Não sou um sujeito venal. Não penso, como alguns banqueiros ou os jovens turcos, que «todos temos um preço», diferenciando-se os mais honestos apenas por ganharem menos do que os nada escrupulosos. Ainda assim, a alguém que me queira oferecer um utensílio destes, entregarei a alma de imediato sem exigir recibo. Ele sugere-me um salvo-conduto para a felicidade suprema – como se sabe, ela é leve e portátil – e essa não tem preço.
Ici se habla português
Uns dias longe dos blogues foram suficientes para chegar tarde ao debate sobre a inclusão da Guiné Equatorial nesse quase inútil organismo que responde pelo acrónimo CPLP. Para quem se recuse a ver neste uma simples agremiação de interesses, a proposta – para já adiada, devido a algum mal-estar que levantou em circuitos menos venais, mas que fica em aberto para uma oportunidade que se prevê próxima – é um perfeito absurdo. Não se trata apenas de dar cobertura política a um regime ditatorial que dessa forma compraria alguma credibilidade internacional – mesmo sabendo-se que Angola, um dos seus anfitriões, não constitui propriamente um exemplo de vigor democrático –, mas principalmente de assegurar a entrada de um país sem fundamentos históricos, culturais ou linguísticos que o aproximem minimamente daquilo que os países de língua portuguesa podem partilhar. Tal como acontecerá com outros que pretendem entrar no mesmo processo integrador: a Austrália, a Indonésia, o Luxemburgo, a Suazilândia ou a Ucrânia. Quiçá a Gronelândia (aportada em 1500-1501 pelos manos Corte-Real) ou as ilhas Vanuatu (visitadas pelo explorador Pedro Fernandes de Queirós em 1606), pois dentro de tais parâmetros porque não deixar correr a vertigem e conquistar meio mundo para uma CPLP planetária? Além disso, no caso da Guiné Equatorial, tal entrada consagraria um gesto típico de ditador: a decisão de impor a um povo, por decreto, que uma língua importada se torne «oficial». Absurdo, repito, e inaceitável. Como o é o silêncio de algumas forças políticas portuguesas perante as propostas de Teodoro Nguema Mbasogo, para a revista Forbes o oitavo governante mais rico do mundo. Cegas pelo borbulhar viscoso do petróleo ou comprometidas com propostas vindas de países lusófonos cujos responsáveis não pestanejam quando se trata de trocar os princípios «progressistas», que outrora arvoraram nas suas bandeiras, por dólares ou euros. Muitos milhões de dólares ou de euros.
Mrs. Peel
Diana Rigg faz hoje 72 anos. Nunca foi uma star, nove em cada dez, das que entravam em banheiras cheias de espuma para anunciarem o sabonete Lux, mas a partir de certa altura foi Emma Peel, a companheira pró-activa e multitarefas do agente John Steed na série de televisão The Avengers, Os Vingadores, rodada entre 1961 e 1969. Steed era um agente do MI6 com aspecto de inglês «típico»: chapéu de coco, fraque sem ruga, um inseparável guarda-chuva muito bem enrolado e a omnipresente dose de fleuma. Já Mrs. Peel destoava da tradicional ajudante, sedutora, um tanto tola e absolutamente secundária na trama das outras séries. Pelo contrário, o trabalho pesado – socos, cabeçadas, fugas impossíveis, activação de engenhos explosivos e uns quantos tiros bem aplicados – ficava sempre por conta da agente em roupa futurista de cabedal negro, dotada de vastos conhecimentos de karaté e praticante de elevado nível de boxe tailandês. Aqui residia, aliás, o ineditismo da série, a sua marca caracteristicamente sixtie e vagamente feminista (Barbarella, a série de BD e o filme de culto, foram contemporâneos dos Vingadores). Talvez por isto a série de televisão se tenha tornado rapidamente popular. Diana Rigg foi também uma fugaz «Bond girl» e a madrasta má numa versão da Branca de Neve, mas será para sempre a intrépida – e por isso singularmente sexy – Mrs. Peel.
