A imensa tristeza

Revisitando um artigo publicado em 2003 na revista Periférica

1.

Stalin Martínez, irmão de Lenin e Lenina Martínez, estomatologista no romance Conta-me coisas de Cuba, do exilado Jesus Díaz, viveu uma situação que o levaria ao desespero e à fuga da ilha. Pepa, a velha ventoinha Westinghouse, avariara-se irremediavelmente, deixando-o, sem dinheiro ou influências para conseguir uma nova, confinado ao calor constante, insuportável, de um quarto solitário em La Habana.

Confunde-nos a variedade de metáforas negativas usadas por muitos escritores cubanos para se referirem ao habitat que conformou as suas vidas, deslocando o mal-estar para relatos aparentemente laterais. Karla Suárez insiste na mudez como veículo expressivo e como processo de compreensão do mundo em redor (Os Rostos do Silêncio). Zoe Valdés aborda a sobrevivência esgotante, sem horizontes, daqueles que não procuraram o exílio (O Nada Quotidiano). Pedro Juan Gutiérrez transforma o sexo obsessivo numa cadência que exige concentração de energia, que esgota, não deixando espaço para o pensamento e para a vida social (na Trilogia Suja de Havana, sobretudo). Daína Chaviano, ergue universos mágicos numa cidade arruinada, sobre vidas com senhas de racionamento, filas, polícia política, ininterrupta propaganda oficial (no ciclo La Habana Oculta). Nem os mais obstinados na negação do manifesto podem ignorar a forma como o relato ficcional da Cuba contemporânea – o relato do dissídio, naturalmente – descarta a vivência colectiva de praças e reuniões, a propaganda visível nos outdoors do regime e em folhetos para turistas.

Cuba: Imagens & Testemunhos (2002), um álbum organizado por João Vilar e Alfredo Duarte Costa, é diferente. Alinham-se fotografias e relatos do que da ilha, da sua vida e do seu futuro pensam (ou dizem) figuras como Maria Barroso, Jorge Sampaio, Luís Represas, Rui Veloso, Américo Amorim, Pedro Lamy, Miguel Urbano Rodrigues, Edite Estrela, Eusébio, entre outros nacionais e alguns estrangeiros inseridos na conexão cubana (como o cardeal D. Jaime Ortega ou a obrigatória Aleida Guevara). As imagens são belas, revelando tipos únicos na paisagem luminosa em cinemascope, numa espécie de pobreza limpa e honrada, numa decadência de charme que nos habituámos a reconhecer. Os textos não passam do lugar-comum, do elogio previsível, numa justificação pela negativa – a crítica do bloqueio americano, a resistência do regime apoiada em palavras esvaziadas do sentido original (como rebeldia ou revolução), o bricolage como arma dos necessitados – daquilo que, fora dos meios de comunicação estritamente controlados, é um país sem a marca de projectos mobilizadores. Vivendo um quotidiano que apenas para os estrangeiros, e mais moderadamente para alguns naturais mais humildes sitiados pela propaganda, parece marcado ainda pelo júbilo. Pedro Lamy, o piloto de automóveis, fascinado, como seria de prever, pelos Pontiac e Chevrolet «que se mantêm como novos», fala da gente que aos seus olhos «vive num constante momento de alegria e boa disposição». Miguel Urbano Rodrigues, histórico da mais impoluta ortodoxia comunista lusitana, adensa a ideia, tratando os cubanos como semi-heróis homéricos, capazes, na paisagem devastadora de uma «crise global da civilização», de afirmarem uma inigualável «atmosfera marcada por intensa alegria de viver».

Observando à distância, afinal que outro estado de espírito deveríamos presumir num povo que conhece uma inflação próxima do zero, a quase completa literacia, um sistema de saúde gratuito e razoavelmente avançado? Que outra sensação poderia legar ao turista o perfume adocicado dos inigualáveis charutos, o calor contagiante das pessoas, a sensualidade dos corpos, a omnipresente música tão característica da casa comum caribenha? Elementos dispersos de uma mitografia da felicidade erguida também sobre a herança do lugar privilegiado que a Cuba revolucionária tem ocupado, em particular na Europa e América Latina, no imaginário da esquerda ocidental.

2.

