Há dois dias este blogue ultrapassou o meio milhão de visitantes. Em números mais ou menos rotundos isto significa uma média de quase 300 visitas únicas diárias ao longo de um pouco menos de cinco anos. Já a visualização total de páginas por dia, essa ronda as mil. Para um blogue a solo que quase não fala de política local, das chicanas da blogosfera, de sexo explícito ou das transferências do futebol, que mantém um registo relativamente intimista e um padrão de escrita pouco popular, não parece nada mau. Aliás, quando o número de visitantes quotidianos ultrapassa os quinhentos pigarreio um pouco e penso logo que alguma coisa não está bem. Dá portanto para as despesas. Isto é, para manter noite adentro, extorquindo horas ao sono, entre cigarros e bebidas quentes, o prazer de escrever para pessoas que se aqui entram uma vez e depois regressam é porque se sentem bem. É sobretudo para elas – algumas transformadas entretanto em amizades das verdadeiras – que segue um imenso abraço. Acompanhado de um obrigado pela companhia e pela persistência.
Ninguém sabe que caminho tomará e até onde poderá ir a revolta popular que irrompeu na Tunísia e está a alastrar a outros países islâmicos que vivem debaixo de ditadura. A insurreição parece incontida: multidões ocupam ruas e praças, clamando de uma forma intensa, bem audível, profundamente física, por mudanças numa vida colectiva feita de privações, repressão e desespero. A repressão actua e não é afável, fere e mata pessoas, mas não parece ser capaz de conter os efeitos de uma tensão que, percebe-se agora, atingiu os limites do tolerável e acabou por explodir. Os objectivos parecem ser claros e vagos ao mesmo tempo, pois se a maioria talvez não identifique com clareza aquilo que deseja sabe muito bem o que não quer. E não quer, em primeiríssimo lugar, continuar a ver na televisão, em fotografias gigantescas, em estátuas erguidas em espaços públicos, rostos que são sinais da estagnação e da ausência de liberdade. Sim, porque a palavra liberdade é audivelmente pronunciada por muitos dos revoltosos. E a palavra democracia também.
Ao mesmo tempo, basta-nos seguir as notícias, ouvir os especialistas, ver fotografias e vídeos que vão chegando, para concebermos a diversidade da revolta. Na Tunísia, por exemplo, vemos muita gente da classe média, muitas mulheres e muitos jovens, manifestantes que se percebe terem um certo nível de formação. No Iémen quase só encontramos homens, invariavelmente com sinais da mais extrema pobreza. No Egipto confluem grupos e rostos muito diversos. Alguns sectores estão sedentos de democracia e de desenvolvimento, a outros preocupa principalmente a sobrevivência. Mas seja para onde for que se caminhe, uma coisa já é certa: esta vaga de rebelião tem vindo a devolver ao mundo islâmico o respeito e a simpatia de milhões de pessoas que não fazem parte dele e dele tantas vezes desconfiam. Estas podem finalmente perceber que a «rua islâmica» não é território exclusivo de homens barbudos, prontos a degolar os infiéis que ousem duvidar da sua fé mas submissos diante dos déspotas. Centenas de milhares, milhões talvez, estão a mostrar ao mundo o que apenas há um mês lhes pareceria absurdo: que perderam o medo.
Um grupo de cantores portugueses juntou-se para interpretar esta canção de apoio Cesare Battisti. Pode encontrar aqui mais informação sobre o caso deste homem, perseguido desde há quatro décadas, sempre debaixo de falsas ou tortuosas acusações, principalmente por um dia ter acreditado num mundo mais justo. Um caso de «injustiça poética» que não pode consumar-se.