Duas adendas em vídeo: Mrs. Emma Peel + Emma Peel in tight leather catsuit…
O véu e a lógica do zoo
Fotomanipulação – ©2008-2010 LaHamletta
Falo do que me parece intuitivo, sem dar uma importância maior do que a necessária àquilo que o Senhor Sarkozy pensa sobre a matéria, às suas intenções veladas, às «grandes razões» que invoca. Caminho sobre um assunto tórrido, infelizmente recorrente.
Ao reconhecer a partilha de diferentes práticas, tradições e percepções do mundo num mesmo território, o multiculturalismo impõe a aceitação do diverso e o reconhecimento da sua autonomia. Mas sustenta também a edificação de uma realidade-outra, de uma metamorfose, proporcionada justamente pela convivência que sociabilidades partilhadas permitem e impõem. Na cidade multicultural a vida colectiva resulta da soma das partes e da interacção criadora de cada uma delas com cada uma das restantes mas também com o todo. Por isso, tudo aquilo que acontece nas suas ruas diz respeito a todos: o que cada um de nós mostra, exprime, oferece, existe apenas em nome do conjunto e de um diálogo infinito e criador. Desse processo de recomposição da consciência colectiva e das identidades ao qual se referem, entre outros, o filósofo Charles Taylor e o sociólogo Michel Wieviorka. Por isso ainda, não faz sentido a deriva relativista que tende a definir a integridade do «outro» e a legitimar a todo o custo a sua diferença, insulando-a, empurrando-a para um elogiável ghetto, por muito que esta possa colidir com a forma de estar no mundo dos restantes. Respeitar o outro é assim, e sempre, conviver com ele e com ele ir desenhando pontes, negociando limites. O contrário não é uma paisagem multicultural, mas sim a transposição para as sociedades humanas da lógica territorial da selva ou do zoo.
Penso ser este o cenário diante do qual podemos pensar, de uma forma positiva e razoavelmente dialogante, o problema do «véu islâmico», da sua admissão ou do seu constrangimento, fora ou dentro do seu território real ou supostamente original. Não me refiro ao uso do discreto hijad, que evidencia uma forma de vestir tão legítima e normal quanto qualquer outra, «diferente» em alguns espaços e vulgar noutros como todas as formas de vestir. Nem sequer do mais visível chador, que cobre o corpo mas não o rosto, e permanece ainda como um hábito, não mais indiciador de diferenças de género do que um quimono, um acanhado saiote zulu ou um rotundo decote. Refiro-me sim ao niqab, o véu que cobre todo o rosto, com excepção dos olhos, e da burka, que tapa o rosto, ocultando também os olhos e qualquer forma do corpo que confirme ser este o de uma mulher: aqui é-se mulher não pelo que se vê mas pelo que se supõe estar dentro do que é possível ver-se. E falo apenas destes dois tipos porque representam um obstáculo à construção partilhada de uma ética e de uma experiência multicultural.
Isto acontece, de um lado, porque instalam a desconfiança do outro. Não ver o rosto com o qual nos cruzamos, da pessoa com quem falamos, vê-la apenas através de uma máscara, de um disfarce, de uma gaiola, impossibilita a aproximação, aparta as experiências. No mundo actual, com o ascenso do terrorismo islamita, a situação reforça ainda a desconfiança, o medo, a leitura do outro como um perigo potencial. Segrega, em vez de avizinhar, instalando a clivagem em vez da partilha. Instiga o ódio e aponta justamente à destruição do convívio multicultural. Essa é, aliás, a intenção dos islamitas que pretendem impô-lo à força da lei ou da chibata. Mas o uso do niqab e da burka representa também um obstáculo àquela que é, justamente, um dos objectivos da comunhão planetária da diferença: a afirmação de um relacionamento igualitário entre homens e mulheres. Admiti-lo é pois aceitar, legitimar, uma marca de segregação que não vejo em que se possa fundamentalmente distinguir das sinetas dos leprosos medievais, das grilhetas dos escravos africanos ou da estrela amarela pregada pelos nazis nas roupas dos judeus.
