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Natal 2010

Nunca fui um adorador do Natal, com o seu burrinho, a sua vaquinha, e a restante parafernália pagã cercando o pequeno nazareno. Não por ter vivido muito cedo um qualquer momento de epifânica suspeição em relação a esse evento capital – bem mais forte por certo, para uma criança, do que o aflitivo instante do martírio – da religião na qual fui educado. Não por me agoniar «desde que me lembro» a dissipação, o luxo e a hipocrisia que geralmente rodeiam os espaços iluminados que lhe servem de trilho e de cenário. Afinal até houve um tempo no qual acreditei sem reservas na generosidade do Pai Natal e se me deixassem teria passado noites ao frio, emboscado num ermo escuro, para o ver passar de trenó na companhia da simpática rena Rudolfo. E atalhar logo com a minha encomenda. O desgosto não veio por aí, não. Chegou depois, pela percepção forte, sempre renovada, vivida como um calafrio, de uma ficção de paz, de compaixão o de igualdade que só consigo materializar quando me levanto da mesa da consoada, deixo o peru no sossego da travessa, e vou lá fora, em silêncio, sondar os rumos e os azimutes.

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    Rir para não pirar em Pyongyang

    Pyongyang

    Não sei se já todos vocês passaram por uma situação análoga, mas aconteceu-me uma meia dúzia de vezes. Viver uns quantos dias, por opção mal avisada, numa cidade desinteressante, sem nada de especial para fazer, sem conhecer ninguém, sem lugares bonitos para visitar, mas, por não dispor de transporte próprio, a contar pacientemente os dias que faltam para sair dali para fora. Nessas alturas, se não queremos morrer de tédio ou que nos aconteça alguma coisa má ao cérebro, o melhor que há a fazer, para além de dormir muito, de ler todos os livros que tivermos conseguido levar e de tomar notas para o romance que vinte anos antes planeámos escrever, é procurar fazer render aquilo que se encontra à nossa mão. Esquadrinhar os recantos das praças, reparar em cada centímetro dos corredores do museu local, ponderar a dimensão dos edifícios e das estátuas, tentar perceber como comunicam os naturais, e principalmente observar o que se passa no hotel que nos coube como se de uma inesgotável aventura se tratasse.

    Pois foi precisamente isto que fez Guy Delisle, o canadiano autor de livros de banda desenhada que em 2003 publicou Pyongyang. A Journey in North Korea, relato visual de uma sua estadia de trabalho, como supervisor de um estudo asiático de cinema de animação, na cidade capital do império norte-coreano da dinastia Kim. Só que, neste caso, à situação do viajante aborrecido de morte associou-se a consciência de um universo regulado pela vigilância paranóica e pela repressão. A sua forma de sobreviver no mundo sombrio ao qual se viu confinado, e que procurou descrever neste livro, colocando-o ao dispor da compreensão do leitor, foi então olhá-lo de uma forma aparentemente ingénua, fazendo com que o seu modo de observação fosse filtrado pelo relato de episódios nos quais o absurdo e a comicidade insinuam um devastador efeito crítico. Insistindo na arma do humor, que mesmo na sociedade mais repressiva do mundo serve, como em toda a parte, de factor de resistência. Segundo Delisle, uma piada com bastante êxito em Pyongyang é aquela que procura explicar por que motivo os velhos autocarros que circulam na capital, todos eles montados na distante década de 1950 por operários dos arredores de Budapeste, têm invariavelmente entre uma e cinco estrelas de cinco pontas pintadas na carroçaria: é uma por cada 5000 quilómetros percorridos sem acidentes.

    Tal como outros livros de Guy Delisle, este está à venda nas lojas da rede FNAC.