«É preciso suprimir as preocupações paternalistas que atenuam a necessidade de trabalhar para viver», disse Raúl Castro após mais de 50 anos ligado a um governo que cedeu a tal descuido. Para dois milhões de cubanos, funcionários do Estado, 500.000 agora e mais 1.500.000 a prazo, isto significa uma acusação formal de mandriice. E a obrigação de procurarem um novo modo de ganhar a sua vida. Como? Trabalhando numa das 178 actividades privadas que o governo lhes permite ter, ainda que não possuam formação para qualquer uma delas ou um financiamento básico para lançarem o negócio. A lista – anexo 1, da resolução número 32 de 7 de Outubro de 2010 – parece uma sucessão de deixas para um mau programa de humor. Abre com «reparador de instrumentos de música» e encerra com «alugador de bicicletas». Pelo meio, «poceiro» (o operário que abre poços), «cabeleireiro», «engomadeira», «fabricante de cintos», «polidor de metais», «pedreiro», «vendedor de vinho», «figura folclórica» (imagino o que possa ser), «cartomante» (sic), «vendedor de flores artificiais», «descascador de frutos naturais», «par de dança» ou, acreditem, «dandy» (talvez em Cuba signifique outra coisa). Pode também entrar-se com expectativas na carreira de «estofador de botões» (a pessoa que reveste de tecido alguns modelos antiquados daqueles acessórios do vestuário), «tratador de cães», «carregador de isqueiros», «colector-vendedor de matérias primas» (aquele que remexe no lixo para recolher e revender o que se puder aproveitar), «operador de compressor de ar, reparador de pneus e de câmaras de ar», ou «preparador-vendedor de bebidas não alcoólicas ao domicílio». Como disse o Castro mais novo, «é preciso acabar de vez com a ideia de que em Cuba é possível viver sem trabalhar». Existe agora um mundo novo de possibilidades, bem preciso e bem delimitado, que liberta o Estado dos inúteis e dos preguiçosos e que prepara o futuro do país. Basta solicitar licença para exercer uma actividade que conste do catálogo, aguardar pelo deferimento e ficar à espera do milagre da sobrevivência. Para pelo menos dois milhões de trabalhadores cubanos e para as suas famílias é este o deprimente horizonte.
Dados retirados do suplemento «Le Mag» do Libération de 23 de Janeiro.
Quando em 1963 Hannah Arendt publicou Eichmann em Jerusalém, invocando aí o tema difícil da banalidade do mal,provocou uma onda de choque em muitos dos seus leitores judeus ou em pessoas que simpatizavam com as suas causas. O escândalo derivou, como tantas vezes acontece perante uma argumentação lúcida mas complexa, de uma incompreensão profunda e renitente. Na realidade, Arendt, ela própria de origem judia, não tinha declarado ali que os judeus haviam sido cúmplices do seu próprio aniquilamento às mãos da barbárie nazi, como alguns quiseram fazer crer, mas sim que uma certa passividade, ou desinteresse, mantido por muitos perante os avanços do nazismo e do anti-semitismo, os haviam transformado em inevitáveis vítimas. Quando acordaram não tinham alternativa. Sem dramatizar em excesso os resultados das eleições de domingo e pretender, o que seria um absurdo, que a situação política que vivemos tem algo que se compare à da Alemanha durante a República de Weimar – Cavaco não é propriamente Adolf Hitler e continuamos apesar de todos os males a viver em democracia – podemos ainda assim esboçar uma analogia com a explicação da teórica alemã. Olhar para o lado, incitar à indiferença, trouxe consigo, objectivamente, uma derrota que irá lesar muitos dos que por omissão a permitiram ou amplificaram.
É que aconteceu o que aconteceu porque um largo sector da «consciência global» da esquerda – um conceito que arrepia muitos dos seus segmentos, mas que existe para além da sua vontade – não só não foi capaz de gerar as condições para produzir uma alternativa convincente e mobilizadora, como se refugiou num desinteresse, numa maledicência, numa abulia que acabaram por favorecer uma direita unida, pragmática e razoavelmente enérgica. Manuel Alegre, de facto, apenas mobilizou os partidários de uma ideia de esquerda cheia de pergaminhos mas talvez demasiado retórica, imprecisa e pouco atractiva. Já os mobilizáveis que não foram mobilizados – leia-se, um bom número de militantes e compagnons de route socialistas – refugiaram-se num rancor absolutamente cúmplice. Agora justificam-se, entre gargalhadas, com um absurdo «eu não vos disse…», mas a verdade é que é fácil afirmar que Alegre foi estrondosamente derrotado – e foi-o – quando de facto tudo se fez para que essa derrota acontecesse, ainda que à custa de uma vitória esmagadora – que o foi – do homem de Boliqueime. A sua apologia da passividade não foi a causa exclusiva da derrota de Alegre, mas foi com toda a certeza responsável pela dimensão do triunfo do candidato da direita. Que não venham sacudir para cima dos outros, aqueles que se moveram, a água do capote.
