Arquivo de Categorias: Olhares

Psicopatas há muitos

Ignorante de tanta coisa que sou, tinha até há pouco uma perceção muitíssimo parcial da psicopatia e do psicopata. Julgava este, como creio que ocorre com a maioria das pessoas, apenas aquela figura antissocial, com formas muito graves de transtorno de personalidade, habitualmente associada à prática compulsiva e prolongada de crimes de sangue, em regra praticados de uma forma sistemática e tantas vezes particularmente horrível. Como o fizeram o londrino Jack, o Estripador, Harold Shipman, o «Dr. Morte», médico britânico que matava os pacientes, ou John Wayne Gacy, que se vestia de palhaço para assassinar ritualmente crianças e jovens.

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    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

    Verão Quente: não foi isto que vivemos

    O Público começa um artigo sobre o Verão Quente de 1975 da seguinte forma: «Foram meses de instabilidade política, de anúncios de golpes e contragolpes de Estado, e também marcados por uma onda de violência ímpar. A História descreve uma realidade de trincheiras e os protagonistas reconhecem que Portugal esteve à beira de uma guerra civil. O país vivia, literalmente, a ferro e fogo. Foi o Verão quente.» Na verdade, a História (com o H maiúsculo que os autores do texto preferem usar) não descreve nada disto, ou apenas isto. O chamado Verão Quente foi um tempo de grande instabilidade política e social, sem dúvida alguma – aliás, revoluções tranquilas, sem instabilidade e hesitações, não existem -, mas também um período de conquistas, de experiências e de construção de utopias que durante décadas pautaram a vida dos portugueses e da democracia. Reduzir o Portugal da época a «um país a ferro e fogo» é um logro análogo àquele imposto pelo Estado Novo, ao longo da sua existência e a sucessivas gerações, para caraterizar a nossa Primeira República.

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      Ruído na praia

      Gosto de mar e da proximidade do mar, mas não de passar horas na praia, entre grãos de areia, golpes de sol e banhistas ruidosos. Da infância até aos quinze era forçado a viver cada agosto do ano na Figueira (da Foz), suportado por não ter direito de escolha. Salvaram-me os filmes bíblicos e os western spaghetti, os carrinhos de choques e os gelados de cone, as músicas da jukebox e a primeira namorada, mas a praia, a praia em si, esse era um lugar de tédio. Continuei depois a frequentá-la periodicamente, uma vez que o sol me ajuda a diluir alguns problemas de pele, mas o enfado permanece.

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        Apontamentos, Cidades, Olhares

        Entender Putin e a Rússia com um livro perturbante

        A invasão da Ucrânia, iniciando em fevereiro de 2022 uma guerra que analistas militares garantiam não demorar «mais que uma semana», vai já em três anos e meio. A situação continua gravíssima, num cenário diário de morte, sofrimento e destruição, mas a presença do conflito nas notícias tem diminuído. Outros fatores de preocupação têm emergido – em especial os relacionados com o terremoto Trump e com a situação em Gaza – e a Ucrânia passou para segundo plano, enquanto a iniciativa autocrática, belicista e imperial de Putin começa a ser descurada. Vale a pena, por isso, regressar a ela.

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          Um país seguro, tenham paciência

          Em 2025 Portugal subiu uma posição (7º lugar global, 5º da Europa, em 163) e ultrapassou a Dinamarca na lista dos países mais seguros. Esta é a verdade, reconhecida pelo Institute for Economics and Peace, que contraria a mentira generalizada, construída sobre pequenos episódios, propagada pela extrema-direita e que agora o nosso centro-direita também adotou. Documento completo: https://www.visionofhumanity.org/wp-content/uploads/2025/06/Global-Peace-Index-2025-web.pdf

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            O governo e o regresso de Fritz Kahn

            Parte de uma notícia do Público a propósito de uma medida a ser preparada pelo nosso pudico governo. Seguida de comentário.

            «A sexualidade poderá começar a escapar dos debates entre professores e alunos já no próximo ano lectivo, pelo menos na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, tal como indiciam os documentos orientadores da disciplina, que estão em consulta pública até ao dia 1 de Agosto. Mas, abandonando esta disciplina, onde é que a sexualidade pode ser ensinada? Deixará a educação sexual de ter um espaço no percurso escolar dos diferentes alunos? A resposta imediata é não, mas assumindo, como lembra (…) o presidente da Direcção Associação Nacional de Dirigentes Escolares, que, “em termos curriculares, a sexualidade é trabalhada de forma meramente científica, na perspectiva dos órgãos e do funcionamento dos órgãos”, muitas dimensões fundamentais na educação dos jovens para a sexualidade caem por terra. “A sexualidade extravasa em muito a biologia”, lembra o representante dos directores. Sem ela, “os miúdos usam muito menos preservativos e ficam mais desprotegidos”, critica Margarida Gaspar de Matos.»