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      Para dar o exemplo

      WikiLeaks

      Já todas as perspectivas concebíveis foram enunciadas a propósito do caso WikiLeaks e dos 250.000 documentos secretos disponibilizados pela organização ao El País, ao Le Monde, à Spiegel, ao Guardian e ao New York Times – curiosamente, o que não tem sido sublinhado, todos eles situados de alguma forma à esquerda do espectro político no panorama editorial dos respectivos países –, que os tratam e vão revelando ao mundo a gonta-gotas, de acordo com critérios e objectivos que só as suas direcções conhecerão. Um dos últimos pontos de vista, e também um dos mais divertidos, é o de Fidel Castro, para quem o episódio «pôs os Estados Unidos de joelhos» mas serve também os interesses de um punhado de meios de comunicação «pró-fascistas» que recorrem a ele «para atacar os países mais revolucionários». Entretanto, as primeiras abordagens foram naturalmente bastante simples e epidérmicas, e admito que um tanto distraidamente partilhei uma delas. Não a que antecipou um certo êxtase em relação à orgia de informação que se anunciava, mas antes aquela que nos primeiros dados avançados não via nada de mais, de particularmente novo ou de excitante. É verdade que senti, e continuo a sentir, alguma desconfiança em relação ao modo demasiado simples como tudo aconteceu e em relação aos interesses das partes envolvidas (incluindo nestas o trajecto e as motivações de Assange), mas admito que talvez tenha reparado mais no fumo do carburador do que nas condições de funcionamento do motor. Regresso pois ao assunto.

      A maioria dos artigos de jornal e dos posts surgidos em blogues distribui-se simplisticamente por dois grandes campos. O daqueles que vêm no vivaço trintão australiano um novo Che, talvez menos fisicamente atraente mas não menos bravo, e entendem que tudo deve ser dito a toda a gente. Embora alguns dos que defendem este ponto de vista ressalvem a existência de Estados com governantes gloriosamente antiamericanos onde o controlo da informação possa ser legítimo. E, do outro lado, o campo dos que entendem que os governos têm todo o direito de escolher o que é informação sensível e de a furtar aos olhares públicos, punindo quem se arrogue a dar com a língua nos dentes. Contra ambos, vejo antes o que alguns comentaristas avisados também já viram: uma coisa é o direito ao secretismo, que é uma prerrogativa de todos os detentores de alguma forma de poder e que nas questões de política internacional pode em muitos casos tornar-se inevitável, mas outra é o dever de os órgãos de comunicação livre darem a conhecer aos cidadãos as informações que lhes dizem respeito e às quais têm acesso. Por outras palavras: os diplomatas e os espiões devem ter cuidado na transmissão da informação sensível com a qual trabalham, mas se o não tiverem ninguém terá de fazer o seu trabalho por eles. Salvo, naturalmente, em situações extremas, quando a circulação de informação crucial pode colocar vidas em jogo. Não é este no entanto, visivelmente, o caso da larga maioria dos telegramas já conhecidos.

      O problema central, aquele que mais nos deve inquietar, bate justamente nesta tecla. Num artigo do último número da Wired escreve-se que «uma imprensa autenticamente livre, liberta de toda a consideração nacionalista, constitui manifestamente um problema aterrorizador, tanto para os governos eleitos quanto para os tiranos.» Uns e outros, distanciados das sociedades que governam e cada vez mais habituados a mandar por decreto, pouco ou nada atendendo ao valor da opinião pública, dão de barato que a boa governação e a boa diplomacia se fazem nas antecâmaras e nos corredores, não na praça pública, destinada apenas, idealmente, ao circo das grandes consagrações. E por isso tanto os incomoda, como incomoda os seus escribas e porta-vozes, que chegue «à cozinha» uma conversa que deveria ter sido mantida na discrição dos gabinetes. Claro que a WikiLeaks não é sinónimo de transparência, nem o seu rosto mais conhecido é propriamente um mártir da liberdade e da democracia radical, mas o que nos deve inquietar não são os resultados e as ondas de choque das suas iniciativas, para as quais quem tem nas mãos o poder dispõe sempre de boas almofadas. O que preocupa é que exista quem queira silenciá-las. Para que os vulgares cidadãos não se arroguem a meter o nariz onde não são chamados. Para que estes percebam que a liberdade de expressão tem limites, fronteiras determinadas por quem pode fazê-lo que «não devem ser ultrapassadas». E para dar o exemplo.

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        Al zukkar

        sugar

        Desenganem-se as aves de rapina que insinuam existir um crescente desinteresse por parte dos governantes da nação em relação à felicidade dos seus governados. Apoiado no parecer douto da Associação Portuguesa de Distribuidores, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas acaba de nos assegurar que não irá faltar açúcar nos supermercados. Não posso deixar de me alegrar com a notícia. Afinal a metafísica de muitas famílias depende dessa «areia grossa», sharkara em sânscrito, que os árabes nos fizeram saborear como al zukkar e hoje usamos para celebrar o nascimento de Cristo e fazer disparar a glicemia. Como proclamava Álvaro de Campos, «as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.»