Trata-se de um sinal de submissão ou de subalternidade, de um factor de imposição violenta da diferença, que contraria os fundamentos capazes de gerirem uma sociedade multicultural ou um planeta que tende cada vez mais a ser partilhado por todos. Por isso, onde for possível fazê-lo, deve ser liminarmente afastado da esfera do público. Tal e qual como os castigos corporais, as formas explícitas de tortura e todas as afrontas aos direitos humanos. Sem «ses» ou «mas» de espécie alguma. Negar esta necessidade, ainda que em nome de uma meta política julgada prioritária, não significa «reconhecer a diferença» em abstracto, «aceitar o outro» como ele supostamente «é», mas sim transigir com uma forma particular de opressão e de barbárie. Ser cúmplice, por omissão, dos processo dos quais se servem as «identidades assassinas» para as quais nos alerta Amin Maalouf. Adversárias juradas – em nome de uma «diferença» artificialmente construída e apoiada na manipulação dos sentimentos religiosos – da convivência multicultural e do secularismo, de um mundo mais igualitário, um pouco mais justo. E mais humano, não há que ter medo da palavra.
Elementar, meu caro Hugo
Hugo Chávez suspeita que Simon Bolívar (nascido em Caracas, Venezuela) não morreu há 180 anos pela influência danosa do bacilo de Koch, tal como ardilosamente contam os livros de história, mas sim envenenado com arsénico, ou então baleado. Para confirmar a tese, mandou exumar «o esqueleto glorioso», como lhe chamou, e reuniu 50 especialistas da Fiscalía General e do Cuerpo Técnico de Policía Judicial. A televisão venezuelana filmou o solene momento e, célere como é seu dever, divulgou-o à escala do planeta. Mas claro que não existe suspeita de crime – elementar, meu caro Hugo – sem que se não pense logo no suspeito. E a primeira pergunta, a eternamente clássica, é… quem lucrou de forma mais óbvia com a morte do «Libertador»? A pessoa está já identificada e desta vez não foi o mordomo: trata-se do general Francisco de Paula Santander, que viu a luz do dia em Villa del Rosario, Colômbia, e enfrentou por diversas vezes os ímpetos belicistas de Bolívar, sucedendo-lhe em nome do sector civilista ao qual este se opusera. Não sei se estão a ver: pegamos na naturalidade dos dois generais, no seu trajecto secante, na crise política actualmente vivida na região, e depois… é só fazer as contas. O historiador venezuelano Elías Pino Iturrieta afirmou a propósito, ao El País, que «não existe o mínimo fundamento científico que justifique este espectáculo nocturno», mas que importa tal princípio face à suspeita e às necessidades do omnisciente coronel? Aguardam-se «conclusões» a condizer.
Duas adendas:
– Tudo isto se passou no dia 16 de Julho. Ontem mesmo na Wikipédia em português era já possível ler: «Pelo que se descobriu após uma autópsia de Simon Bolívar, sua verdadeira morte foi causada por um envenenamento na digestão da água, que possuíam altas doses de arsénio.» O artigo da versão em inglês não fala disto.
– Para quem se interesse por estes pormenores: Santander caiu gravemente doente e morreu de causa não esclarecida em 6 de Maio de 1840, no próprio dia em que fez o discurso de aceitação da sua recandidatura à presidência de Nova-Granada (futura Colômbia). Durante a autópsia encontraram-lhe ainda duas marcas de bala e uma de lança.
Memória de um coxo
Nas últimas noites tenho encerrado a jornada lendo algumas páginas da colectânea de crónicas de Manuel António Pina que acaba de sair (Por outras palavras, edição da Modo de Ler). A maioria delas já eu tinha lido, no exacto lugar ao qual foram originalmente destinadas. Sou, aliás, leitor contumaz de tudo aquilo que o escritor escreve, sempre na tentativa gorada de encontrar uma palavra, um juízo, uma atitude que me desgoste, que ache deslocada, ou da qual me sinta suficientemente distanciado para poder testar a vontade física, que mantenho desde que me conheço e já me apontaram (provavelmente com razão) como doentia, de descobrir defeitos na perfeição. Será, por isso, escusado dizer que recomendo, e muito, estas trezentas e tal páginas, garantindo que, se sinto os olhos a fecharem ao fim de uma dúzia delas, é só porque geralmente já passa das três da manhã.
