Arquivo de Categorias: Apontamentos

ChatGPT: assustador e fascinante

Não é possível ignorar – então quem for professor deverá obrigatoriamente conhecer para não ser tomado por lorpa – o «bot de conversação» ChatGPT (https://openai.com/blog/chatgpt/), aberto ao público em 30 de novembro de 2022. Existente em diversas línguas – português do Brasil também, embora em inglês seja mais completo – ele interage com perguntas e problemas colocados por qualquer pessoa, mesmo quando o que se pergunta tenha uma dimensão complexa e/ou abstrata, produzindo automaticamente textos sem erros, essencialmente bem escritos, coerentes, e por vezes até interessantes. Tudo feito por uma máquina. Isto permite, por exemplo, que agora qualquer aluno de 7 na escala de 20, durante um teste facilmente obtenha um 15. É algo assustador, sem dúvida, mas a solução não poderá ser proibir, pois a inteligência artificial, para além de ser uma criação humana, pode sem dúvida ser uma ajuda. Aliás, isto funciona também como um desafio, pois requer novas forma de interagir e também de validar e de avaliar o conhecimento. E este lado é absolutamente fascinante.

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    Apontamentos, Cibercultura, Olhares

    A justa luta dos professores sob um olhar crítico 

    O atual alargamento dos processos de comunicação e a crescente facilidade de produzir opinião fazem com que, quando se abordam de uma forma analítica e não linear temas que suscitam grande controvérsia, facilmente quem sobre eles escreve possa ser mal interpretado. Esta realidade relaciona-se também com formas ligeiras de leitura, vendo-se apenas aquilo que se deseja ver, a branco ou preto, muitas vezes sem ponderar a totalidade do argumento. Por isso este texto começa com uma necessária cautela: o seu autor é inteiramente favorável à luta dos professores de todos os graus de ensino por condições de vida e de trabalho que de há muito se têm vindo a desvalorizar. Mais: não lhe parece que ela consiga algo de positivo se não for levada a cabo de uma forma unitária e vigorosa, impedindo os seus interlocutores de a desvalorizarem.

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      Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

      A autoria como gato por lebre

      Até ao século XVIII a condição de autor de uma obra escrita era de tal forma desvalorizada que o seu nome surgia no rosto sempre na última linha em caracteres muito pequenos. O destaque era conferido ao patrono – quem pagava o trabalho ou a quem a obra era dedicada -, de seguida a um título invariavelmente muito longo, e depois ao impressor, que também editava. O justo triunfo do autor foi, em larga medida, um produto do movimento romântico e, se a ele raramente passou a corresponder uma compensação justa pelo trabalho – salvo se for um best-seller, daqueles que se vendem hoje nas estações de comboio e nos hipermercados, ao lado de pastilhas elásticas e bolachas -, ocorre ao mesmo tempo um reconhecimento visual do seu papel, sendo agora identificado com clareza.

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        Apontamentos, Democracia, Olhares

        «Que tempos estes!»

        Vejo por aqui, repetidas até à náusea, muitas vezes por amigos e amigas que prezo, frases como a que encima este apontamento. A história mostra que ela traduz uma atitude muito antiga, defendida de forma consciente ou inconsciente por quem no passado, sobretudo no seu próprio passado, vê um mundo melhor, mais «correto» ou mais feliz que o atual. Em décadas de investigação sobre diferentes passados, frases como esta passaram por mim largas centenas de vezes, embora a referência mais básica seja sempre aquela, pronunciada por Cícero pelo menos em quatro discursos, que pelo século I antes da nossa era bradava «O tempora, o mores», isto é, «ó tempos, ó costumes!». Como quem dizia «malditos estes tempos sem valores», ou «esta juventude está perdida», ou ainda «antigamente é que era bom». Existem, sem dúvida, no curso do tempo, momentos críticos e de alteração brusca de valores e de práticas, nem sempre compreendidos e muitas vezes tomados como negativos, mas não existem épocas boas e épocas más. Na realidade, todas combinam experiências que cada pessoa vive ou interpreta da sua forma e em contexto. Aliás, dizer-se «que tempos estes!» aplicando-a a um país que, com todos os problemas inerentes à vida no planeta e às suas injustiças, atravessa a época de maior bem-estar, de mais direitos e de mais liberdade do seu longo trajeto de oito séculos e meio é, no mínimo, imerecido e absurdo.
        [originalmente no Facebook]