A manhã estava de sol mas estava triste. Votei às dez, depois de ultrapassar uma barreira aparentemente inabalável de pequenos lobitos em calções e lenço à Baden Powell, com as caras vermelhas e contorcidas pelos 2 graus Celsius, que por ali se mantinham comandados por um matulão de dezassete anos devidamente agasalhado. Tentavam vender calendários impressos a jacto de tinta aos cidadãos eleitores, que resistiam a tirar as mãos dos bolsos ou a descalçar as luvas. Não havia fila: entrei directamente para a mesa de voto e ainda me dei ao luxo de conversar durante dois minutos com os esforçados cavalheiros da mesa e a notória companheira bloquista. Sobre trivialidades, claro. Mas aproveitei para me queixar de ter sido deslocado de uma mesa de voto que ficava a 100 metros de casa para outra a três quilómetros bem medidos. Na minha insana sanha anticavaquista, lá depositei então o voto na urna. Não, não foi naquele senhor doutor médico que é todo ele boa pessoa, não foi no chefe da oposição na Madeira, não foi no funcionário cansado, mas sim no outro, aquele do verbo retumbante que o Sr. Lello detesta. O entusiasmo – o meu e o de toda a gente que vislumbrei – era nenhum. Suspeito, julgo que com algum fundamento, que não terá sido por causa do frio polar. Só vi pessoas a circularem de cá para lá, de lá para cá, com cara de quem acabou de tirar da caixa Multibanco um extracto de conta e está a precisar de um café bem forte e bem quente. Tenho a impressão de que não é assim que se levantam futuros, mas às tantas também estou a exigir demasiado da vida.
Nota importante – Ao escrever este apontamento constatei que anticavaquista (sem hífen) já consta entre as palavras reconhecidas pelo corrector ortográfico Flip, versão 8, como fazendo parte da língua portuguesa. Valha-nos isso.
Se mais razões não existissem para a compra de um iPad – e existem, como já escrevi noutro post – descobri uma há cerca de oito dias. Esta definitiva para um viciado em jornais como eu. Admito que não serei um leitor vulgar: aprendi a ler pelo velho Diário de Notícias e talvez por isso não mais fui capaz de passar um único dia sem diários, semanários, quinzenários, mensários ou similares. Raramente apenas um, em muitas alturas dois, três ou bem mais. Bastantes vezes, fiz quilómetros a pé ou de bicicleta para descobrir quiosque, livraria, café, mercearia ou barbearia que fizesse o favor de me vender um exemplar. Não se tratando de uma mania universal, não é no entanto uma extravagância, pois muitas outras pessoas partilham este género de dependência. A leitura de jornais através do computador pessoal não veio alterar substancialmente este estado de coisas, uma vez que a leitura é ali algo incómoda e parcial. Além disso, para termos acesso às edições completas precisamos quase sempre de pagar sucessivas assinaturas, que muitas vezes nem temos sequer a possibilidade de aproveitar pois não é a toda a hora ou em qualquer espaço que podemos ler o jornal naquele formato.