Este post não é, porém, sobre o livro de Manuel António Pina. É sobre uma sua evocação, nele contida, que me tocou de repente a memória. Lembra Pina, numa crónica de 2003, a propósito de um encontro breve mas inesquecível com o poeta Ruy Belo, uma manifestação estudantil na Baixa do Porto «contra a Queima das Fitas». Não sei o que pensará hoje a maioria dos estudantes universitários de tal evocação e da importância que ela teve para um certo padrão de resistência ao velho Estado Novo. Admito que seja algo de estranho. Como alguém contar que um dia vibrou com os golos de Figueiredo ou que a sua primeira erecção oficial foi instigada por um fotograma de Silvana Mangano em Riso Amaro. Mas posso garantir que não se trata de sinal de confusão da memória: participei em Maio de 1972, mais a sul, numa manifestação contra uma tentativa de reposição da Queima das Fitas por parte de uns quantos cidadãos próximos da direita extrema. Como poderia esquecer-me se nessa tarde, ao fugir da polícia que carregava sobre os estudantes, perdi um sapato e tive de regressar a casa por becos ínvios, procurando esconder o melhor que podia aquela propensão súbita para coxear um pouco?
Aqui há fantasmas
Não diria que a profissão de ghost-writer é a mais velha do mundo. Parece que essa é outra. Mas será, com toda a certeza, uma das mais antigas: sabemos muitas vezes quem mandou gravar as tabuinhas sumérias, mas jamais conheceremos o nome dos pobres escribas que as produziram. Posso estar enganado, mas por muito ligada a uma genealogia longeva que esta actividade se encontre, ela parece-me particularmente deprimente. Dar forma, ainda que por uma soma razoável, a textos dos quais outros passam por autores, não será com toda a certeza uma experiência apaixonante e boa para a auto-estima. Sabendo, para mais, que muitas das pessoas a quem esse trabalho serve – futebolistas e actores famosos, treinadores da moda, políticos ou jornalistas de renome, cozinheiros consagrados, antigos espiões, gigolôs e socialites com muita lábia, esposas traídas ou ex-amantes com sentido de oportunidade – jamais teriam o engenho e a arte suficientes para assinarem um volume legível com mais de cinquenta páginas de memórias ou revelações ruidosas.
Trata-se, no entanto, de uma actividade legítima, e é a ela que, a propósito do novo filme de Roman Polanski, o quinzenário JL dedica o pequeno dossiê que vem com o número chegado hoje às bancas. Por momentos animei-me e comprei um exemplar, julgando que ali pudesse ser abordado também – penso que tal seria uma obrigação de um jornal «de Letras, Artes e Ideias» com responsabilidade cívica e cultural – um lado bem menos lícito, e claramente imoral, dessa actividade que tem vindo visivelmente a crescer. Refiro-me àquele protagonizado pelos escritores-fantasma que compõem romances inteiros ao mesmo tempo que vendem a alma a supostos fazedores de «best-sellers», figuras ufanas na sua condição de «escritores» que nunca o foram. Ou, pelo menos, nunca o foram «daquela» maneira exibida e laureada. Não pedia rostos, não esperava por nomes, não queria que mencionassem casos – sei que, quando há muito dinheiro envolvido, a lei, não necessariamente justa, é sempre mais célere, e além disso não será fácil nestes casos obter provas – mas parecia-me devida a mera menção, num tema como este e que ali se pretendia inventariar, deste triste prodígio contemporâneo. Fui ingénuo: o assunto permanece tabu e o JL não gosta, como nunca gostou, de parecer inconveniente.
Um preço a pagar
Publicado originalmente, por convite, no Delito de Opinião
A palavra vilipêndio quase desapareceu do nosso vocabulário. Chegou do latim vilipendĕre, composto de vilis, vil, e de pendĕre, considerar, estimar. Exprime uma atitude de menosprezo em relação a alguém. Quando tornada pública, deprecia a pessoa a quem se aplica. Não se limita a expor divergências, a contrariar opiniões: aplica-se ad hominem, contra a pessoa, servindo-se discricionariamente das palavras ou dos juízos que a possam diminuir perante os outros. Neste caminho, o vilipêndio é insulto e difamação, pois não existe qualquer intenção argumentativa. O objectivo é um só: apoucar, amesquinhar, retirar ao outro qualquer estatuto de dignidade. No limite, procurar que este perca todo o crédito, de modo a que se torne fácil isolá-lo, silenciá-lo, escondê-lo, fazendo com que muitas pessoas, honestas mas desavisadas, se recusem a lê-lo ou a ouvi-lo. «Ah, aquele tipo! Um sacana!».