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              Democracia, Direitos Humanos, Olhares, Opinião

              Algumas linhas sobre o ativismo

              Um útil apontamento publicado no Facebook por António Pais remete para uma declaração de Manuela Carmena, deixada em entrevista ao El País, que me levou até um padrão de leitura do papel do ativismo e dos ativistas na qual tenho pensado bastante e que me parece valer a pena debater. Carmena, nascida em 1944, é uma jurista e juíza espanhola, que foi militante dom PCE entre 1965 e 1981, vindo mais tarde, entre 2015 e 2019, a tornar-se alcaide de Madrid por uma coligação de esquerda. Este ano lançou Imaginar la vida: Cuatro décadas transformando lo público, que é um livro de memórias. 

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                O recuo das humanidades como problema coletivo 

                A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes. Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar. 

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                  Uma direita «democrática» sem máscara

                  A direita portuguesa do pós-25 de Abril teve, na sua matriz, algo que faz com que a sua atual aproximação em relação às propostas e ao discurso da extrema-direita não sejam de todo inesperadas. Na verdade, com exceção de escassas e isoladas escolhas pessoais, jamais tivemos uma direita organizada e politicamente fundamentada como aquela que existiu, e ainda existe, na França, na Grã-Bretanha, na Itália, na Alemanha ou nos países escandinavos. Uma direita neoliberal, mas vinculada aos princípios essenciais da democracia cristã, do personalismo, ou mesmo do liberalismo humanista, que foi sempre, sobretudo a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, democrática e multilateralista, mesmo quando contestou o estado social e defendeu políticas que puseram em causa direitos adquiridos e formas de igualdade e de solidariedade. 

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                    «No prelo»

                    Ao passar por um dos meus artigos académicos iniciais, publicado em 1982, deparei com a referência a um segundo volume de um título cujo primeiro tomo citei, indicando-o como estando «no prelo». Isto é, em fase de impressão tipográfica. Era ainda uma prática muito usual, a de fazer sair obras em dois volumes indicando que o segundo se encontrava nessas condições. Num grande número de vezes, porém, nem isso era verdadeiro: tratava-se apenas de uma intenção jamais cumprida. Costume também era alguém indicar um título seu, fosse de livro ou de artigo, que considerara a hipótese de publicar, como estando no tal inexistente «prelo». Tratava-se de uma forma artificial – talvez melhor: fraudulenta – de ampliar currículos pequenos ou inexistentes.

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                      Apontamentos, Etc., Memória, Olhares

                      Memória, ignorância e inocência do mal

                      Deparei no Facebook, num grupo sobre o passado da cidade de Coimbra, com esta fotografia, tirada em 25 de junho de 1939 no Campo das Salésias, quando ali a Académica venceu o Benfica por 3-1, conquistando pela primeira vez a Taça de Portugal. Todavia, o texto, razoavelmente longo, que acompanhava a imagem, conseguia a proeza de evocar o momento sem referir a bem visível saudação fascista que, no início do jogo, ambas as equipas fizeram de um modo unânime. Pior: quando uma pessoa atenta deixou nos comentários uma referência ao facto, foi sucedida por uma série de contra-comentários agressivos e ignaros, às dezenas, onde se diziam coisas como «era apenas uma saudação habitual na época» ou «naquele tempo as pessoas não se metiam em políticas» (sic).

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                        Trump e as dificuldades dos analistas

                        Não recordo outro momento da história recente no qual os analistas políticos se mostrem tão claramente incapazes de interpretar os acontecimentos e, sobretudo isso, de lhes antecipar as consequências. Pior ainda que a primeira, a segunda versão da presidência Trump confronta-se com escolhas erráticas, medidas tomadas por impulso, sobreposição afirmativa do ego ao interesse coletivo, incapacidade para promover uma ideia clara e lhe dar sequência, narcisismo doentio, perversão de regras básicas da sociabilidade e da diplomacia por troca com comportamentos sempre inesperados e agressivos, muitos deles a raiar a arruaça. Isto é, atitudes doentias, de um foro cada vez mais claramente patológico, assumidas por quem governa a nação militar e economicamente mais poderosa do planeta. Nesta condições, todo o juízo crítico do analista, que não é um adivinho, é sempre arriscado, com tendência para se concentrar nas meras hipóteses e para se tornar falível cinco minutos depois. Algo novo, particularmente perigoso, dado abordar o rumo de quem tem nas mãos o poder imperial supremo da paz e da guerra.

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                          Ninguém é apenas admirável

                          Pelo que conheço da espécie humana, concordo plenamente com a frase de Franco Basaglia «de perto ninguém é normal», tantas vezes atribuída a Woody Allen ou a Caetano Veloso. O mesmo se aplica às pessoas que, em abstrato, e sobretudo quando desaparecem, consideramos admiráveis. Pelas circunstâncias e pela extensão da minha vida, conheci de perto largas centenas de homens e mulheres notáveis, hoje já fora desta vida, que, quando partiram – e mais agora com a facilidade das redes sociais – foram logo associados apenas ao que de melhor foram fazendo. E, todavia, sabendo o que sei (e vi) de muitas delas, vejo como tantos elogios são por vezes exagerados ou até de todo imerecidos.