          Apontamentos, História, Memória, Olhares

          Pela militância

          Li numa reportagem que a Iniciativa Liberal, atormentada por alguns fantasmas, se recusa a designar os seus inscritos como «militantes», antes lhes chamando «membros». Amigos do Bloco de Esquerda corrigem-me de vez em quando fazendo-me ver, aparentemente com orgulho, que também não têm «militantes», mas «aderentes» ou «ativistas». Por mim, continuo a considerar nobre e de profundo sentido a palavra «militante», historicamente associada, sobretudo na grande área da esquerda, a quem combate por uma causa, dando por ela o melhor de si, diariamente e com empenho. Militantemente, portanto. Se alguém pode ver como negativo o qualificativo, associando-o a uma relação de dependência e de apagamento individual, esse será um problema do partido ou do movimento que a impõe, ou então da pessoa que dessa forma a vive e aceita, não da nobre e necessária condição de militante. Porque sê-lo foi e permanece uma forma de liberdade e de cidadania.
          [originalmente no Facebook]

            Apontamentos, Democracia, Olhares

            O estalinismo e quem o alimenta

            O estalinismo representa a maior perversão do grande ideal de socialismo, justiça e progresso que o movimento operário do século XIX duramente construiu. Tomou na antiga União Soviética, sobretudo a partir de 1928-1929, a forma de um regime unipessoal e de culto da personalidade, de uma ditadura feroz e sanguinária, de um sistema rigidamente policial e censório, e também de uma forma de fazer política que colocou os objetivos do partido único, como suposta vanguarda, acima das pessoas que um dia proclamou servir.

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              Apontamentos, Atualidade, Direitos Humanos, História, Olhares

              A democracia e as feras

              O factor mais impressionante de toda a barbárie que passou por Brasília, e que tende a emergir noutras paragens, consiste em a espécie de seres que a protagonizou – tendo a nem lhe chamar gente – apenas reagir aos slogans vagos que lhe inculcam e ser «anti» algo que nem sabe explicar. Não tem reivindicações objetivas, não possui um manifesto, não é capaz sequer de respeitar os valores patrimoniais comuns, como se viu na destruição indiscriminada de valiosas peças de arte, de mobiliário, de computadores e dos próprios edifícios públicos. Lula disse ontem, durante a visita que fez ao local após uma reunião com os governadores estaduais, que «a democracia é a coisa mais complicada para a gente fazer, porque exige gente suportar os outros, exige conviver com quem a gente não gosta.» Palavras justas, sem dúvida, mas construí-la e mantê-la terá de ser sempre com homens e mulheres, na sua diferença, jamais com feras ululantes, incapazes de agir fora do bando e que apenas respondem ao instinto.

                Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                A nostalgia do «Expresso» que foi

                Completaram-se ontem, 6 de janeiro de 2023, cinquenta anos de vida do semanário «Expresso». Fui seu leitor desde o primeiro número, saído ainda em pleno marcelismo como expressão de uma oposição consentida pelo regime, e durante mais de quatro décadas não perdi um só. Mesmo quando fora do país ou em algum lugar onde o jornal não chegava, tinha sempre um quiosque que guardava o meu exemplar. Boa parte desse tempo integrou um ritual das manhãs de sábado, comprando o «espesso» e lendo-o depois normalmente no café. Em particular o bom suplemento cultural, durante uma boa época designado «Revista», e deixando de lado a volumosa publicidade e o caderno de Economia, uma área que infelizmente jamais foi a minha praia. A partir de certa altura passei para a edição digital, que assinei e lia no tablet, libertando-me de vez daquele saco de papel que alguns leitores costumeiros e mais tradicionais ainda exibem como um emblema geracional.

