Arquivos Mensais: Agosto 2006

Mais sixties

Tem razão Eduardo Pitta em achar redutora uma tentativa de entender as mudanças dos sixties, principalmente no que elas tiveram de mais profundo e duradouro, sem destacar as transformações no campo artístico e intelectual. Elas foram quase sempre protagonizadas por gestos pioneiros, vidas difíceis, dramas, momentos de felicidade em certas ocasiões, e essa sina, não sendo, como sabemos, exclusiva do tempo em causa, teve nele uma interferência relevante. Isso foi ainda mais evidente num país como Portugal. Tirando à época os «intelectuais de regime» – se é que alguém nos sabe dizer hoje onde estavam eles nos seus anos terminais – e as celebridades locais, a condição de romancista ou de poeta, a de artista plástico, de actor ou a de crítico, era quase sempre associada, fora dos pequenos círculos nos quais cada um deles se incluía, fora do pequeno público que eram quase as mesmas pessoas, a algo de estranho e de perturbador. Mas foi sem dúvida com eles, quase sempre, que as ideias e atitudes, as técnicas e experiências, que definiram a especificidade dos anos 60 portugueses, e aquilo que nos permite identificá-los na nossa história recente, entraram e se puderam reproduzir.

Porém, isso não invalida – e foi este o sentido da minha leitura inevitavelmente parcial – que se tenha constituído, gradualmente, um amplo sector da sociedade, centrado principalmente numa classe média em crescimento e nos ambientes universitários, então mais irrequietos do que nunca, que foi articulando uma crescente desafectação em relação ao regime e aos seus códigos, desenvolvida, muitas vezes, em paralelo aos duros esforços da oposição política. Incorporando, ainda que quase sempre sob forma de vulgata, alguns dos contributos ensaiados no campo artístico e intelectual, treinando e aplicando estilos de vida e leituras do mundo alheios ao modelo fechado e ruralista que fora dominante na fase de formação e de afirmação do Portugal de Salazar. Falava eu, pois, da constituição de uma nova cultura popular autóctone, inseparável da outra, mas que possuía, naturalmente, outros contornos. Apenas desta forma me parece possível explicar o alheamento da maioria dos portugueses, os «da metrópole» sobretudo, em relação à derrocada do império, e a quase unanimidade com a qual, no dia 1 de Maio de 1974, os mesmos portugueses, grande parte dos quais sem nada que os aproximasse da esquerda, e menos ainda das elites de oposição, saíram à rua com esse cravo vermelho ao peito que, como se dizia na canção, «a todos fica bem».

Uma nota um tanto lateral ao post estimulador do Eduardo Pitta: está por fazer a história intelectual das comunidades de origem europeia em Angola e Moçambique durante as guerras coloniais e os tempos que as precederam. Será preciso ultrapassar ainda muitas desconfianças, rancores adormecidos, preconceitos explicáveis e desnecessários. Mas perdendo-se entretanto, até que isso se torne possível, grande parte da memória disponível. Só depois chegaremos a uma compreensão mais completa, e mais complexa, dos sessentas portugueses.

PS – Claro que tudo isto carece de reconhecimentos mais aproximados. As generalizações usam-se, aqui como em outros casos, para contestar outras generalizações (estas, devido à sua provecta idade, com menos razão para existirem). E também, pelo menos no que me toca, como estímulo para um trabalho sistemático.

    Frére Jacques

    Prévert
    Reencontro por um acaso a edição de Paroles que comprei às escondidas em 1972 e entro em flashback. Jacques Prévert na capa, no seu estilo único, como um dandy com boina de operário, capaz de alternar ferroada da grossa com patinhas de veludo. Como os irredutíveis da anarquia, preferia sempre ver-se «de fora», contra toda a ordem. Recusará por isso manter uma ligação com os comunistas que não fosse apenas pontual: «Aderir?.. Mas iam logo meter-me numa célula!». Tinha outro programa («J’écris pour faire plaisir à quelques uns et pour en emmerder beaucoup») e uma certa percepção da condição incerta e perigosa do intelectual («Il ne faut pas laisser les intellectuels jouer avec les allumettes»).