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          O prémio

          Capitão Haddock

          Nos meses longos e intensos que se seguiram à Revolução dos Cravos, a publicidade paga dos jornais encontrou uma invulgar fonte de receita. Muitos portugueses que por um qualquer motivo se viram acusados de terem sido agentes ou informadores da PIDE resolveram declarar em público a sua putativa boa-fé, atestando perante Deus e a Nação que jamais haviam pertencido à famigerada corporação. Um dos casos com mais impacto na época foi o do «Inspector Varatojo», que por se ter servido deste pseudónimo num programa da RTP sobre literatura policial e criminologia se tornou suspeito, como aconteceu aliás com alguns inspectores, estes dos verdadeiros, da Polícia Judiciária, das Finanças ou do Ministério da Educação, de ser agente da PIDE.

          Evoco este episódio por me ver envolvido numa situação relacionada com a nomeação para «blogger do ano» numa votação promovida pelo programa de televisão Combate de Blogs. Já aqui disse que distingo os presentes dos prémios e que me parece fazerem os segundos algum sentido quando se apoiam num colectivo e exprimem reconhecimento. Como me pareceu ser o caso, não me mexi e até estava a achar alguma piada ao lado puramente lúdico da iniciativa. Não me afligiu sequer a possibilidade longínqua de poder vir a ganhar o referido prémio. A Terceira Noite é um blogue individual, sem comentários – a média de acessos únicos diários desceu aliás quando por motivos de higiene mental acabei com eles –, escrito sem a intenção de falar para toda a gente e mais interessado em estabelecer laços com uma pequena comunidade do que em fazer doutrina e pôr os contadores a girar. Convenci-me por isso de que o número de pessoas que votariam em mim seria sempre residual. Limitei-me a tomar nota e a dormir sobre o assunto, visitando o site uma ou outra vez para acompanhar o jogo para o qual tinha sido convocado.

          Ora acontece que estando de início num honroso mas modesto lugar a meio da tabela, saltei de repente para um destacado primeiro lugar. Não pulei de alegria pois sabia que ninguém me iria dar um cheque com muitos zeros em caso de vitória. Bem pelo contrário, fiquei ligeiramente preocupado quando constatei que a esmagadora maioria dos votos tinha entrado de forma maciça algures entre as 4 e as 7 da manhã, hora na qual todos os gatos são pardos e, em Portugal, a maioria das pessoas sã de corpo e de espírito se dedica a pôr o seu sono em dia. Daí a correrem suspeitas públicas de se terem instalado «rotativas de IPs» (é quase certo, aliás) ou de eu me dedicar a pressionar cidadãos eleitores maiores e vacinados, foi um passo. Claro que tudo isto vale dois caracóis, mas admito que não gosto de ver-me envolvido em eventuais fraudes para alcançar um qualquer galardão.

          Como é evidente, as pessoas que estão na origem da votação nada têm a ver com os contornos deste episódio lamentável. Acredito por isso que compreendam ser legítimo que eu mantenha algumas suspeitas – se elas forem infundadas, tanto melhor, mas estou convencido de que o não são – e não goste de me ver atascado em terrenos pantanosos dos quais quero distância. Como diria o Almirante Pinheiro de Azevedo, nosso Capitão Haddock de carne e osso: «É uma coisa que me chateia, pá!»

          Adenda em 1/1/2011 – Espero não ter de voltar a escrever sobre este assunto (triste, embora não insignificante, dada a sua relativa visibilidade). Relato apenas um episódio que deixo à consideração de quem aqui chegar por causa dos ecos. Nas últimas horas da votação choveram mais umas chapeladas, tendo a última decorrido a segundos da meia-noite, quando seria suposto estar toda a gente a festejar a passagem do ano: nessa altura entraram mais de 200 votos, fazendo com que o meu nome cortasse a meta em primeiro e ao sprint. Como qualquer pessoa inteligente entenderá, só alguém completamente estúpido cometeria uma falcatrua tão óbvia em causa própria. Quanto aos objectivos de outrem, desconheço-os.