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                  Apontamentos, História, Jornalismo, Olhares, Opinião

                  «Pegada digital», vida pública e solidão

                  A rápida transformação nos processos de comunicação que teve lugar nos últimos trinta anos, associada ao papel dos meios eletrónicos, determinou alterações bruscas e extremas nas diferentes formas de qualquer de nós se relacionar em sociedade. À distinção tradicional entre os que procuravam o reconhecimento pessoal e o das suas ideias, e aqueles que preferiam viver no completo anonimato, juntou-se um campo híbrido intermédio e em constante expansão: o daqueles que, tendo ou não produzido «obras valerosas», podem ser escutados por bom número dos seus semelhantes.

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                    Apontamentos, Cibercultura, Democracia, Olhares, Opinião

                    «Etc.»

                    Como sabem muitas pessoas, «Etc.» é a abreviatura da expressão latina «Et cetera», ou «Et coetera», que significa «e outras coisas mais», ou «e assim por diante». Durante o meu (antigo) ensino secundário diversos professores nos avisaram repetidamente para evitarmos a expressão, sobretudo se quiséssemos exprimir-nos com clareza e de forma completa. Como professor fiz o mesmo a muitos milhares de alunos: poderiam usar a abreviatura nos seus apontamentos, ou então em mensagens privadas, mas jamais em teste, exame ou trabalho escrito, sabendo toda a gente que o que apresentavam seria muito desvalorizado se o fizessem. Não era um mero capricho: «Etc.» traduz uma forma de preguiçoso facilitismo, por vezes de descrédito, que tende a apagar conhecimento ou a afirmar a ideia segundo a qual onde existe diversidade «é tudo mais ou menos a mesma coisa». Hoje mesmo escutei uma alta responsável ligada a um orgão de gestão de uma prestigiada universidade portuguesa usar de forma repetida esta miserável muleta durante uma comunicação pública e admito que senti algo entre a náusea e o arrepio.

                    [originalmente no Facebook]

                      Apontamentos, Olhares, Opinião

                      A grande arte do aforismo

                      «A verdadeira eloquência consiste em dizer tudo aquilo que é preciso,
                      e não em dizer seja lá o que for.» (La Rochefoucauld, 1613-1680)

                      Insisto na declaração de amor pela grande arte do aforismo. Vindo do grego ἀφορισμός, «aphorismós», que significa «definição breve» ou «sentença», o termo traduz essencialmente a enunciação sucinta de um pensamento de natureza moral. A sua brevidade, todavia, pode ser enganadora a respeito do seu valor. Na verdade, ela articula reflexão, saber e experiência num todo em que determinados aspetos da vida do indivíduo ou da coletividade emergem sob a forma de mensagem de uma humanidade e de uma profundidade intemporais. Parecendo semelhante ao adágio, vai mais longe que este pois apela mais ao conhecimento, à sabedoria transmitida, que à simples evidência. Também não emerge como mera intuição, como «achismo» mais ou menos repentista, sendo sempre resultado, por parte de quem o produz, de um trabalho de amadurecimento. «Aforismistas» essenciais foram Erasmo de Roterdão, provavelmente o criador do género, Rabelais, La Rochefoucauld, Voltaire, Benjamim Franklin, Flaubert, Nietzsche, Kafka, Karl Kraus, Sartre ou Adorno, mas os meus favoritos são Montaigne, Emil Cioran e, é claro, Camus. Nessas curtas linhas plenas de sensibilidade e sabedoria que nos foram legando tenho encontrado o que de mais essencial pude aprender.

                        Apontamentos, Heterodoxias, Olhares, Recortes

                        Cheias: ditadura e democracia

                        Quem mora na região de Lisboa está a sentir com especial gravidade, também devido à concentração populacional, os efeitos desta chuva intensa e que não para, mas grande parte do país vive idêntico problema. Após largos anos de seca, com aguaceiros intermitentes, tínhamos esquecido por cá o poder das verdadeiras tempestades. Tento recordar um temporal destes em Portugal e preciso recuar até aos anos 70, para recuperar algo assim. Os meteorologistas é que têm os dados certos, mas é esta a imagem que tenho.