      Olhares

      Indigestão (ainda a geração de 60)

      68 algures
      Deixei aqui um pequeno texto no qual afirmava que o impacto local do renovado ambiente da cultura popular, ou «de massas», internacionalmente definida ao longo dos vinte anos que duraram os sixties, preparou – apoiado sobretudo na juventude estudantil, nas novas gerações de profissionais liberais e numa classe média urbana em expansão – um clima de rejeição do regime que veio a cair em Abril de 1974. Outros textos, aparecidos essencialmente em blogues, têm entretanto levantado a questão em idênticos termos, ainda que com nuances naturais na abordagem de uma realidade da história das últimas décadas que, sobretudo por ter grande parte dos seus actores ainda vivos e atentos, e também por dela ainda se recolherem as ondas de choque, permanece bastante quente. Surge hoje no Público um texto, assumido como resposta à tendência interpretativa que tem dominado esta polémica, no qual o dirigente do PCP Vítor Dias recoloca a questão em termos muito diferentes daqueles que anotei.

      Desde já uma ressalva. Ao contrário do que infere VD, nenhum dos textos sobre o assunto que eu tenha lido – nem mesmo o inaugural de Vasco Pulido Valente, pelo que se vê saudavelmente provocador – desvaloriza aquilo a que ele chama «a luta popular e democrática». Vinda de muito antes, esta continuou, à margem de modas e epifenómenos, no meio da dura repressão salazarista, mas também das purgas internas e das reviravoltas tácticas, a ser essencialmente organizada pelos comunistas, tendo sido pautada por iniciativas, sobretudo de natureza reivindicativa, que procuravam combater, sempre na expectativa de um amanhã melhor, as injustiças e as desigualdades instaladas na sociedade portuguesa. Ela foi essencial, sem dúvida, para a redução de muitas arbitrariedades e para a afirmação de uma resistência que chegou ao poder após o 25 de Abril e que viveu depois, em liberdade, a instalação da democracia representativa. Nada disto parece questionável ou foi sequer questionado.

      Já o mesmo não posso dizer em relação ao que se passava no tal universo urbano habitado por uma juventude com anseios radicalmente novos e por uma classe média sedenta de autonomia, ambas crescentemente adversas às práticas do regime e ao seu código de valores. VD, ao dizer, com o objectivo claro de relativizar a importância deste sector nos processos de mudança, que na época «os estudantes universitários andavam por 30.000 ou pouco mais», o que é verdade, faz por esquecer de que se falou de um arco temporal de cerca de 15 anos, e que, durante todos esses anos, a multiplicação de estudantes e ex-estudantes, portadores de uma experiência de oposição cultural e vivencial, ter-se-á ampliado, no todo, a várias centenas de milhares de pessoas, às quais podem ainda associar-se, frequentes vezes, muitos dos seus familiares, os amigos chegados, os conterrâneos… Por outro lado, o lugar deste amplo sector, numa altura em que a dinâmica social fazia recuar o peso dos operários e dos camponeses – que integrariam prioritariamente a «luta popular» da qual fala VD – era de um cada vez maior destaque, na definição de comportamentos de natureza anti-disciplinar tal como na organização dos processos de mudança. Estou em crer que o próprio regime o acabava por reconhecer, ao mostrar-se incapaz de reprimir a contestação ou as iniciativas de resistência desses sectores com a mesma inflexível brutalidade com a qual, anteriormente, reprimira a luta operária, as revoltas campesinas ou a dissidência intelectual.

      Um livro de entrevistas, feito a activistas estudantis da época, que organizei em conjunto com Maria Manuela Cruzeiro e que estará muito em breve disponível (Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974), ed. Afrontamento), mostra documentalmente, com razoável clareza, a emergência dessa noção, geracional se se quiser, de uma incontornável desafectação em relação ao Estado Novo, a qual nasceu, para quase todos os seus actores, como experiência natural de resistência a um poder que viam como caduco, injusto e fora do seu tempo. A militância partidária, nos casos, muitos, em que aconteceu, ocorreu sempre razoavelmente depois dessa tomada de consciência e dessa predisposição para se afirmarem como sendo «do contra». Incluindo – sublinho isto – aquela que aconteceu dentro do próprio movimento estudantil.

      A «festa», a ruptura pelo lado da vivência do quotidiano, da sensibilidade, da estética, da experiência individual, que, hoje como ontem, aqui como noutras partes, incluindo na Paris ou na Praga de 1968, os comunistas essencialmente desvalorizaram e desvalorizam – utilizando-a apenas como chamariz de alguns sectores juvenis incapazes hoje de viverem sem ela – não significava, como VD insinua e como Álvaro Cunhal deixou claro no texto sobre o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista» com o qual, em parte, pretendeu riscar de alto a baixo o livro Maio e a Crise da Civilização Burguesa (publicado em 1970 por António José Saraiva), um néscio alheamento da realidade. Mas antes uma reacção natural perante um mundo que ruía sem que se percebesse muito bem que outro mundo dali poderia emergir. Coisa que a «ideologia da classe operária», bem como os seus presumíveis oficiantes, jamais serão capaz de abarcar ou simplesmente de aceitar.