O iPad veio alterar esta situação, colocando-nos em cima dos joelhos, quando e onde quisermos, o jornal ou a revista que pretendemos. Mas por-se-ia ainda assim o problema dos custos, não é verdade? Pois não é não senhora. Para além de assinaturas de publicações autónomas a um preço módico – por exemplo, pago 7 euros mensais por 4 números da edição francesa do Courrier International e acesso total ao arquivo da revista – existe um programa e um serviço para iPad (também existe para smartphones, mas aqui não se lê tão bem) que descobri há pouco e me deixou rendido. O programa chama-se PressReader e permite-nos aceder, por uma assinatura que custa 25 euros mensais, à edição completa, igual à edição em papel e com a possibilidade de copiar, guardar, imprimir ou partilhar qualquer artigo, de cerca de 1.700 publicações de todo o mundo. Como dizia alguém, é só fazer as contas: subscrevo neste momento o Público, o DN, o JN, o Expresso, a Folha de S. Paulo, o Guardian, o Irish Times, o Le Monde (o El País e o NYT ainda não aderiram, mas têm aplicações grátis próprias) por um total de 25 euros. Ora só o Público em papel, comprado no quiosque, ficava-me antes por cerca de 35. Chega para testemunhar a alegria de um viciado, a quem, além do mais, acabam de cortar 10% do ordenado? Resta ter tempo e disposição para esta orgia de informação, mas esse é um outro assunto.
Sempre vi o «dia de reflexão» que antecede cada acto eleitoral como um disparatado sinal de imaturidade democrática. Como se por decreto nos mandassem tomar um duche frio. Ou desviar os olhos dos outdoors, tapar a boca e fechar os ouvidos às mensagens que chegam de todo o lado. «Pensa bem, rapaz, não te precipites.» «Vá lá, respira fundo e conta até dez.» «Vê lá bem o que fazes.» «Tu tem-me juizinho nessa cabeça.» De certa maneira faz de nós crianças. Ou seres impulsivos e um pouco tolos. Não será agora que vou mudar de opinião. [Que tanta reflexão não vos faça esquecerem-se de votar neste domingo.]
A Angelus Novus editou no final de 2010, na série de História (que coordeno) da colecção «Biblioteca Mínima», o livro A Cultura Popular no Estado Novo, de Daniel Melo. Este constitui uma excelente e actualizada introdução a um tema sobre o qual o autor vem trabalhando desde há anos. A editora acaba entretanto de divulgar no seu blogue uma entrevista com o historiador. Nesta se fala, entre outros aspectos, da forma como o modelo de cultura popular estimulado ou construído pelo salazarismo serviu na época de «’almofada’ social». Ele oferecia, sublinha Daniel Melo, «um conforto existencial face aos receios que a mudança pode compreensivelmente despertar», mas funcionava também como «pilar ideológico, guia da acção e inculcador de certos valores, práticas, vivências e comportamentos, fortemente unidimensionais.» Pode seguir-se aqui toda a entrevista.
Nawaat – a palavra significa «núcleo» em árabe – autodefine-se como «um blogue colectivo independente animado por tunisinos que dá a palavra a todos aqueles que pelo seu combate cívico a tomam, proferem e difundem». Tem publicado centenas de textos, fotografias e principalmente vídeos sobre o movimento popular de protesto que desde meados de Dezembro tem percorrido a Tunísia. É independente, não aceitando qualquer subvenção partidária. No ar desde 2004, foi desenvolvendo ao longo destes últimos seis anos a dose de engenho e de arte bastante para contornar a censura imposta pela ditadura de Ben Ali. E foi agora instrumental no lançamento e na organização dos protestos. Editado em inglês, francês e árabe, pode ser visitado aqui.
A esquerda em campanha parece incapaz de falar para os que precisam realmente de campanha. A fazer chover no molhado quando a savana está ali mesmo ao lado. Bate em Cavaco 24 horas sobre 24 junto daqueles que jamais votarão em Cavaco e não precisam de que lho lembrem. Dando ao mesmo tempo a este oportunidades para ir dizendo ao bom povo hesitante que é atacado pelos que «só sabem dizer mal» e que, no fundo, «nada fazem». A esquerda em campanha denuncia as trapaças e as malfeitorias de Cavaco de segunda a segunda como se parte importante do povo eleitor que decide não visse em muitos desses actos actos sinais de uma «esperteza» que cobiça ou lhe é indiferente. Porque não uma preocupação maior em explicar pacientemente e com imaginação, boca a boca, porta a porta, debate a debate, comício a comício, post a post, a tanta gente que hesita ou ainda duvida, AS RAZÕES pelas quais vale a pena votar positivamente no seu candidato? (Quase três da madrugada. Desligo o computador, apago a luz e desço as escadas trauteando a velha canção de Chico Buarque. «Oiça um bom conselho, que lhe dou de graça.»)