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                          Apontamentos, Atualidade

                          O papel do trabalho de revisão

                          Como sabe quem escreve com regularidade livros e artigos, o trabalho de revisão de um original realizado por alguém competente e sensível é crucial, podendo salvar a correção e a elegância do texto, embora possa também traduzir-se em alguns desastres. Muitos autores consagrados, certos deles premiados, sentiriam vergonha ao ler os seus originais publicados sem estes terem passado por essa etapa. E os leitores habituais nem os reconheceriam. Erros e gralhas, repetições de frases ou de palavras, parágrafos pouco claros, falhas de concordância, pontuação deficiente, e por aí afora. Basta, para quem preste atenção, ver como alguma dessas pessoas atabalhoadamente escrevem nas redes sociais e depois o modo como os seus originais são publicados impressos ou no digital.

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                            Apontamentos, Etc., Leituras, Oficina, Olhares

                            Contra o referendo sobre a morte assistida

                            Salvo em momentos de total bloqueio político, sou absolutamente contrário ao recurso, em democracia, à experiência do referendo. Se nos colocarmos no plano estrito dos princípios, ele pode, sem dúvida, parecer uma forma de democracia direta que completa as da democracia representativa. Todavia, tende a minimizar a reflexão e o debate, cingindo-se a respostas primárias, de «sim» ou «não», face a perguntas muito simples, o que tenderá sempre a dar maior poder de decisão aos setores menos informados e mais despolitizados. Por isto mesmo é uma arma perigosa, sempre bastante apreciada pelos populistas.

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                              Apontamentos, Atualidade, Democracia, Direitos Humanos

                              Noventa anos sobre o Holodomor

                              Estão, por estes dias, a ser lembrados os noventa anos volvidos sobre a ocorrência do genocídio do Holodomor. Refiro-me à morte pela fome ou através de execuções e de deportações assassinas, entre 1932 e 1933, de no mínimo 4 milhões de ucranianos – algumas estimativas mais ousadas chegam aos 12 milhões, incluindo-se aqui os fortes abalos na natalidade – sobretudo entre camponeses pobres e pequenos proprietários rurais (os kulaks), mas tocando também setores políticos e intelectuais.

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                                Pequena história com Saramago

                                Esta semana, o centenário do nascimento de José Saramago deu lugar a um vendaval de artigos e comentários. Para além daqueles produzidos por quem o leu e, gostando ou não de o fazer, tem em conta a sua condição de autor único e dedicado ao seu labor, destacam-se os extremos. Refiro-me às pessoas para as quais qualquer coisa que tenha a ver com o autor ribatejano é inequivocamente positiva e sagrada, e às que do lado oposto, muitas vezes sem o lerem com atenção ou conhecerem a sua biografia, fazem juízos de valor negativos e absolutos sobre a sua escrita e escolhas. Não sou, nunca fui, e sempre o declarei, grande apreciador da sua obra, que no campo da ficção li praticamente na íntegra, mas respeito muito o seu trabalho criador e também, naturalmente, quem o aprecia, distanciando-me apenas por questões de gosto e sensibilidade.

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                                  Apontamentos, Ficção, História, Leituras

                                  Operários em construção

                                  Por um destes dias, se entretanto não mudar de ideias, procurarei escrever algo substancial e historicamente sustentado sobre o tique «obrerista» – sempre justificado no plano teórico, como é óbvio – que fez e faz com que muitos quadros de partidos e organizações ligados ao amplo e diversificado movimento comunista sintam o dever de, mesmo não tendo sido de facto operários, ao longo da vida se fazerem passar por tal.

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                                    Apontamentos, Biografias, Democracia, Devaneios

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                                    Como a maior parte das pessoas sabe, embora nem todas levem esta perceção às últimas consequências, ficção e realidade constituem dimensões diferentes, ainda que sempre se misturem. Seja no domínio dos factos, das representações ou da linguagem. Jamais a ficção pode prescindir da realidade, pois é esta que lhe fornece os códigos básicos de comunicação. E jamais a realidade pode dispensar a ficção, pois sem ela não passaria de um conjunto de ocorrências mecânicas e sem sentido algum. Por isso não é possível deparar com ficção ou com realidade em forma pura.

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