      VD conclui o texto, afirmando, para diminuir o valor dos testemunhos daqueles que interpretam aquele passado mais a partir da sua experiência vivida do que das cartilhas que lhe pretendem atribuir um sentido meta-histórico, que «o nosso umbigo é o pior e mais limitado horizonte para conhecer o país, a vida e a sua história». Eu poderia dizer a mesma coisa, ainda que, a partir das conquistas do vocabulário político da geração de 60 – que, ao contrário de Vítor Dias, não coloco entre aspas – o prefira fazer com palavras menos previsíveis.

        Opinião

        Os matizes

        Mario Vargas Llosa
        Como se tem percebido no decorrer dos debates, ou da vozearia, sobre a actual crise no Médio-Oriente, é difícil, e eventualmente pouco popular, tomar posições complexas. Mario Vargas Llosa, que, neste como em outros assuntos, as toma frequentes vezes, comenta hoje no suplemento 6a, do Diário de Notícias, as dificuldades pelas quais tem passado. Pelos mesmíssimos motivos, foi por uns acusado de «comunista», «ultra-esquerdista», «castrista», «outro Saramago», «anti-semita», enquanto, a partir de diferente barricada, o consideravam «neo-conservador», «ultra-liberal», «pró-americano» ou, como diz ele, «outras lindezas do mesmo estilo». Toda a sua crónica de hoje é sobre a difícil condição do que não vê apenas para um dos lados. Como não está disponível online, aqui vai um fragmento:

        «A abolição dos matizes facilita muito as coisas na hora de julgar um ser humano, analisar uma situação política, um problema social, um acto de cultura, e permite dar livre curso às filiações e às fobias pessoais sem censuras e sem o menor remorso. Mas é, também, a melhor maneira de substituir as ideias pelos estereótipos, o conhecimento racional pela paixão e pelo instinto de malentender tragicamente o mundo em que vivemos. Há certos conflitos que, pela violência e pelos antagonismos que suscitam, levam quase irresistivelmente aqueles que os vivem ou seguem de perto a liquidar os matizes a fim de promover melhor as suas teses e, sobretudo, desbaratar as dos seus adversários.»

          Recortes

          Amor em fascículos (2)

          amour
          O «amor galante» surge, no século XVII, como instrumento fundador de uma ordem das coisas. Na literatura, a paisagem, os caminhos, as colinas, os riachos, os lagos e florestas que envolvem as ligações amorosas, transfiguram-se em função do motivo central: os dois amantes que, descobrindo-se, redescobriam ao mesmo tempo a sua presença no mundo. Uma gama vasta de emoções subtis, de metáforas sucessivas e reveladoras – que a poesia barroca desenvolverá de forma poderosa e obstinada, e que o extremo-romantismo retomará – teatraliza a ligação amorosa, sobrepondo-se a um viver comum que lhe escapa e lhe parece desenvolver-se num território degradado. Amar é, assim, colocar o mundo num palco novo. A galanteria aparece, desta forma, como comédia do amor, tendo lugar no texto mas sem corresponder minimamente às expectativas do autor. Como um fingimento vivido enquanto ocasião de deleite.

            Devaneios

            Platão acabrunhado

            As nossas noites terão a partir de hoje menos um planeta. Como dizia um jornalista da RTP, Plutão «foi despromovido à divisão de honra» (sic). Exultante, um jovem astrónomo garantiu-nos representar este dia, vá-se lá saber porquê, «um ponto histórico». Aquele que acreditámos ser o nono calhau a contar do sol foi assim varrido para as traseiras do sistema solar. Nada que nos possa espantar, se recordarmos a sorte do seu velho orago: quando os três filhos de Cibele e Saturno fizeram a partilha do universo, Neptuno ficou com os mares, Júpiter tomou conta do Olimpo, e o desafortunado Plutão – a quem os gregos cavilosamente chamavam Hades – herdou os Infernos. Lá teremos então de reaprender a lengalenga da infância: «Mercúrio, Vénus, Terra…».