Após a tomada do poder pelos insurrectos da Sierra Maestra, os tropos que integravam a sua gramática fundadora – revolução, rebeldia, anti-imperialismo, colectivização, socialismo – foram afixados nas paredes, proclamados diariamente, ampliando uma simpatia mais imediata do que aquela que se poderia sentir pelos distantes, previsíveis e nada modelares aparatchiks moscovitas. E ainda que Cuba tenha rapidamente começado a copiar o modelo centralista das «democracias populares», tal não fez diminuir, mesmo na área da social-democracia, e principalmente entre os intelectuais e alguma juventude, o «tropismo cubano» manifestado perante um regime dotado do fulgor impossível de vislumbrar nos desfiles rituais diante do Kremlin. Imagem ampliada ainda pelo efeito carismático de políticos sem rugas, possuidores de um estilo novo, directo, rebeldes com causa desprovidos dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas da época. Sartre, de visita logo em 1960, sentiu-se imediatamente seduzido pela «lua-de-mel da revolução», vivida num clima de aparente euforia geral. Foi essa a atraente Cuba – do Che, de Cienfuegos, de Castro, cuja conjunção a verdadeira história rapidamente separaria – ­que, entre muitos outros jovens e menos jovens de todo o mundo, então procurou Annie, a romântica única filha do major Silva Pais, último director da PIDE, «portuguesa na revolução cubana» recordada no romance-livro de memórias de José Fernandes Fafe.

Mas nada disto transparece na palavra dos actuais escritores e exilados, para os quais a expressão da tristeza é inevitável. Guillermo Cabrera Infante, ex-companheiro de Fidel, sentiu, por isso, a necessidade de escrever a crónica pessoal de uma cidade aberta, sonora, plural, que fora a da sua infância, adolescência e parte da idade madura (Havana para um Infante Defunto). A descrição da opressão, feita pelos numerosos dissidentes – nem todos eles iguais, nem todos «canalhas» e «criaturas da CIA», como pronunciam os epígonos do regime e os seus bajuladores – já fazia notar esse distanciamento. Lê-se Antes que Anoiteça, autobiografia impressionante, indesmentível e indesmentida, do suicidado Reynaldo Arenas, guerrilheiro castrista aos quinze anos de idade, assumido gay, e percebe-se como o regime procurou conter, normalizar a criatividade sem limites, o sentido do risco e a paixão da desordem, a busca da beleza e o frisson da perdição, tudo fazendo para submeter os comportamentos culturais e o viver comum às «metas da Revolução» definidas, sem recurso algum, no estreitíssimo conclave do partido único.

No conto «Delito de dançar o Chá-Chá-Chá» (incluído na colectânea É Tudo um Jogo de Espelhos), é ainda Cabrera Infante que coloca uma poderosa interrogação face a uma futilidade: que fazer socialmente com esta dança que teve «a desgraça de o seu nascimento coincidir com a ditadura de Batista» e, por isso, «como a poesia hermética, como o jazz», se tornou culpada de uma alegria ilegítima e decadente? A revolução distinguirá por tempo demais – aproxima-se agora do meio século de sentido único – o bom do mau, o justo do injusto, o conforme do disforme, e, também por isso, toda a diferença em relação a um hipotético padrão de perfeição é condenada.

Não surpreende assim o número considerável de intelectuais – jornalistas, escritores, professores, artistas plásticos, cineastas, fotógrafos, músicos, estudantes – envolvidos com o universo da oposição. Ou que fazem por viver a sua vida à margem dos favores e das sugestões do regime. Recorrentes vagas repressivas têm empurrado para a proscrição, o cárcere ou o paredão um conjunto de pessoas, diferentes sem dúvida nas motivações e formas de agir, unidas pela recusa do único, fonte dessa imensa tristeza produzida pela ausência de um lugar para o exercício descomprometido da diversidade. E nem mesmo um escritor em relativa paz com o governo, como Lisandro Otero, Prémio Nacional da Literatura de Cuba de 2003, se eximiu, no discurso pronunciado quando da entrega do galardão, de deixar implícita essa carência, essa insatisfação: «Se não se tomam medidas restauradoras a paixão converte-se em rancor, o entusiasmo torna-se indiferença, a fé é destruída pelo cepticismo. Não obstante, há que continuar alentando sonhos». Do que falava afinal Otero?

«Morre-se de nostalgia em Cuba», afirmou Karla Suárez numa entrevista publicada pelo Diário de Notícias. É provável que sim. Não a nostalgia do miserável passado pré-revolucionário, sobrevivente na memória da geração que o conheceu ou nos manuais de história concebidos como hagiografias. Mas, é legítimo suspeitá-lo, a dessa alegria perdida que apenas a liberdade sem adjectivos, incandescente, pode trazer.

    Opinião.