Não se trata de uma prática recente, obviamente, mas ganhou maior destaque social a partir de Oitocentos. Associada à explosão da imprensa periódica pôde então ampliar o seu efeito, servindo muitas vezes para arruinar carreiras, motivar processos judiciais, forçar duelos com um final pouco feliz. O novo meio ajudou aliás a «impessoalizar» o vilipêndio, uma vez que o seu autor passou actuar por detrás de uma cortina, ou de uma almofada, fornecida pela publicação que acolhia os ataques pessoais. Já no século XX, os servidores dos sistemas totalitários e os sectores políticos que se presumiam detentores da verdade, fosse ela «histórica» ou «científica», recorreram de um modo sistemático a este processo, apoiados na impunidade que os sistemas lhes ofereciam e na impossibilidade de exercício do contraditório.
Na antiga União Soviética, o método foi aperfeiçoado e usado de forma contínua a partir do final da década de 1920, fundando-se nele o processo de diabolização e de apagamento de figuras que tinham sido determinantes na própria construção do poder bolchevique, como Trotsky, Radek, Zinoviev, Kamenev ou Bukarine. No Portugal de Salazar como no Chile de Pinochet, qualquer opositor era «comunista». Na Cuba do presente todo o acusado de dissídio é publicamente rotulado de «agente da CIA» ou, no mínimo, de «anti-social». E mesmo na Europa democrática o método foi recorrentemente aplicado na tentativa de isolamento e diminuição de figuras num dado momento consideradas pouco ortodoxas, como Léon Blum, George Orwell, Albert Camus, Hannah Arendt e Raymond Aron, cuja «lenda negra» ainda hoje perdura em alguns ambientes, tal o volume, a constância e o impacto das injúrias e manipulações das quais foram objecto.
Os espectros não gostam de luz
Em Kampala, duas explosões – num restaurante e num clube desportivo cheios de pessoas que queriam ver a transmissão da final do Mundial de futebol – fizeram 74 mortos e mais de 50 feridos. Os ataques foram da responsabilidade do grupo radical islâmico Al-Shabaab, próximo da Al-Qaeda, que proíbe a música, a dança e a prática desportiva aos seus membros. Como crê ser seu imperativo, quer matar para castigar e tomar o poder, e quer tomar o poder para castigar em todos os espaços que for capaz de controlar. Um dia, esperam os seus membros, para em conjunto com os seus irmãos na fé, fazer regressar o mundo inteiro ao tempo de Trevas que todas as religiões do Livro, e a religião deles também – na sua ignorância, nem isso, tão pouco, eles sabem –, colocam nos primórdios da Criação que pôs fim ao Caos. Ou seja, na emergência do que afiançam ser a intervenção divina no mundo. «Es werde Licht, und es war Licht!», «Faça-se Luz, e fez-se Luz!», são as conhecidas palavras com as quais Haydn abre, triunfal, o oratório Die Schöpfung (A Criação). Música «divina» que estes perigosos infelizes jamais ouvirão, e que, do fundo das suas tripas, se os deixassem, gostariam de apagar para todo o sempre. Ficando a falar sozinhos com os espectros, as sombras da Morte, que procuram imitar.
Haydn, A Criação – William Christie e Les Arts Florissants
[atenção particularmente ao 1’21”]
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A maior infelicidade
O autor de La Chute escreveu certa vez, em carta ao amigo Guy Dumur, que a suprema infelicidade não está em não sermos amados, mas sim em não amar. Em francês talvez soe melhor, se bem que de forma não menos dramática: «le plus grand malheur n’est pas de ne pas être aimé, mais de ne pas aimer.» Parece um paradoxo, mas percebemos que o não é quando admitimos que só quem construa expectativas pode também esperar. Ninguém incapaz de dar, de procurar, de crer mesmo sem ver, pode acolher o amor dos outros. E todos os dias conhecerá a infelicidade.
