A água do capote

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Quando em 1963 Hannah Arendt publicou Eichmann em Jerusalém, invocando aí o tema difícil da banalidade do mal, provocou uma onda de choque em muitos dos seus leitores judeus ou em pessoas que simpatizavam com as suas causas. O escândalo derivou, como tantas vezes acontece perante uma argumentação lúcida mas complexa, de uma incompreensão profunda e renitente. Na realidade, Arendt, ela própria de origem judia, não tinha declarado ali que os judeus haviam sido cúmplices do seu próprio aniquilamento às mãos da barbárie nazi, como alguns quiseram fazer crer, mas sim que uma certa passividade, ou desinteresse, mantido por muitos perante os avanços do nazismo e do anti-semitismo, os haviam transformado em inevitáveis vítimas. Quando acordaram não tinham alternativa. Sem dramatizar em excesso os resultados das eleições de domingo e pretender, o que seria um absurdo, que a situação política que vivemos tem algo que se compare à da Alemanha durante a República de Weimar – Cavaco não é propriamente Adolf Hitler e continuamos apesar de todos os males a viver em democracia – podemos ainda assim esboçar uma analogia com a explicação da teórica alemã. Olhar para o lado, incitar à indiferença, trouxe consigo, objectivamente, uma derrota que irá lesar muitos dos que por omissão a permitiram ou amplificaram.

É que aconteceu o que aconteceu porque um largo sector da «consciência global» da esquerda – um conceito que arrepia muitos dos seus segmentos, mas que existe para além da sua vontade – não só não foi capaz de gerar as condições para produzir uma alternativa convincente e mobilizadora, como se refugiou num desinteresse, numa maledicência, numa abulia que acabaram por favorecer uma direita unida, pragmática e razoavelmente enérgica. Manuel Alegre, de facto, apenas mobilizou os partidários de uma ideia de esquerda cheia de pergaminhos mas talvez demasiado retórica, imprecisa e pouco atractiva. Já os mobilizáveis que não foram mobilizados – leia-se, um bom número de militantes e compagnons de route socialistas – refugiaram-se num rancor absolutamente cúmplice. Agora justificam-se, entre gargalhadas, com um absurdo «eu não vos disse…», mas a verdade é que é fácil afirmar que Alegre foi estrondosamente derrotado – e foi-o – quando de facto tudo se fez para que essa derrota acontecesse, ainda que à custa de uma vitória esmagadora – que o foi – do homem de Boliqueime. A sua apologia da passividade não foi a causa exclusiva da derrota de Alegre, mas foi com toda a certeza responsável pela dimensão do triunfo do candidato da direita. Que não venham sacudir para cima dos outros, aqueles que se moveram, a água do capote.

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