              Apontamentos

              A máquina

              Auster
              Sei onde poisei a minha última máquina de escrever da última vez que me servi dela, há mais de vinte anos. Mas não tenho vontade alguma de a ir buscar para lhe tirar as incrustações de pó. O «fetiche da Underwood» – que no meu caso era uma modestíssima Triumph com um design que a aparentava com um igualmente modesto automóvel Trabanta – quase me ia dando cabo das costas. Passou-me com o tempo, como a extravagância de fumar cachimbo, que, essa, me estragou definitivamente os dentes. Algumas revistas literárias e ex-libris digitais continuam porém a usá-la, talvez como metáfora de uma qualquer relação matricial com a escrita, ou enquanto pulsão nostálgica, idêntica aquela que nos pode levar, perdoem a imagem de jogos florais, a mergulhar sem necessidade numa manhã de chuva e nevoeiro. Talvez por isso, soa-me um tanto a mania que um homem maduro, moderno e morador em Brooklyn, como Paul Auster, faça sistematicamente questão de exibir em público a sua aversão a qualquer outro instrumento mecânico de escrita. E se empenhe em lançar, em conjunto com o artista plástico Sam Messer, o narcísico álbum A História da Minha Máquina de Escrever, que a ASA editou. Não é que não seja bonita a sua Schreibmaschine Olympia, mas mostrá-la assim parece sinal de caturrice precoce.

                O cedro das patacas

                O rendimento médio per capita é, no Líbano, de cerca de 3.700 US dólares anuais. Um número muito grande de libaneses ganha, pois, muitíssimo menos. Os pagamentos feitos pelo Hezbollah aos milhares de famílias xiitas que perderam as suas casas durante os bombardeamentos israelitas, destinados a que estas possam pagar a reconstrução ou o seu realojamento, varia entre 10.000 e 12.000 dólares, entregues de imediato e em cash, nas conhecidas notas verdes com um retrato de George Washington. Calculo que, de acordo com algumas teorias circulantes a respeito da condição de «movimento de massas» do «Partido de Deus», se considere que tais somas resultem de uma extraordinária capacidade de solidária liquidez da parte dos militantes islamitas e das populações que dizem representar. Existe também quem acredite ainda no Pai Natal. Ou, em versão melting-pot, quem afirme a pés juntos que Elvis Presley há-de regressar numa manhã de nevoeiro. Há crenças para tudo.

                  Opinião

                  A outra revolução

                  Marilyn
                  Pulido Valente insistiu hoje, a contracorrente, numa realidade para a qual tenho procurado chamar a atenção (veja-se O Poder da Imaginação – Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60, ed. Angelus Novus). A experiência daquilo que genericamente se tem convencionado chamar «os anos 60» – vividos num raio temporal de perto de duas décadas e, de uma forma gradual, em praticamente todo o planeta – definiu-se muito mais pela afirmação da juventude enquanto grupo social portador de um padrão de vida autónomo, pelo fulgor da nova cultura popular, por uma intensa abertura no campo da moral (incluindo a construção de uma sexualidade renovada), por uma atitude estética própria e omnipresente, pela emergência dos movimentos sociais de um tipo novo, pela afirmação de um modelo de sociedade de natureza anti-disciplinar, do que pela proeminência nos processos de mudança das organizações políticas da esquerda. Estas encontravam-se a viver um impasse histórico, do qual o radicalismo constituía uma das vertentes, e a ortodoxia, principalmente a pró-soviética, a outra. O «eurocomunismo» não era, como havia já na altura quem o apontasse, senão um passo envergonhado, rumo ao que será mais tarde designado como uma «terceira via» entre o liberalismo e a social-democracia. A direita, essa demarcava-se maniacamente de toda e qualquer mudança no seu quadro tradicional de valores.

                  Em Portugal, foi esse também o género de transformação – tardia em relação aos países mais industrializados e a algumas das suas áreas periféricas, mas muito marcada pelo rápido declínio do Estado Novo e pelas pesadas sequelas da guerra colonial – que, de forma particularmente intensa, preparou um clima de rejeição geracional e de afastamento da classe média em crescimento. Devido à inflexibilidade do regime, este só poderia ter terminado como de facto terminou: com um «25 de Abril». A oposição, coagida pela censura e pela polícia política, e por vezes tolhida pelo dogma que incitava o sectarismo, fez aquilo que foi capaz de fazer para combater o poder instalado. E, sublinhe-se, não fez nada pouco. Só que, para um sector cada vez alargado de cidadãos – quase silencioso por vezes, mas profundo e dinâmico, sem dúvida, no divórcio crescente em relação à ordem estabelecida e nos processos de desafectação diante dos padrões de vida que aquela continuava a requerer – os factores preponderantes não foram, de facto, aqueles que uma certa memória da esquerda, e alguma historiografia que com esta tem vindo a colaborar, habitualmente propõem.