Como não me prende qualquer dever de solidariedade para com um partido ou movimento dotado de programa, estatutos ou objectivos a curto prazo – com Albert Camus, reconheço apenas que «se existisse um partido daqueles que não têm a certeza de terem razão, eu faria parte dele» – posso dar-me ao luxo de ser sincero e de falar com quem me lê sem preocupações exageradas com o impacto do que escrevo. Posso dizer, por exemplo, que sendo adepto obstinado de uma intervenção cívica atenta e permanente, neste momento mais facilmente me revejo na expressão resistente da recusa e do protesto do que na associação a propostas programáticas voltadas para a acção organizada. Haverá quem diga que essa é uma posição cómoda, e provavelmente é-o, mas vivendo numa sociedade sem projectos políticos mobilizadores, sem movimentos nos quais confie ao ponto de aderir fisicamente a eles – já que a alma, lamento, essa só ao velho diabo a doarei –, não é nada de particularmente singular que faça parte da multidão de cidadãos politizados que se não revêem na militância de papel passado. Serão tentações de anarquista? Sim, um pouco, pois admito que entre o vermelho e o negro o meu coração já balançou mais. Mas as circunstâncias não carecem de grandes justificações: muito simplesmente, incomoda-me gritar palavras de ordem, vivas, hurras ou morras quando o meu apoio às ideias, instituições ou pessoas às quais elas se aplicam conserva uma razoável distância crítica.
Sim, já o disse aqui e repito-o agora: no dia 23 votarei em Manuel Alegre. Dele afasta-me muita coisa. Afastam-me desde logo certos pressupostos culturais e modos de estar. Não gosto da exibição de «moralina», essa palavra inventada por Nietzsche para designar uma arrebatada agitação declamatória, em forma de pregação, que nega a dimensão crítica e convicta da intervenção política. Não me agrada a sua concepção protocolar e estritamente canónica de cultura. Não me agrada o vínculo com um Portugal simbolicamente virilizado, taurino e venatório, que me parece de outras eras. Afasta-me também um trajecto recente marcado por atitudes de hesitação ou pouco claras, apesar da afirmação pública de inegável coragem que tem pontuado a sua vida. Aproximam-nos, todavia, factores que se relacionam com muito daquilo que representa, ou pode vir a representar, que é basicamente a reconstrução de territórios de política solidária, a activação de expectativas de mudança, de prioridades sociais, de uma sensibilidade centrada nas pessoas, que se encontram nos antípodas do que Cavaco Silva exprime. É este o campo de combate que agora interessa, muito mais importante do que o espaço para os gostos e os desagrados de pessoas mais ou menos como eu. Por isto, apesar de não andar por aí em desfiles ou comícios a gritar os tais vivas e hurras – sem nada, mas mesmo nada, contra quem o faz –, agirei a 23 sem hesitações. Não me posso refugiar em esquisitices pessoais, não me posso abster, quando, para além de Manuel Alegre, não existe alternativa capaz de impedir que por mais cinco anos tenhamos de conviver diariamente com a cabeça rústica mas perigosa daquele senhor esguio, azedo e de direita.
