Sydney, a outra

Assusta-me a ideia de viajar até à Grande Ilha: enorme a distância, longas horas encapsulado num Boeing, a companhia de sujeitos que trazem tatuado o crime e o degredo. Resisto também à destruição das ideias-feitas. Já me chega Chatwin, no Canto Nómada (The Songlines), descrevendo aquele aborígene, sentado num bar esconso algures perto de Alice Springs, que fazia imitações bastante convincentes de Bob Marley, Jimmy Hendrix e Frank Zappa. Quero preservar os clichés: as avionetas sobre o deserto, o vulto longínquo de alguns cangurús, boomerangs em perigoso voo rasante, sombreiros à Crocodilo Dundee, jogadores de rugby com os bícepes de um Mike Tyson ruivo, e, claro, o edifício da Ópera concebido por um dinamarquês um tanto dado a visões. 30 Dias em Sydney, de Peter Carey (Asa), transporta-me, porém, para qualquer coisa de estranhamente diverso. As «envolventes falésias amarelas», as «ondas lentas, alongadas», o «deslumbrante tom azul com laivos róseos a despontar da espuma na rebentação». Reflectindo a cidade visível de aço, vidro e asfalto, sinal de futuro sob o efeito solar.

    Devaneios

    Intriga

    intriga

    Não fixei o momento no qual pela primeira vez associei a palavra intrigante a algo de raro e intangível. Ocorreu algures, na fase da descoberta da literatura infanto-juvenil, com a sua lista de heróis e de heroínas tão improváveis quanto excitantes e de indecifráveis biografias. Intriga pode ser perfídia, cilada, ou, mais prosaicamente, a secreta maquinação que visa perturbar alguém ou fazer ruir alguma coisa que a ordem natural deveria ter conservado de pé. Invoca também a redução ao essencial das peripécias que integram um determinado enredo. É lida porém de uma forma complexa sempre que se refere a certos estereótipos. Homem intrigante é então aquele de quem se não conhece princípio ou profissão. Poderá ser um ladrão, um agente duplo ou mesmo um escroque, ainda que com maneiras de dandy. Ou um rebelde que esconde a fonte da sua rebeldia e os inimagináveis métodos que utiliza. Alguém que oculta, que cala e lança olhares rápidos e perscrutadores, falando o mínimo possível, agindo apenas quando estritamente necessário, escondendo as emoções. Um Johnny Ringo caminhando sobre a poeira a fixar o horizonte.

    A mulher intrigante, essa esconde-se de um modo ainda mais perfeito, associada a um erotismo adornado de mistério, propiciador do descaminho e da interferência, jogado na área da sombra, transformando em seres errantes, definitivamente perturbados, os homens, ou as outras mulheres, que lhe notam a silhueta. Se, em L’homme qui aimait les femmes, Bertrand Morane se deixava seduzir por um qualquer rabo de saia que aparecesse no raio do olhar, jamais escolhendo uma figura exemplar, aqui a fêmea intrigante não pode, de forma alguma, ser «uma qualquer». É antes aquela que desencadeia um efeito especial, de acentuada intriga, reconhecível de imediato na paisagem dos que a rodeiam.

    Para se tornar intrigante não precisa fazer muito. Basta-lhe sussurrar. Olhar de forma obstinada e insinuante, embora distraída. Usar uma boina ou um lenço, luvas e brocados no inverno, brincos mínimos e deslumbrantes, anéis, um anoraque colorido. Caminhar deslizando, sem deixar ouvir os passos, não permitindo jamais que se lhe conceba o corpo, mantendo na expressão uma ingenuidade assumidamente falsa e um desinteresse que jamais chega a ser verdadeiro. Pode ser uma activista, possuir nome eslavo ou um sobrenome italiano, escrever em jornais, participar em conspirações, defender a acção directa, a revolução social, ou mesmo, sob certas condições, o terror. Mas fazê-lo no lugar próprio, escondendo em público as dúvidas, aparentando fragilidade e distância, guardando o calor e a decisão para esse tempo algures, esse lugar inexacto no qual se desenha verdadeiramente a intriga que a define.