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            Liberdade a sério

            liberdade

            É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

            Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

            Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

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              O triunfo dos vencidos

              loser

              Escritos sobre a História não corresponde à tradução integral de On History, a colecção de 22 textos de Eric Hobsbawm editada em 1997. Falta-lhe o prefácio original, algo deslocado aliás desde o início, no qual o historiador fazia a sua profissão de fé num rígido dogmatismo materialista imediatamente contrariado pelo arrojo dos textos que se seguiam. Dos 14 ensaios que se encontram neste volume, um primeiro grupo, que reúne os mais antigos, testemunha principalmente  um certo esforço da parte do autor para responder a alguns dos dilemas colocados durante a década de 1970 aos avanços do conhecimento histórico. Um bom exemplo é «O que devem os historiadores a Karl Marx?», no qual se regista a dívida da historiografia tributável à análise marxista. Já o segundo grupo é bastante mais interessante, uma vez que integra reflexões sobre o modo como as rápidas mudanças do mundo ocorridas nas duas últimas décadas do século passado se cruzam com a História como saber e com a profissão dos que estudam as suas manifestações contemporâneas.

              Dois dos ensaios são exemplares deste género de esforço: enquanto em «O Presente como História» Hobsbawm reflecte sobre as tarefas e das dificuldades do historiador que vê acontecimentos decisivos passarem-lhe diante dos olhos, em «Poderemos escrever a História da Revolução Russa?» considera o uso de técnicas contrafactuais – não aconteceu, mas poderia ter acontecido – como processo para questionar factos mais ou menos recentes sobre os quais não é possível existir consenso. Embora editados entre nós com atraso, estes estudos, marcados sempre pela enorme erudição e pela excelente capacidade comunicativa que são próprios do autor, deixam-nos também, numa ligação com muitos dos seus temas predilectos, um aviso inspirador: apesar de, no imediato, continuarem a ser os vencedores a escrever a História, a longo prazo será a intervenção dos vencidos a torná-la verdadeiramente inteligível. Reconforta-nos admitir pelo menos essa possibilidade.

              Eric Hobsbawm, Escritos sobre a História. Relógio d’Água. Trad. de Miguel Serras Pereira. 264 págs.

                Atualidade, História

                Tédio

                tédio

                Sem ser adivinho, consigo decifrar à distância de cinquenta anos uma notícia em destaque no dia 4 de Dezembro de 2060, quando se comemorar o quadragésimo aniversário do desaparecimento do último jornal em papel e as gerações mais novas falarem todas, com alguma familiaridade, um 官话 técnico (ou mandarim simplificado) ensinado desde a pré-primária: «o Parlamento Europeu vai discutir a criação de uma nova comissão de inquérito destinada a reapreciar o caso Camarate». Se ainda for vivo, nesse dia morrerei de tédio.

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                  Futebol é isso mesmo

                  futebol de sofá

                  Não será um tema prioritário e que nesta altura difícil nos deva preocupar especialmente o facto da candidatura de Portugal e Espanha à organização do Mundial de Futebol de 2018, à qual concorriam também a Inglaterra, a Holanda/Bélgica e a Rússia, ter sido preterida em favor da última. Menos ainda nos deverá atormentar ter o Qatar ganho à Austrália, aos Estados Unidos, ao Japão e à Coreia do Sul na escolha para organização do Mundial de 2022. Mas talvez já nos deva inquietar um tanto verificar que venceram a contenda as candidaturas que menos condições estruturais ofereciam (estádios prontos, vias de comunicação funcionais, alojamento com oferta, público indiscutivelmente interessado) mas que mais obras a erguer da raiz e rios de dinheiro a gastar com elas prometiam. Estão a pensar no mesmo que eu, não é verdade?

