ao Partido Comunista, abandonando-o apenas em 1968, quando da invasão soviética da Checoslováquia. Durante a década de 1970 participou em protestos contra as detenções em massa de outros dissidentes, tornando-se numa fonte vital de informações sobre o destino dos detidos e exilados. Viria a receber em Oslo o Nobel da Paz de 1975 concedido ao marido, após Sakharov ter sido proibido de viajar para o estrangeiro. Confinado este, em 1980, à cidade Gorki, a actual Nizhny Novgorod, por protestar contra a invasão soviética ao Afeganistão, Elena tornou-se então no seu único vínculo com o exterior, até que em 1984 foi também ela condenada a cinco anos de exílio interno em Gorki por ter «divulgado sistematicamente informações caluniosas sobre a União Soviética». Depois do fim da URSS, Bonner participou de importantes organizações de defesa dos direitos humanos, tornando-se numa ardente opositora de Vladimir Putin. Até ontem de manhã.

                                Democracia, História, Memória

                                Aeroplano

                                aeroplano

                                É quinta à tarde e leio pontos dos meus alunos que falam de Goebbels, dos Beatles e do Super-Homem. Mantenho um Mahler vibrante nos headphones. Fumo cigarros fortes e baratos, de patente cubana, enrolados sabe deus onde, chegados de Bruges. Bebo um licor bielorusso muito doce, de nome impronunciável. O sol roça as copas das árvores e um pequeno aeroplano passa no horizonte.

                                  Devaneios, Etc.

                                  O Bloco no seu labirinto (4)

                                  Último post da série, um pouco mais comprido que os anteriores. Aspectos avulsos poderão ser desenvolvidos mais tarde. Recordo que escrevo estas notas a partir de fora, como simpatizante crítico, eleitor e «compagnon de route» do BE, do qual não sou militante. O meu objectivo é apenas estimular inquietações.

                                  Anoto quatro possíveis áreas de intervenção no debate sobre a reorganização do Bloco e o seu papel na construção de uma alternativa à esquerda. Com a solidariedade social, o desenvolvimento económico e da qualidade de vida e a defesa da liberdade como elementos incontornáveis e comuns de um cenário com futuro.

                                  1. No centro da necessária renovação encontra-se uma definição tão clara quanto possível do paradigma político a adoptar e uma identificação da base social que o pode apoiar. É preciso escolher de forma segura e consistente entre a construção de uma alternativa socialista e democrática, voltada para a produção de convergências no campo da governabilidade – uma «social-democracia de esquerda», sem dúvida, e não há que ter medo das palavras quando se nomeia esta tendência fundadora do movimento operário e popular –, ou a insistência num «comunismo modernizado», aparentemente arejado mas ao mesmo tempo nostálgico da intervenção redentora de uma vanguarda omnisciente e do papel de um Estado despótico. Escolher entre o protesto como uma necessidade, destinada a defender direitos e a melhorar a vida dos cidadãos, e o protesto como parte da «luta final», enquanto instrumento de uma transformação violenta da sociedade. É também preciso esclarecer o espectro sociológico que o Bloco está em condições de reunir. Com toda a probabilidade, a crescente mas empobrecida classe média urbana, os intelectuais e profissionais liberais desprezados pelo «desenvolvimentismo» capitalista, os estudantes e as mais novas e melhor formadas gerações de trabalhadores efectivos ou precários. Aceitando que outros partidos à esquerda, a começar pelo PCP, agregarão diferentes sectores. O «povo do Bloco» terá um rosto fundado nos interesses e expectativas sociais que podem convergir, mas sem a fantasia de um dia englobar toda a gente que confia na esquerda como território de um projecto solidário. (mais…)

                                    Atualidade, Opinião