      Olhares

      (Como lá fora)

      Gemini
      Esgotado por outra aventura online, cheguei tarde ao planeta dos blogues, numa altura em que parte dos seus primeiros batedores estavam já a abandoná-lo. Depois fui saindo e entrando, a solo ou em companhia, convivendo sistematicamente com a dificuldade em combinar o registo pessoal, diarístico e minimamente escorreito, com uma fala destinada a leitores capazes de partilharem dúvidas, indignações, crises de ideias e excesssos de certezas. Coisa que jamais poderia fazer num meio tradicional, cuja redacção, e respectivos leitores, pouco interessados estariam num registo flutuante, quase sempre superficial, sem trabalho de revisão, empenhado em divagações destinadas ao próprio autor ou a alguma dessas «almas gémeas passageiras» que passam num bater de asas. Admiro pois os operários dos blogues que têm sido capazes de atravessar todas as estações, ultrapassando desânimos, ilusões e servidores em baixo, esforçando-se por permancerem activos, calorosos, inesperados. Irão todos para o céu, tenho a certeza.

        Etc.

        Mater Dolorosa

        peregrinos
        Perto de 400 mil peregrinos em Fátima, que a RTP arredonda sem problemas para meio milhão (o que serão afinal, perante Ele, a Eternidade e a Salvação, 100 mil e tal almas a mais ou a menos?). É tempo de crise e de instabilidade, a gasolina sobe que nem uma perdida, o poder de compra diminui todos os dias, as reformas apertam, há desemprego a mais, cartas registadas com multas de trânsito para pagar, fumos de um terrorismo global, doenças esquisitas, a crise da agricultura, o escândalo dos selos, guerras em directo, e, entre tanta desgraça, Nossa Senhora de Fátima prefigura-se sempre como um investimento seguro, recurso dos aflitos, padroeira do destino pátrio e, ao mesmo tempo, amável protectora de cada um.

        Compreende-se, pois, que um grupo de Lamego tenha declarado encontrar-se no «altar do mundo» para que o governo «não acabe com a Maternidade» lá na sua terra. Ou que jovens a tresandar a feromonas declarem, entre risadas, estarem ali para cantarem «a alegria da fé». Como se entende a quantidade de pessoas saídas de um país profundo, homens de colete, mulheres de lenço à cabeça, desempregados, vultos sem glamour que não aparecem nas novelas, nem se vêem nos centros comerciais ou nas praias da moda, que não viajam em comboios de alta velocidade e se não encontram sequer nas auto-estradas, que não desfilam em manifestações, mas que falam baixinho nas salas de espera dos hospitais, que conduzem carroças aos sábados à tarde por estradas secundárias, que andam de camioneta e a pé, que fazem férias fechadas em casa e não podem prever o que lhes irá acontecer amanhã. É justo, sim, que, solidárias num Ave Maria em uníssono erguido aos céus, se reúnam em Fátima, pés doridos, joelhos em ferida, lágrimas à vista, lenços brancos a acenar. E a certeza na protecção infinita de um sorriso maternal. Pouco importa que ele lhe apareça moldado em porcelana, pairando sobre uma nuvem de pétalas de flores, notas de 10 euros e garrafinhas de água-benta. Tem sido mais ou menos assim desde 1917.

          Apontamentos

          Bonsoir tristesse

          melancolia
          Melancholia, Claus Gregers (1989)

          Lê-se Du Contre-Pouvoir, de M. Benasayag e D. Sztulwark, com um sentimento de revolta: «Vivemos uma época profundamente marcada pela tristeza, que não é apenas a tristeza das lágrimas, mas que é, principalmente, a da impotência». Percebendo como a noção contemporânea da complexidade da vida se une à aceitação defensiva, sob a forma de um tristeza social e individual, de que não possuímos forma outra de a viver que não seja aceitando, submissos, «a ordem e a disciplina da sobrevivência». Respeitando, insulados nos nossos pequenos mundos, cegos e tristes, infinitamente tristes, as formas de tirania que nos cercam, e que justificam essa servil tristeza. Contra ela, criadora, apenas a alegria difícil da resistência.