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                    Perigoso é ter ideias perigosas

                    Danger

                    Em Ideias Perigosas para Portugal João Caraça e Gustavo Cardoso inspiraram-se numa ideia de John Brockman e acomodaram-na à procura de futuros para Portugal e para os portugueses. O projecto juntou testemunhos, originários de diferentes quadrantes disciplinares, de pessoas que se dispuseram a «pensar perigosamente». Cada argumento deveria ligar-se a «uma alteração da ordem que a ordem existente não pode conter», colocando em causa «a forma como dominamos a realidade». Todavia, do confronto entre este objectivo sedutor e o conteúdo dos 62 depoimentos publicados resulta por vezes algum desapontamento. As razões serão múltiplas mas subordinam-se a uma constatação: a de que não pode fazer-se equivaler o que é diverso ou destoante, mas exequível, ao que é verdadeiramente perigoso, arriscado, subversivo. De facto, algumas das intervenções contidas neste livro preocupam-se mais com o inventariar de lógicas viáveis do que em conceber viragens profundas ou impossíveis desejáveis. Fazem-no até de uma forma bastante prudente e calculada – logo, pouco perigosa –, como acontece com as que abordam o aperfeiçoamento dos processos administrativos, a eficácia do sistema judicial, a redução do funcionalismo público, o exercício do poder como processo técnico e a descentralização política. Aqui abundam propostas ainda aceitáveis numa lógica de consenso.

                    Mas deparamos também com projecções arrojadas cujos autores foram capazes de pensar utopicamente para lá do factível, aventurando-se por trilhos difíceis que nos fazem conjecturar sobre aquilo que não é mas poderia ou deveria ser. Como as que reclamam uma expansão sem complexos dos saberes em rede, a publicitação sistemática dos projectos fracassados, a experiência tentadora de um semestre sem governo, um amplo desarmamento das forças armadas, uma federalização europeia empreendida sem preconceitos, o alargamento dos tempos e dos meios do lazer, o repensar integral do pulsar das cidades, a refundação das universidades ou o regresso ecológico ao saber dos clássicos. Elas demonstram o valor substancial da boa ideia que presidiu à organização deste volume. A procura de outras vozes, enraizadas na experiência criadora das artes e das poéticas, numa prospecção afoita no campo das humanidades, na dimensão estruturalmente especulativa da ciência ou na intervenção inventiva da radicalidade política, filosófica e social, poderá oferecer um resultado ainda mais audacioso e incitante. O matemático Orlando Neto esclarece, no elogio do pensamento crítico do qual resulta um dos mais estimulantes textos, que «perigoso, perigoso, é implementar ideias». O exercício tem, pois, pernas para continuar o seu caminho.

                    [João Caraça e Gustavo Cardoso (Coord.), Ideias Perigosas para Portugal. Propostas que se arriscam a salvar o país. Tinta-da-China. 304 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Novembro de 2010.]

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                      A menina dança?

                      Encontrei no Arquivo da Internet Portuguesa alguns pequenos textos publicados noutros blogues e que julgava perdidos. Recupero para já este, escrito em 2005 após o encontro casual com um manual de dança de salão. Segue com dedicatória a quem tem feito constar de maneira infame que este blogue «anda demasiado sério».

                      A menina dança?

                      Uma tarde de domingo será sempre uma boa tarde para rodopiar. Por companhia Dança Comigo, um compêndio achado numa feira do livro que oferece por um singelo euro os conselhos avisados de quem se vê logo ser pessoa experiente. Anuncia o autor, o Sr. Castelló, que, ao dançar, deve «a dama» saber-se inequivocamente conduzida. E, dócil, sacarina, «sentir a mão do cavalheiro nas suas costas e na sua omoplata, com firmeza e segurança». Certo o lesto varão de que à expectante fêmea «mão frouxa e apática lhe não inspirará confiança». Deverá, porém, mostrar-se a mulher complacente para com as dificuldades que, nas viravoltas do baile, possa o acompanhante revelar. Se tal acontecer, solução haverá, esforçando-se ela por dançar «um pouco em pontas e tentar voltar o dedo grande do pé em direcção ao passo que vai dar, sempre como prolongamento do tornozelo e nunca da planta do pé». Sugere ainda o mestre que, seja qual for a situação, se revele sempre a maior compreensão «para com os cavalheiros principiantes», pois, magnânimo, assegura que «um olhar, um gesto ou uma palavra de censura podem desmoralizar completamente o cavalheiro inseguro», sendo certo que, a partir de tão fatídico momento, este «não mais consiga acertar durante o resto da música». Quase duzentas páginas, suadas e vertiginosas, de contributo editorial para a compreensão entre os povos. Igualmente capazes de se revelarem uma fonte de aflições e de eventuais entorses. Ou de sucesso no amor.