                  Simplificando um pouco, embora sem fugir ao essencial: na última década do regime, I Can’t Get No (Satisfaction) e The Times They Are A-Changin’ fizeram mais, e sobretudo de forma mais profunda e duradoura, para abalar a ordem vigente, do que o fizeram, nessa mesma altura, a Canção dos Barqueiros do Volga ou a Bandiera Rossa; o cinema de Antonioni ou de Godard fez bem mais do que o de Eisenstein ou até o de Rossellini; a leitura do Salut les Copains! e do Comércio do Funchal, mais, ou pelo menos com maior intensidade, do que a da generalidade da imprensa periódica clandestina; os livros de Kerouac e de Sartre mais do que os de Cholokov ou de Lenine; o impacto de 1968 mais do que o que chegou de 1917; o festival de Woodstock mais do que a festa de L’Humanité; mesmo a Marilyn de Wahrol talvez mais (talvez) do que a Guernica de Picasso. Situa-se na percepção deste conflito e desta mudança, sobretudo no que respeita aos ambientes urbanos da Europa central e ocidental, a possibilidade de uma compreensão mais completa da rápida queda das democracias musculadas (o gaullismo, por exemplo). Ou, como aconteceu connosco, do fim das ditaduras arcaicas e desse pequeno mundo protegido, simbolicamente representado nas cerimónias lúgubres do 10 de Junho, dentro do qual a sua cada vez mais limitada e estéril base social de apoio ainda acreditava habitar.

                    História

                    Cuba: ficção e realidade

                    Ainda sobre Cuba, vale a pena ler este texto de Elísio Estanque, escrito depois deste outro artigo – absolutamente revisionista na relação com a história recente de um certo lado da esquerda, mas que, para já, parece ter passado algo despercebido – publicado na revista Visão por Boaventura de Sousa Santos. Talvez um pouco mais agreste, mas não menos questionador, veja-se também este eco. O silêncio a propósito do tema que se nota na generalidade dos blogues ditos «de esquerda», sempre prontos a questionarem as vozes independentes (por vezes até mais, e com maior virulência, do que aquelas que chegam da margem direita), não deixa de ser coerente. E lamentável.

                      Opinião

                      Amor em fascículos (1)

                      Amor
                      Para Denis de Rougemont, a paixão amorosa terá nascido em pleno século XII, quando dentro do universo feudal se constituiu o mito literário do amor cortês (L’Amour en Occident, 1939). A lenda de Tristão e Isolda definiu o arquétipo. Aqui encontra-se um pouco de tudo aquilo que virá a excitar uma certa imaginação amorosa: o condição de Isolda como mulher casada e supostamente inacessível; a pureza de Tristão e o seu pendor acentuadamente melancólico; a paixão que não pode ser evitada nem controlada, mas que se revela impossível; o filtro mágico que irá unir para sempre os dois amantes; a fuga de ambos através da floresta; as aventuras heróicas e façanhas extraordinárias condicionadas por sucessivos obstáculos e um estado febril de esperança amorosa; o suicídio de Tristão e a morte de Isolda; o amor para além da própria morte. A lenda ocupará um lugar considerável no imaginário cavalheiresco medieval, traçando, pelo menos até aos neo-românticos, o modelo do amor enquanto relação sublime mas necessariamente inquietante. Condenado ao êxtase mas também à definitiva infelicidade.

                        Devaneios

                        A culpa (2)