            Atualidade, Cidades, Democracia

            Vozes

            A fala de algumas línguas, sobretudo a daquelas que não entendemos, define sempre uma harmonia, uma emoção peculiar, que somos incapazes de representar na nossa própria língua. Ouvi certa vez o palestiniano Abdel Karim Sabawi ditar em árabe um dos seus poemas. Não entendi uma só palavra, mas vi estender-se pelo ar, dois passos à minha frente, uma espiral única de vozes e de inequívocos ritmos. A língua italiana, novilatina e por isso mais próxima, essencialmente calorosa, salienta também esse efeito, sobretudo quando pronunciada num dos seus incompreensíveis dialectos. Mas nada de tão raro quanto o grego falado aos seus ignaros. Simultaneamente indecifrável e materno, próximo e fugidio, parece revelar em poucas palavras a bruma azulada, o cheiro a flores cortadas, um resvalar de risos.

              Devaneios, Poesia

              Coisa de argentinos?

              Ainda o Che
              Há poucos meses, a partir de um apontamento de Valter Hugo Mãe no blogue Da Literatura, falou-se do «mito de Che Guevara». Volto ao assunto por causa da edição nacional de Che Guevara. Do mito ao homem. Livro escrito por outro argentino, Miguel Benasayag, de passado guerrilheiro, hoje psicanalista e filósofo, co-autor do manifesto da Red de Resistencia Alternativa, que oferece uma reflexão estimulante sobre o lugar histórico e simbólico ocupado pela figura e pelas iniciativas do memorável Ernesto.

              Não se trata de uma biografia – para isso temos a excelente obra de Pierre Kalfon, e, um pouco mais comprometida, a de Paco Ignacio Taibo II – nem de mais uma daquelas hagiografias que o governo de Havana faculta aos turistas ou que qualquer um de nós pode comprar na festa do Avante! Também não procura responder ao perverso fenómeno de moda que, entre t-shirts, posters, tatuagens e baralhos de cartas, volta a inscrever-se, quase universalmente, em praças, desfiles e residências de estudantes. Trata-se antes de uma reflexão, pessoal e positiva, sobre o guevarismo que sobreviveu a Guevara, tratando a personagem do Che «simultaneamente enquanto homem e enquanto imagem, ou seja, na sua dimensão mítica».

              Partindo do princípio segundo o qual o guevarismo foi, desde o início, «uma maneira muito especial de fazer política, e de desenvolver o laço social porque (…) foi estabelecido sobre o princípio do contra-poder», este livro recupera, mas ao mesmo tempo supera, os episódios meramente biográficos do médico-guerrilheiro. Tudo isto sempre dentro de um território, e Banasayag vinca-o com especial cuidado, povoado pelos que desejam escapar «a este mundo do economicismo e das sociedades de disciplina onde reinam as paixões tristes», mas que integra tanto «a crítica severa da sociedade disciplinada e ordenada composta por indivíduos isolados e egoístas» como a oposição feroz «ao colectivismo, essa outra modalidade social, também construída e ordenada por indivíduos bem disciplinados». Aqui residiria aliás, em correlação com a discordância perante a dependência do modelo soviético, a origem do historicamente inegável – embora sistematicamente negado – distanciamento de Ernesto Guevara em relação às escolhas do seu companheiro de jornada Fidel Castro.

              Servindo-se de uma abordagem do mundo contemporâneo e dos seus problemas, da nova realidade comunicacional, dos reequilíbrios construídos em tempos de pós-comunismo, o volume procura outorgar ao Che a dimensão de ser de excepção (mais herói do que santo, sem dúvida, mas essencialmente humano), o qual, para o bem e para o mal, teria consubstanciado fisicamente, e materializado no campo simbólico, a resistência – sem meta-históricas metas históricas – a todos os regimes e sociedades uniformes, previsíveis, baços e carcerários. Uma resistência consumada «sem despertar sonhos de escravos cheios de ressentimento, nem fantasias de poder, nem nenhuma certeza quanto a futuros paradisíacos». Resistência que resiste «sem tristeza porque, como dizia Deleuze, no fim de contas, a tristeza é sempre reaccionária».