Mudando de planos
Comprei o tal número da Playboy portuguesa com o objectivo de um dia o doar, em conjunto com uma colecção completa da Gaiola Aberta e números avulsos do Mundo Ri, a uma qualquer biblioteca pública ainda não subjugada ao império do digital. Coloquei também a hipótese de fazer passar pelo scanner, para ilustrar este post, uma daquelas fotografias, pespegadas na revista, de um Cristo com aspecto de baixista dos Delfins acompanhado de uma menina «estrepitosa» (como se dizia na era da Gaiola Aberta e do Mundo Ri). Puro equívoco: a arte ostentada é medíocre e, Jesus Christ!, não vale a pena desfear um blogue que tanto me custa a polir.
A escolha
O teutónico polvo Paul, bem como um crocodilo e um panda ligeiramente menos mediáticos, escolheram a Espanha. Um periquito indonésio decidiu-se pela Holanda. Como sempre, tomarei o partido dos mais fracos.
E a luta continua
É de saudar a notícia da libertação de 52 presos políticos cubanos, mas ao mesmo tempo é lamentável que tenha sido apenas a igreja católica local a anunciar a medida, que aqueles que forem sendo libertados se vejam forçados pelo governo de Havana a sair do país (Yoani Sánchez fala claramente de «deportação»), e que muitos outros detidos por motivos políticos não sejam contemplados (167, de acordo com um relatório divulgado esta semana pela Comissão Cubana de Direitos Humanos). Já agora, uma palavra para quem insista ainda em dizer que não existem prisioneiros de consciência em Cuba, mas apenas desordeiros a quem a «legitimidade revolucionária» coloca no lugar que merecem: esta medida confirma o reconhecimento público do delito de opinião e da sua sistemática punição. E comprova a enorme falta de confiança do regime na capacidade de discernimento político do seu próprio povo. A luta de muitos cubanos corajosos continua.
1965 e depois
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Monica Zetterlund com o Bill Evans Trio (Bill aqui com Chuck Israels e Larry Bunker)
Arte e espionagem
Antony Beevor tem articulado sempre a solidez de investigação histórica com uma capacidade narrativa fluida e atraente. É este, aliás, um dos motivos do êxito de obras tão merecidamente reconhecidas como Paris Após a Libertação (escrito a meias com a mulher, Artemis Cooper), Estalinegrado, A Queda de Berlim, A Guerra Civil de Espanha e o mais recente Dia D. Saído em 2004, este O Mistério de Olga Tchekova não foge à regra, embora possa, graças em parte ao título escolhido, ser tomado pelo leitor mais distraído como obra de ficção. Na verdade, o escritor e historiador britânico oferece-nos aqui um magnífico fresco, sedutor mas sempre bem documentado, no qual se entrelaçam a história da União Soviética e a da Alemanha durante as décadas que decorreram entre as vésperas da tomada do poder pelos bolcheviques e o avanço do Exército Vermelho sobre Berlim.
Dois irmãos de ascendência russo-alemã, sobrinhos de Anton Tchekov, são as personagens nucleares, em redor das quais se desenha a trama intensa e dramática dos grandes acontecimentos do tempo, mostrando ao leitor o modo como as duas grandes experiências totalitárias do século passado partilharam importantes momentos de uma história com muito de comum. Olga Tchekova (1897-1980), instalada a partir de 1920 na Alemanha, teve aí um percurso fulgurante como actriz de cinema, tornando-se, logo após a tomada do poder pelos nazis, próxima de Hitler e de Goebbels, e mesmo um ícone do regime. O seu irmão, Lev Knipper (1898-1974), foi um antigo guarda branco arrependido que construiu uma notável reputação como compositor durante as décadas de afirmação do realismo socialista e se tornou agente especial do NKVD, com um papel provavelmente decisivo no recrutamento de Olga como «agente adormecido» dos soviéticos em plena capital do Reich. O epicentro dos acontecimentos narrados situa-se, no entanto, na União Soviética, a partir da relação da família Knipper-Tchekov com os episódios da revolução russa e da guerra civil que se lhe seguiu, com o alastramento incontrolável do terror estalinista e com a invasão nazi, sendo a «conexão alemã» uma consequência destes.