Os acontecimentos dramáticos da Tunísia, os duros recontros de rua entre os manifestantes e a polícia, e o seu resultado prático com a demissão compulsiva de Ben Ali, inesperados pelo menos para quem os observa de longe, podem ajudar-nos, nesta época de recuo dos movimentos sociais de natureza não-reformista, a perceber que não é através da instalação da cultura de escape ou do conformismo diante do arbítrio que se combatem a tirania, a injustiça ou a desigualdade. Que se revela a possibilidade da realidade que «é» ser bem diversa daquela outra que afinal «pode ser». Através de um processo de mudança apoiado num esforço para sairmos do nosso acanhado território de salvaguarda, dos nosso medos instalados e do nosso desalento. Da pequena vida ocupada com a sobrevivência em fugidios nichos de felicidade nos quais nos resguardamos para sobreviver.
Será um lição para os povos dos Estados do mundo islâmico, dentro dos quais o poder arbitrário, a desigualdade entre ricos e pobres, entre quem pode sempre e quem apenas deve, a pobreza extrema da maioria da população, a exploração do trabalho, a falta de liberdade, o analfabetismo e a ignorância, a intolerância usada como forma de opressão, são camuflados por uma retórica sectária, nacionalista ou antiocidental, apresentada pelas autoridades políticas e religiosas como vinculada a uma «tradição islâmica» na verdade inexistente. Foi o libanês Samir Kassir quem, num livro que lhe custou a vida – Considerações Sobre a Desgraça Árabe, editado em 2006 pela Cotovia – falou dos crimes dessa gente que se mantém no poder fazendo crer aos seus povos «que não têm outro futuro para além do que lhes destina um milenarismo mórbido», remetendo-os ao culto «da desgraça e da morte». Na realidade, uma alteração de política imposta pela revolta generalizada e pela vitória, ainda que temporária, dos objectivos nucleares dos sublevados, como esta que acaba de acontecer na Tunísia, suscita o exemplo de uma oportunidade, de um trilho, que só pode preocupar as elites criminosas, cujo poder se funda na opressão e se alimenta do ódio ao outro que vive a milhares de quilómetros de distância.
Mas será uma lição também para os povos do chamado ocidente, em particular para os da Europa do sul, contidos por sistemas políticos bloqueados, sem capacidade de renovação e de motivação, e narcotizados por uma comunicação social manipuladora, controlada pelos grupos financeiros, que se esforça para impor a ideia de que toda a perturbação é necessariamente má. Espalhando, como um vírus, a fantasia de que os núcleos concêntricos do poder são imunes aos protestos dos cidadãos e à possibilidade de uma mudança de orientação na organização da economia, na escala dos valores sociais, na escolha das prioridades políticas. A revolta extrema, dura e radical, com contornos por vezes brutais, como aquela que vimos agora nas cidades, vilas e até povoados tunisinos, pode desenhar num horizonte geograficamente alargado, a contracorrente, a percepção de que existe um momento no qual a paz social carece realmente de alguns safanões. Estes movimentos bruscos e perturbantes não são agradáveis – só um tonto ou um louco gosta do cheiro das barricadas em chamas, do ardor dos gazes lacrimogéneos, de sangue derramado –, mas podem ajudar a reencontrar a ideia de que a mudança radical não é um mal em si. E de que ela pode até representar a melhor forma de evitar males bem piores.
Sobrinha-bisneta do imperador Napoleão I, a princesa Marie Bonaparte (1882-1962) foi uma figura central para a definição da psicanálise enquanto prática clínica e saber autónomo e reconhecido (ou antes, razoavelmente reconhecido, uma vez que ao fim de mais de um século de combate os seus inimigos permanecem activos e vigilantes). Muito próxima de Freud, a quem ajudou pessoalmente quando em 1938, já com 71 anos, este precisou de sair de Viena para escapar dos nazis, Marie usou a sua enorme fortuna – em boa parte herdada do avô, François Blanc, fundador do Casino de Monte Carlo – para financiar encontros científicos e trabalho de investigação na disciplina que ela própria viria a adoptar profissionalmente. O eco longínquo de um destes trabalhos acaba de me chegar através de uma referência num artigo de Evan Osnos saído na New Yorker («Meet Dr. Freud», sobre a recente voga da psicanálise na China após longas décadas de perseguição e clandestinidade). Ali se refere a dada altura o financiamento, por parte de Marie, de uma viagem do psicanalista e antropólogo húngaro Géza Róheim à Austrália com o objectivo de determinar se entre os aborígenes existia complexo de Édipo. Róheim concluiu que sim, em apoio da ocorrência de uma estrutura edipiana universal. A conclusão é respeitável, mas é também irresistível a analogia que pode ser feita entre aquela pesquisa e os esforços dos evangelizadores católicos do século XVI para determinarem pela observação empírica – por vezes com recurso à tortura – se os ameríndios possuíam alma (já que, de acordo com a opinião à época dominante, os negros não a tinham de todo). Fica a declaração urbi et orbi de que esta analogia vale por si, não transportando consigo qualquer preconceito em relação à teoria e à prática da psicanálise, à bondade da princesa Marie ou ao trabalho do notável ex-bolseiro húngaro.