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                        Fogo-de-artifício

                        WikiLeaks

                        Kim Jong-Il «é um gajo com aspecto flácido» e «com traumas físicos e psíquicos». Silvio Berlusconi «é irresponsável, vaidoso e ineficaz como um líder europeu moderno», mostrando «um gosto pronunciado pelas festas». Dmitri Medvedev «serve de Robin ao Batman Putin», sendo este «o macho dominante». Nicolas Sarkozy «tem a pele fina» e «um estilo pessoal muito susceptível e autoritário». Muamar Kadafi «usa botox e é um verdadeiro hipocondríaco», trazendo sempre consigo «uma enfermeira ucraniana de peito bastante avantajado». Angela Merkel é uma pessoa que «evita correr riscos», a quem «falta muitas vezes a imaginação». E Robert Mugabe «um homem maluco». Mais: Condoleeza Rice e Hilary Clinton reforçaram as iniciativas de espionagem da Casa Branca, os sunitas sauditas odeiam os xiitas iranianos, o primeiro-ministro turco tem uma agenda islamista escondida e a China andou a sabotar o Google e várias redes de computadores. A sério? Não me digam!

                        Pouco mais parece ser do que conversa para consumidores de headlines e de notícias sensacionalistas, ou então de tema a explorar por bloggers com falta de assunto, a informação que a WikiLeaks acaba de libertar baseada em informações trocadas entre 2006 e 2009 pelos serviços diplomáticos e militares americanos espalhados pelo planeta. Os jornais rejubilam com as «grandes notícias», anunciando que «EUA espiam líderes estrangeiros» ou que os seus serviços secretos os «ridicularizam» comentando de forma demasiada directa, por vezes chistosa ou brutal, o perfil pessoal e político deste ou daquele. Perante tanta banalidade, vista e revista por quem conheça uma ponta da história da espionagem e da actividade diplomática que decorre longe dos microfones e das objectivas, podem fazer-se umas quantas perguntas tolas. Por exemplo: seria então suposto os EUA não possuírem um serviço de informações activo e diligente associado à actividade diplomática? não deveria este fazer relatórios sobre as personalidades e os comportamentos das pessoas que tomam as decisões centrais em cada país? encontra-se por ali informação que espante alguém atento à política internacional e às suas figuras mais destacadas? Tente-se perceber os motivos de uma admiração tão deslocada seguindo, por exemplo, os dossiês editados no El País, no Le Monde e no New York Times. Por mim, que já andei por lá a esquadrinhar, ainda não deparei com uma só informação completamente nova, um dado realmente perturbante ou sequer uma fofoquice verdadeiramente decente. A quem servirá então (ou para que servirá) todo este festival de fogo-de-artifício com alguns pormenores cómicos?

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                          Sussurros

                          estalinismo real

                          Ainda vou só a meio das 690 páginas de texto – com mais 50 de notas – mas já estou em condições de dizer que Susssuros. A Vida Privada na Rússia de Estaline, do historiador britânico Orlando Figes, é um dos meus grandes livros de 2010. Acabado de publicar pela Alhêteia e resultado de um projecto de investigação em larga escala maioritariamente apoiado no testemunho oral de sobreviventes e dos seus descendentes, não se trata de «mais um» livro sobre Estaline e o regime soviético. Analisa principalmente, com grande detalhe, «a maneira como o estalinismo se instalou na mente e nas emoções das pessoas, afectando-lhes os valores e as relações». Fala mais de integração, de aceitação, do que de luta, perseguição e resistência. E é também um excelente manual para se perceber a forma como o ascetismo «romântico» e o colectivismo bolcheviques, construídos durante os anos da luta contra o czarismo e da guerra civil que se seguiu a 1917, se transformaram em rígida norma de vida aplicada ao conjunto da sociedade. Funcionando também como um paradigma que ecoou, ao longo do século XX e à escala planetária, na gestão de outras experiências e na organização interna de praticamente todos os partidos e movimentos de matriz marxista-leninista. Não se trata de um estudo de natureza analítica, mas sim de um repositório de experiências pessoais que se lê com a mesma voracidade, a mesma tensão, a mesma dor e o mesmo prazer com os quais habitualmente acompanhamos um grande épico.

