A outra revolução

Marilyn
Pulido Valente insistiu hoje, a contracorrente, numa realidade para a qual tenho procurado chamar a atenção (veja-se O Poder da Imaginação – Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60, ed. Angelus Novus). A experiência daquilo que genericamente se tem convencionado chamar «os anos 60» – vividos num raio temporal de perto de duas décadas e, de uma forma gradual, em praticamente todo o planeta – definiu-se muito mais pela afirmação da juventude enquanto grupo social portador de um padrão de vida autónomo, pelo fulgor da nova cultura popular, por uma intensa abertura no campo da moral (incluindo a construção de uma sexualidade renovada), por uma atitude estética própria e omnipresente, pela emergência dos movimentos sociais de um tipo novo, pela afirmação de um modelo de sociedade de natureza anti-disciplinar, do que pela proeminência nos processos de mudança das organizações políticas da esquerda. Estas encontravam-se a viver um impasse histórico, do qual o radicalismo constituía uma das vertentes, e a ortodoxia, principalmente a pró-soviética, a outra. O «eurocomunismo» não era, como havia já na altura quem o apontasse, senão um passo envergonhado, rumo ao que será mais tarde designado como uma «terceira via» entre o liberalismo e a social-democracia. A direita, essa demarcava-se maniacamente de toda e qualquer mudança no seu quadro tradicional de valores.

Em Portugal, foi esse também o género de transformação – tardia em relação aos países mais industrializados e a algumas das suas áreas periféricas, mas muito marcada pelo rápido declínio do Estado Novo e pelas pesadas sequelas da guerra colonial – que, de forma particularmente intensa, preparou um clima de rejeição geracional e de afastamento da classe média em crescimento. Devido à inflexibilidade do regime, este só poderia ter terminado como de facto terminou: com um «25 de Abril». A oposição, coagida pela censura e pela polícia política, e por vezes tolhida pelo dogma que incitava o sectarismo, fez aquilo que foi capaz de fazer para combater o poder instalado. E, sublinhe-se, não fez nada pouco. Só que, para um sector cada vez alargado de cidadãos – quase silencioso por vezes, mas profundo e dinâmico, sem dúvida, no divórcio crescente em relação à ordem estabelecida e nos processos de desafectação diante dos padrões de vida que aquela continuava a requerer – os factores preponderantes não foram, de facto, aqueles que uma certa memória da esquerda, e alguma historiografia que com esta tem vindo a colaborar, habitualmente propõem.

Simplificando um pouco, embora sem fugir ao essencial: na última década do regime, I Can’t Get No (Satisfaction) e The Times They Are A-Changin’ fizeram mais, e sobretudo de forma mais profunda e duradoura, para abalar a ordem vigente, do que o fizeram, nessa mesma altura, a Canção dos Barqueiros do Volga ou a Bandiera Rossa; o cinema de Antonioni ou de Godard fez bem mais do que o de Eisenstein ou até o de Rossellini; a leitura do Salut les Copains! e do Comércio do Funchal, mais, ou pelo menos com maior intensidade, do que a da generalidade da imprensa periódica clandestina; os livros de Kerouac e de Sartre mais do que os de Cholokov ou de Lenine; o impacto de 1968 mais do que o que chegou de 1917; o festival de Woodstock mais do que a festa de L’Humanité; mesmo a Marilyn de Wahrol talvez mais (talvez) do que a Guernica de Picasso. Situa-se na percepção deste conflito e desta mudança, sobretudo no que respeita aos ambientes urbanos da Europa central e ocidental, a possibilidade de uma compreensão mais completa da rápida queda das democracias musculadas (o gaullismo, por exemplo). Ou, como aconteceu connosco, do fim das ditaduras arcaicas e desse pequeno mundo protegido, simbolicamente representado nas cerimónias lúgubres do 10 de Junho, dentro do qual a sua cada vez mais limitada e estéril base social de apoio ainda acreditava habitar.

    História.