Prevaleceu o bom senso. Ao contrário do que chegou a ser anunciado, o Estado do Novo México não vai perdoar a Henry McCarty, ou melhor, a William H. Bonney, ou melhor ainda, a William Antrim, Jr., aliás Billy the Kid, 118 anos depois da sua morte às mãos do xerife Pat Garrett, os crimes cometidos, segundo palavras do governador Bill Richardson, «a saquear, a devastar e a matar os merecedores e os inocentes de igual forma». Salvaguarda-se assim uma parte do património americano que muitos milhões de pessoas foram partilhando. Pois faria lá sentido algum que agora, à revelia de tantos rapazes que vibraram com os seus assaltos, que se entusiasmaram com os duelos de carabina e revólver ganhos pelo herói-bandido com cara de bebé, se passasse um atestado de ignóbil inocência ao famigerado Kid?
Ando a ler/reler trabalhos publicados nas décadas de 1970 e 1980 por João Martins Pereira. Este é o segundo fragmento seguido de um texto (muito) de circunstância que tenho vontade de partilhar.
«31 de Janeiro[de 1985] – Sempre que a minha filha chega a casa e diz «Hoje foi um dia tão bom!» – correram-lhe bem as aulas, ganhou o jogo de basquete, trocou olhares cúmplices com um colega, sei lá que mais — não consigo evitar lembrar-me, abusivamente, das últimas palavras de Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, de Soljenitsine (de que então apenas conhecia esse livro e nada mais: se fosse hoje, voltando ao tema de há dias, tê-lo-ia lido da mesma maneira?): «No campo de prisioneiros Sukhov adormeceu completamente satisfeito, feliz. Fora bafejado por vários golpes de sorte durante aquele dia: não o haviam posto no xadrez; não tinham enviado a brigada para o Centro; surripiara uma tigela de kasha ao almoço; o chefe de brigada fixara bem as rações; […] comprara tabaco. E não caíra doente. Um dia sem uma nuvem carregada, sombria. Quase um dia feliz»
E um desempregado, que calcorreia por trabalho, ou se arrasta pelas ruas? E um empregado, que diariamente repete, a horas certas, os mesmos gestos maquinais e desinteressantes? E um velho, que frequenta, dias sem fim, os mesmos cantos da casa ou os mesmos bancos de jardim? Que pequenos nadas lhes conseguirão fazer «um dia feliz»? Que sociedade é esta, de tão baixas expectativas, que a simples pausa de uma máquina, o tempo de uma beata, ou um banco livre batido pelo sol cheguem talvez para tornar «feliz» um dia igual a todos os outros?» [João Martins Pereira, O Dito e o Feito. Cadernos – 1984-1987]
«22 de Fevereiro [de 1985] – Por vezes cruzamo-nos com rostos que nos reconciliam com o mundo. Na maior parte dos casos são rostos de crianças, ou de adolescentes. Algumas vezes, de velhos. Quase nunca de adultos, esses crispados, tensos, ruminando frustrações, pressas, responsabilidades, preocupações – rostos sem desejo, sem alegria. Incomunicáveis.» [João Martins Pereira, O Dito e o Feito. Cadernos – 1984-1987]