                        Günter Grass
                        Nunca me ponho a correr diante de uma polémica. Desde que, para além de para ela me achar virado, a mesma se estabeleça entre pessoas que, pensando de diferente forma, respeitam a opinião do contraditor. Por isso, não sou capaz de polemizar, a propósito do «caso Günter Grass», com Luís Mourão ou com Carlos Leone. Porque, não agredindo qualquer um deles a minha leitura a propósito do passado de SS de Grass, também não discordo substancialmente dos argumentos que um e o outro invocam. Ambos aceitarão que não seja novidade alguma para mim a perspectiva segundo a qual «toda a leitura que valha a pena será sobretudo uma relação impessoal com uma voz que passa através daquilo a que chamamos autor» (LM), ou, em diferente direcção, que eu aceite que se não deva «chamar consciência moral a quem nunca fez mais do que generalizações vazias e grotescas sobre história» e, ademais, «sempre foi ridículo, como o é agora» (CL). Partindo de pressupostos de certa maneira opostos, e provindo de pessoas que sei lerem por hábito de uma forma acentuadamente crítica, as duas afirmações não podem deixar de ser respeitáveis (bem, a segunda frase de CL sê-lo-á de forma menos peremptória…). Só que existe um padrão de leitor, chamemos-lhe o leitor cândido – como eu o fui quando tinha quinze anos e pela vez primeira li GG, ou como o gosto de ser ainda quando me entretenho a folhear Groucho Marx, Maria Filomena Mónica ou os títulos d’A Bola -, para o qual um dado autor «é» aquilo que lhe indiciam ser, estabelecendo com ele um pacto de confiança que essa candura determina. Foi entre esta imensa turbamulta que, sem complexos, e em nome da tal relação que estabelecera com uma «consciência alemã anti-nazi do pós-guerra», me incluí quando escrevi o post-em-choque que ambos de alguma forma questionaram. Desconfio que, para uma boa parte dessa multidão, a revelação em causa possa funcionar como o tal golpe publicitário que as leve a correrem para as portas das livrarias como se um novo e cada vez mais graúdo Harry Potter estivesse para chegar. Mas admito que os mais influenciados por uma informação intensamente mediatizada o façam (e de um registo na Wikipedia já ninguém os livra). Sorte, neste caso, a das contas bancárias de GG e dos seus editores.

                          «La Puta»

                          Das recordações da infância em Santiago de Cuba, conta assim Eduardo Manet: «A minha mãe não pronunciava a palavra: contentava-se em erguer os braços para o céu, fechava os olhos e articulava grosseiramente, para que eu a captasse sem a ouvir. ‘La puta’. Muitos anos mais tarde, não consigo ver um retrato de Isabel, a Católica, sem pensar interiormente, como teria feito a minha mãe: ‘A puta!’. Aquela que expulsou ou queimou árabes e judeus, a que trouxe a infelicidade.»

                            Recortes

                            Agressor errado

                            Foram demais. Centenas de milhares de mortos e um número de feridos que nunca poderá ser contabilizado. Eram quase todos muçulmanos e civis, em poças de sangue sobre a terra queimada. Como recordava alguém há pouco tempo, aconteceu Serbrenica e na altura poucos apontaram o dedo à Sérvia, aconteceu Grozny e desculpou-se a Rússia, aconteceu Darfur e praticamente não se ouviu uma voz contra o governo genocida do Sudão. Boat people conduzida ao deus dará pela maré errada.

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                              Os Ciclopes

                              Ciclope
                              Netos de Uranos (o Céu) e de Gaia (a Terra), deuses primordiais na mitologia grega, os Ciclopes são criaturas fantásticas que possuem como atributos a força bruta e, consequentemente, o poder que esta lhes confere. A sua fraqueza reside apenas na visão monocular, a qual, apesar de assustadora para quem os contempla, lhes limita o ângulo de visão, facilitando inúmeras vezes as armadilhas ou a retirada dos seus inimigos.

                                Devaneios

                                A culpa

                                Será possível perdoar a Günter Grass por vir agora dizer que na juventude foi membro das SS? Perdoo-lhe por o haver sido aos 17 anos. Mas não por tê-lo escondido de nós durante este tempo todo. Jamais voltarei a ler um livro escrito por Grass antes desta declaração tardia.

                                PS – Luís Mourão questiona-me sobre o sentido desta posição de normando. De facto, eu também acho que «esta declaração (pode) dar uma espessura maior à dimensão crítica do romancista Grass». Sob este aspecto, quanto mais complexo, por vezes, mais denso, mais embaraçoso, mais interessante. Mas eu comecei a ler Grass – como admito que muitas pessoas ainda o façam – justamente por tomá-lo, de forma singela, por uma voz da consciência alemã anti-nazi do pós-guerra. Sinto-me assim como aquele sujeito que só ao fim de 40 anos de casamento percebeu que a esposa foi levando uma vida sexual dupla. Traído, portanto. Mas pode ser, caro Luís, que o tempo cure a mágoa e me devolva a razão. A ingenuidade, essa já é mais difícil.

                                  A imensa tristeza

                                  Revisitando um artigo publicado em 2003 na revista Periférica

                                  1.