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                            Subavaliar a violência neonazi

                            É completamente inaceitável comparar as organizações terroristas de extrema-direita existentes em Portugal com os grupos que, no passado, se serviram da violência armada enquadrados na chamada extrema-esquerda. Em Portugal, só no final do Estado Novo surgiram três grupos dessa natureza – a ARA, a LUAR e as Brigadas Revolucionárias – e que, ainda assim, possuíam como objetivo central danificar o aparelho militar do regime. Depois do 25 de Abril, e na ressaca do PREC, apenas tiveram existência efetiva as FP-25, o que aconteceu entre 1980 e 1987. Isto é, há quase quarenta anos. Ainda que no plano teórico algumas pessoas e pequenos grupos de esquerda possam defender a dimensão fundadora da «violência revolucionária», não existe qualquer um que a procure pôr em prática. Muito menos contra as instituições da democracia e pessoas singulares. Isso fazem, como se pode agora ver com clareza, os neonazis, e equiparar as suas organizações violentas e criminosas às que, do lado oposto, excluem de todo essa vertente, é, mais do que errar o alvo, subavaliar o seu potencial perigo e de algum modo desculpabilizá-las.

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                              O que fazer com esta espécie de gente?

                              Com a derrota dos principais fascismos na Segunda Guerra Mundial, começou a instalar-se em grande parte do mundo, e de forma mais rápida e acentuada na Europa e nas Américas, uma experiência de civilidade democrática e cosmopolita que, apesar das desigualdades e dos conflitos, envolveu um setor cada vez mais amplo da população, moldando a sua forma de viver e de olhar o mundo. É verdade que em Portugal e Espanha subsistiam ditaduras, mas estas começavam a recuar face a uma crescente resistência. E a Leste do continente, onde regimes autoritários procuravam impedir qualquer abertura, emergiam também sinais de mudança. A viragem democrática na Península Ibérica, materializada entre 1974 e 1978, e as rápidas mudanças nos países do «socialismo real» que ocorreram após a queda do Muro de Berlim, não emergiram do nada.

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                                Não haverá uma guerra civil na América

                                Tenho encontrado por aí, em alguns artigos de opinião, embora escassos, mas principalmente em apontamentos e comentários das redes sociais, referências à eventualidade de os Estados Unidos da América caminharem a passos largos e muito rápidos para um guerra civil. Por vezes, este padrão de comentário disfarça um certo comprazimento, admito que algo inconsciente, mas presente nas entrelinhas, situado entre um «eles afinal merecem» e um «pode ser que assim o assunto se resolva». Não considerando agora o facto de as guerras civis serem as mais terríveis, mortíferas e traumáticas de todas as guerras, com um nível de destruição material e espiritual que raramente outras produzem, importa salientar que elas deixam nos povos um rastro de medo, pesadelo e sofrimento que, associado a desejos de vingança, se prolonga por gerações.

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                                  Em defesa do Bloco

                                  Como democrata e homem de esquerda, parece-me completamente intolerável, além de bastante perigosa, a vaga de depreciação da qual o Bloco de Esquerda está agora a ser objeto. Não apenas pela direita em geral, o que não será grave – seria até um mau sinal se tal não acontecesse –, mas por muitos jornalistas e comentadores com assento cativo nas televisões e nos jornais. Alguns fazem-lhe até uma espécie de funeral antecipado, equiparando o seu eventual desaparecimento à morte de toda a esquerda como ideal, como projeto e como solução, falando mesmo do fim de uma época da história das lutas sociais e das democracias.

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                                    A esquerda não se «apaga»

                                    As teorias que andam agora a circular a propósito do «apagamento» ou do «fim» do ideal de esquerda, são, como afirmou Mark Twain sobre as notícias que corriam anunciando a sua morte, «manifestamente exageradas». É certo que a esquerda política plural precisa olhar à sua volta e, não seguindo necessariamente o fátuo «ar do tempo», por certo considerar as suas transformações. E adaptar-se a elas, corrigindo erros e recusando descaminhos. Todavia, os grandes ideais de igualdade, de solidariedade, de liberdade e de fraternidade – sim, bem sei, estes possuem a idade da velha Revolução Francesa e foram invocados também por ditadores – esses não desaparecerão, como não desaparecerá que os defenda. O contrário seria a vitória definitiva do neoliberalismo selvagem e a afirmação apocalíptica da desumanidade mais abjeta. O progresso combaterá sempre o retrocesso, como a utopia enfrentará sempre a distopia. Podem crer, está nos livros e anda pelo ar.

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