                            História, Memória

                            Maremoto

                            Franco e Millán-Astray

                            Na crónica de hoje da Babelia, Antonio Muñoz Molina evoca as excursões provincianas a Madrid que sempre reservavam um dia para visitar o Escorial e o Vale dos Caídos. Lembra que fez essa peregrinação quando tinha 14 anos, ido do sul andaluz na companhia dos avós, comentando que, à excepção dos franquistas exaltados, então as pessoas já só cumpriam o ritual «porque era o que todos faziam quando iam a Madrid, e porque uma parte da vida consistia misteriosamente em cansar-se calcorreando espaços monumentais que pertenciam ao vago mundo do histórico». Muitos portugueses de passagem por terras de Castela faziam o mesmo – não sei se ainda o fazem – e, sim, eu fui também um deles. Mantenho na memória a percepção que tive daqueles espaços e as impressões que troquei, porque já tinha idade para isso, com outros romeiros portugueses, partilhando a convicção de que aquela monstruosidade arquitectónica separava com clareza a brutalidade asfixiante da monarquia filipina e do franquismo da mesquinhez sórdida do salazarismo, sem rasgo para erguer um santuário ao seu próprio destino. Por isso os nossos vizinhos podem perpetuar naquelas horríveis proclamações em pedra, pedagogicamente, a memória de um passado de ódio e de força bruta do qual a democracia os libertou. E por isso elas devem ser preservadas. No que nos diz respeito, quase nada temos para convencer as gerações mais recentes de que o «salazarismo real» existiu e que podemos tocá-lo com as mãos para garantir que existiu mesmo. Se não contarmos, claro, com as paredes de reboco da Capelinha das Aparições ou do Portugal dos Pequenitos, já que até as prisões do regime permanecem esquecidas e maltratadas. É bem mais difícil garantir que o demónio passou por aqui se dele não pudermos exibir a pata cascuda ou os pontiagudos cornos.

                              Apontamentos, História, Memória, Olhares

                              Ontem soube a pouco

                              Povo unido

                              Uma vez mais os números resvalam. Centrais sindicais e governo avançam com dados completamente divergentes sobre a adesão à Greve Geral, deixando no ar a impressão de esta ter valido mais por aquilo que representou para cada um dos lados do que por aquilo que inequivocamente deveria ter mostrado à opinião pública nacional e internacional.

                              Uma greve desta natureza só teria um real impacto e forçaria o governo a repensar políticas e decisões se fosse acompanhada de campanhas de mobilização intensas, massivas e bem sonoras. Mais voltadas para os espaços públicos (ruas, bairros, mercados, estádios, centros comerciais, redes sociais) do que para as conferências de imprensa e os placards dos sindicatos. Mais dirigidas ao cidadão comum do que aos núcleos activos na administração pública e nas empresas, que apesar de um trabalho apreciável muitas vezes se remetem a uma actuação corporativa. Só teria verdadeiro efeito se tivesse sido acompanhada de demonstrações públicas unitárias e ousadas (desfiles, buzinões, meetings, campanhas de desobediência cívica), mais apontadas às lógicas do sistema do que aos seus efeitos perversos, momentaneamente insuperáveis. Só teria vencido se tivesse sido capaz de uma dinâmica transnacional, partilhada com organizações sindicais e políticas de outros países, já que aquilo que está a acontecer tem também uma dimensão que ultrapassa todas as fronteiras. O combate contra a selvajaria dos mercados financeiros, contra o alargamento das desigualdades e pela recuperação do Estado social não é apenas nosso; procurando parecê-lo acaba por dar o flanco.

                              No entanto, para que tudo isto seja possível são precisos movimentos sociais dinâmicos e organizações de trabalhadores mais abertas e desburocratizadas, atentas à mudança do mundo e à passagem das gerações. Não organizações dirigistas e entrincheiradas, de natureza algo proteccionista, com estratégias «de classe» bem definidas ou que actuam como prolongamento de agendas políticas partidárias. Para lá chegarmos existe, claro, um longo caminho a percorrer, não sendo líquido que ele não venha a conter recuos. Entretanto vai-se fazendo o que é possível fazer. A Greve Geral devia ter sido convocada e foi importante, mas que não se venha agora com a lengalenga da «grande vitória» se o outro lado não recuou nem vai recuar um milímetro. Porque não se sentiu realmente abalado.

                                Atualidade, Opinião