                                  Stalin Martínez, irmão de Lenin e Lenina Martínez, estomatologista no romance Conta-me coisas de Cuba, do exilado Jesus Díaz, viveu uma situação que o levaria ao desespero e à fuga da ilha. Pepa, a velha ventoinha Westinghouse, avariara-se irremediavelmente, deixando-o, sem dinheiro ou influências para conseguir uma nova, confinado ao calor constante, insuportável, de um quarto solitário em La Habana.

                                  Confunde-nos a variedade de metáforas negativas usadas por muitos escritores cubanos para se referirem ao habitat que conformou as suas vidas, deslocando o mal-estar para relatos aparentemente laterais. Karla Suárez insiste na mudez como veículo expressivo e como processo de compreensão do mundo em redor (Os Rostos do Silêncio). Zoe Valdés aborda a sobrevivência esgotante, sem horizontes, daqueles que não procuraram o exílio (O Nada Quotidiano). Pedro Juan Gutiérrez transforma o sexo obsessivo numa cadência que exige concentração de energia, que esgota, não deixando espaço para o pensamento e para a vida social (na Trilogia Suja de Havana, sobretudo). Daína Chaviano, ergue universos mágicos numa cidade arruinada, sobre vidas com senhas de racionamento, filas, polícia política, ininterrupta propaganda oficial (no ciclo La Habana Oculta). Nem os mais obstinados na negação do manifesto podem ignorar a forma como o relato ficcional da Cuba contemporânea – o relato do dissídio, naturalmente – descarta a vivência colectiva de praças e reuniões, a propaganda visível nos outdoors do regime e em folhetos para turistas.

                                  Cuba: Imagens & Testemunhos (2002), um álbum organizado por João Vilar e Alfredo Duarte Costa, é diferente. Alinham-se fotografias e relatos do que da ilha, da sua vida e do seu futuro pensam (ou dizem) figuras como Maria Barroso, Jorge Sampaio, Luís Represas, Rui Veloso, Américo Amorim, Pedro Lamy, Miguel Urbano Rodrigues, Edite Estrela, Eusébio, entre outros nacionais e alguns estrangeiros inseridos na conexão cubana (como o cardeal D. Jaime Ortega ou a obrigatória Aleida Guevara). As imagens são belas, revelando tipos únicos na paisagem luminosa em cinemascope, numa espécie de pobreza limpa e honrada, numa decadência de charme que nos habituámos a reconhecer. Os textos não passam do lugar-comum, do elogio previsível, numa justificação pela negativa – a crítica do bloqueio americano, a resistência do regime apoiada em palavras esvaziadas do sentido original (como rebeldia ou revolução), o bricolage como arma dos necessitados – daquilo que, fora dos meios de comunicação estritamente controlados, é um país sem a marca de projectos mobilizadores. Vivendo um quotidiano que apenas para os estrangeiros, e mais moderadamente para alguns naturais mais humildes sitiados pela propaganda, parece marcado ainda pelo júbilo. Pedro Lamy, o piloto de automóveis, fascinado, como seria de prever, pelos Pontiac e Chevrolet «que se mantêm como novos», fala da gente que aos seus olhos «vive num constante momento de alegria e boa disposição». Miguel Urbano Rodrigues, histórico da mais impoluta ortodoxia comunista lusitana, adensa a ideia, tratando os cubanos como semi-heróis homéricos, capazes, na paisagem devastadora de uma «crise global da civilização», de afirmarem uma inigualável «atmosfera marcada por intensa alegria de viver».

                                  Observando à distância, afinal que outro estado de espírito deveríamos presumir num povo que conhece uma inflação próxima do zero, a quase completa literacia, um sistema de saúde gratuito e razoavelmente avançado? Que outra sensação poderia legar ao turista o perfume adocicado dos inigualáveis charutos, o calor contagiante das pessoas, a sensualidade dos corpos, a omnipresente música tão característica da casa comum caribenha? Elementos dispersos de uma mitografia da felicidade erguida também sobre a herança do lugar privilegiado que a Cuba revolucionária tem ocupado, em particular na Europa e América Latina, no imaginário da esquerda ocidental.

                                  2.