O recurso à «pequena história» e ao testemunho individual, comum nos livros de Beevor, é determinante para assegurar o interesse deste livro, permitindo ao autor contornar o pesado muro de silêncios e de omissões que foi arquitectado pelo sistema de informação soviético em redor das actividades subterrâneas de Olga e de Lev. Esta valia é ainda reforçada pelo facto de ambos pertencerem a uma destacada família da antiga intelligentsia russa, que usufruíra de um prestígio considerável durante as últimas décadas do czarismo e por isso deveria, em condições normais, ter sido varrida no decurso da revolução ou do violento processo de «construção do socialismo» Pode assim observar-se de que forma uma parte deste importante mas vulnerável sector social conseguiu sobreviver – sem dúvida através de laboriosos processos de adaptação ou de dissimulação – aos longos anos da autocracia estalinista e aos pesados constrangimentos por esta impostos aos intelectuais soviéticos. [Antony Beevor, O Mistério de Olga Tchekova. Trad. de Rita Guerra. Bertrand Editora, 280 págs. Publicado previamente na revista LER.]
A atitude

Não irão faltar os jograis prontos a desqualificar, apenas porque configura uma pequena afronta ao actual governo da nação, a atitude de Paulo Nozolino ao decidir devolver o dinheiro do Prémio da Associação Internacional de Críticos de Arte/Ministério da Cultura de 2009 em repúdio por lhe ser exigido o pagamento de IRS sobre o total da importância recebida, mas não é todos os dias que alguém do campo das artes recusa receber 10.000 euros e exige que o seu nome nem sequer conste, de futuro, da lista dos premiados. Acontece, muito simplesmente, que um prémio por mérito artístico é um prémio por mérito artístico e não um serviço prestado em troca dos respectivos emolumentos. Pelo menos para quem não avalie tudo pela óptica do contabilista. Fica registada a atitude frontal do fotógrafo.
Adenda – Podemos conhecer aqui uma explicação detalhada do próprio Paulo Nozolino.
Do Dr. Goebbels a Eminem
Acaba de sair por cá o número de Julho-Agosto da revista literária Books (estranho nome este para revista francesa, sinal definitivo de mudança). Domina-o um dossiê, «Le pouvoir de la musique», no qual se enunciam e debatem muitos dos problemas relacionados com a dimensão social e política da produção e dos consumos musicais. Recorda-se, por exemplo, que de Goebbels e Jdanov a Khomeini e aos talibãs, «o poder da música não deixou de preocupar os arautos do Estado totalitário», cujo coração balançou sempre entre o controlo e a interdição. Refere-se a propósito aquilo que Goebbels escreveu numa carta dirigida a Wilhelm Furtwängler, então maestro-titular da Orquestra Filarmónica de Berlim: «A música deve preservar a sua forma original e nenhuma inovação pode ser admitida, uma vez que ela transporta sempre consigo grandes perigos para o Estado. Sempre que as formas musicais se alteram, as leis fundamentais do Estado mudam também». Descreve-se também de que forma o estalinismo se serviu das obras de Prokofiev e de Chostakovitch para ao mesmo tempo as condicionar, ou como foi a rumba «domesticada» em Cuba pelo castrismo. Fala-se do modo como a música serviu para humanizar um pouco a vida e a morte em alguns dos campos de concentração nazis. Viaja-se até às origens do reggae e do seu potencial subversivo, esclarecendo-se ao mesmo tempo de que maneira o disco-sound serviu na década de1970 a afirmação da identidade gay e como, em menos de vinte anos, o hip-hop passou de cultura de rua a modalidade de contracultura e depois a instrumento do capitalismo global. Mas há ainda bastante mais, em dezenas de artigos nos quais por vezes se abre espaço à controvérsia.
Bibliotecas
Assinala-se hoje o Dia Mundial das Bibliotecas. Dessas que estão ali à nossa espera, disponíveis sempre que as desejamos, sempre que precisamos de algum amparo. Mas também das outras, essas que levamos connosco para todas as partes.