                                  Após a tomada do poder pelos insurrectos da Sierra Maestra, os tropos que integravam a sua gramática fundadora – revolução, rebeldia, anti-imperialismo, colectivização, socialismo – foram afixados nas paredes, proclamados diariamente, ampliando uma simpatia mais imediata do que aquela que se poderia sentir pelos distantes, previsíveis e nada modelares aparatchiks moscovitas. E ainda que Cuba tenha rapidamente começado a copiar o modelo centralista das «democracias populares», tal não fez diminuir, mesmo na área da social-democracia, e principalmente entre os intelectuais e alguma juventude, o «tropismo cubano» manifestado perante um regime dotado do fulgor impossível de vislumbrar nos desfiles rituais diante do Kremlin. Imagem ampliada ainda pelo efeito carismático de políticos sem rugas, possuidores de um estilo novo, directo, rebeldes com causa desprovidos dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas da época. Sartre, de visita logo em 1960, sentiu-se imediatamente seduzido pela «lua-de-mel da revolução», vivida num clima de aparente euforia geral. Foi essa a atraente Cuba – do Che, de Cienfuegos, de Castro, cuja conjunção a verdadeira história rapidamente separaria – ­que, entre muitos outros jovens e menos jovens de todo o mundo, então procurou Annie, a romântica única filha do major Silva Pais, último director da PIDE, «portuguesa na revolução cubana» recordada no romance-livro de memórias de José Fernandes Fafe.

                                  Mas nada disto transparece na palavra dos actuais escritores e exilados, para os quais a expressão da tristeza é inevitável. Guillermo Cabrera Infante, ex-companheiro de Fidel, sentiu, por isso, a necessidade de escrever a crónica pessoal de uma cidade aberta, sonora, plural, que fora a da sua infância, adolescência e parte da idade madura (Havana para um Infante Defunto). A descrição da opressão, feita pelos numerosos dissidentes – nem todos eles iguais, nem todos «canalhas» e «criaturas da CIA», como pronunciam os epígonos do regime e os seus bajuladores – já fazia notar esse distanciamento. Lê-se Antes que Anoiteça, autobiografia impressionante, indesmentível e indesmentida, do suicidado Reynaldo Arenas, guerrilheiro castrista aos quinze anos de idade, assumido gay, e percebe-se como o regime procurou conter, normalizar a criatividade sem limites, o sentido do risco e a paixão da desordem, a busca da beleza e o frisson da perdição, tudo fazendo para submeter os comportamentos culturais e o viver comum às «metas da Revolução» definidas, sem recurso algum, no estreitíssimo conclave do partido único.

                                  No conto «Delito de dançar o Chá-Chá-Chá» (incluído na colectânea É Tudo um Jogo de Espelhos), é ainda Cabrera Infante que coloca uma poderosa interrogação face a uma futilidade: que fazer socialmente com esta dança que teve «a desgraça de o seu nascimento coincidir com a ditadura de Batista» e, por isso, «como a poesia hermética, como o jazz», se tornou culpada de uma alegria ilegítima e decadente? A revolução distinguirá por tempo demais – aproxima-se agora do meio século de sentido único – o bom do mau, o justo do injusto, o conforme do disforme, e, também por isso, toda a diferença em relação a um hipotético padrão de perfeição é condenada.

                                  Não surpreende assim o número considerável de intelectuais – jornalistas, escritores, professores, artistas plásticos, cineastas, fotógrafos, músicos, estudantes – envolvidos com o universo da oposição. Ou que fazem por viver a sua vida à margem dos favores e das sugestões do regime. Recorrentes vagas repressivas têm empurrado para a proscrição, o cárcere ou o paredão um conjunto de pessoas, diferentes sem dúvida nas motivações e formas de agir, unidas pela recusa do único, fonte dessa imensa tristeza produzida pela ausência de um lugar para o exercício descomprometido da diversidade. E nem mesmo um escritor em relativa paz com o governo, como Lisandro Otero, Prémio Nacional da Literatura de Cuba de 2003, se eximiu, no discurso pronunciado quando da entrega do galardão, de deixar implícita essa carência, essa insatisfação: «Se não se tomam medidas restauradoras a paixão converte-se em rancor, o entusiasmo torna-se indiferença, a fé é destruída pelo cepticismo. Não obstante, há que continuar alentando sonhos». Do que falava afinal Otero?

                                  «Morre-se de nostalgia em Cuba», afirmou Karla Suárez numa entrevista publicada pelo Diário de Notícias. É provável que sim. Não a nostalgia do miserável passado pré-revolucionário, sobrevivente na memória da geração que o conheceu ou nos manuais de história concebidos como hagiografias. Mas, é legítimo suspeitá-lo, a dessa alegria perdida que apenas a liberdade sem adjectivos, incandescente, pode trazer.

                                    Opinião