              Um Guevara, pois, que «apenas» enunciou, mais do que um caminho, uma atitude para a ligação permanentemente subversiva e criadora, sem modelos a copiar, com o quotidiano e com os outros. Um Guevara humano, falível, responsável por sacanices tramadas, como todos os humanos. Insatisfeito, sempre, tal como todos nós podemos ser. Exemplo apenas porque estímulo. E pouco mais. Talvez por isto, há pouco tempo, uma inscrição anónima anunciava numa parede de Buenos Aires: «Tenho no meu quarto um poster de cada um de vocês. O Che»

              Três pequenas notas mais sobre aquilo que VHM escreveu:

              1) Uma banalidade sobre a crítica da violência: a guerra de guerrilha possui, como todas as guerras, os seus horrores e também a sua legitimidade. A execução de alguém, mesmo num acto de guerra, é sempre um gesto extremo, terrível. Mas o gesto guerrilheiro jamais se fez com uma flor na mão. Foi cruel e assassino, sim senhor, como brutais e impiedosas foram as ditaduras que enfrentou.

              2) Sobre a homofobia do Che: Ernesto era um argentino típico dos anos 1950, mulherengo, sedutor e dançarino, muy macho obviamente. Culturalmente resistente a uma sexualidade que se refugiava ainda nos mais impenetráveis subterrâneos. Assim a olhavam a esquerda e a direita, na altura estruturalmente homofóbicas. Outros tempos, felizmente.

              3) O documentário fílmico para o qual VHM deixou um link centra-se em testemunhos de gusanos – imigrados cubanos nos EUA, marcados por um anticomunismo à Joseph McCarthy que tem sido utilizado para ampliar a base de simpatia da qual continuam a dispor Castro e o seu regime – e que serviram, alguns deles de armas na mão, o governo corrupto e repressivo de Batista. Tal não retirará alguma credibilidade aos seus comentários rancorosos?

                História

                Campanha anti-Alegre

                Distingo Manuel Alegre – por muito que dele se possa discordar, e eu discordo em muitas coisas, um dos respeitáveis fundadores da democracia portuguesa – do movimento que à sua volta foi criado durante as últimas presidenciais. A maioria do PS, subjugada até ao pescoço pelos exercícios de aparelho, pelas perigosas ligações de influência, pela mais abjecta despolitização, não percebeu, ou prefere não perceber, nada do que se passou, continuando entretanto, obstinadamente, a fazer frente a ambos. Já os ataques do Bloco de Esquerda, há dias intensificados, possuem uma natureza diferente. Eles reflectem, de alguma maneira, a distância que se tem vindo a estabelecer entre o Bloco original, o «de todas as cores», e aquele que agora conhecemos. Para o primeiro, que de certa maneira já pertence ao passado, o milhão e tal de pessoas, imersas em nebulosas mas sinceras expectativas, que apoiou Alegre, seria um aliado natural, de capacidades dinâmicas a explorar na busca de «outra política» face à gestão neoliberal desenvolvimentista promovida pelo «grande centro». Para o actual BE, que concentra a sua respeitável actividade nas laboriosas iniciativas parlamentares e em campanhas eleitorais personalizadas, ele parece-se mais com um concorrente no terreno. Julgo pois haver aqui um problema qualquer de comunicação. Ou então existem escolhas que tornam esta cada vez mais difícil.

                  Opinião

                  «Às vezes, a realidade é mais estranha do que a ficção»

                  Dormia a sono solto na manhã do dia do trabalhador. O bairro periférico parecia dormir também. Ao longe, quase deserta, a via rápida procurava ainda acordar. Como os velhos dirigentes sindicais, que à mesma hora molhavam o pão no café com leite, antes de se prepararem para mais um desfile. De repente, o telefone. Do outro lado uma voz de mulher tentava convencê-lo a comprar a crédito um robô capaz de limpar o pó, de aspirar, de cortar a relva, de fazer bricolage. Suspeitou que fosse uma mentira do Primeiro de Maio. Disse qualquer coisa, desligou.

                    Devaneios

                    I de emancipação


                    A passagem doo 150º aniversário sobre o nascimento de Sigmund Freud tem servido a publicação de estudos, sínteses, polémicas ou entrevistas sobre a origem e os sentidos da psicanálise. Pelo menos nas partes do mundo nas quais a sua obra não é já objecto de um tabu científico. Nada de particularmente novo, numa área do conhecimento que, desde o seu nascimento, se transformou em terreno de intrincados debates e duras controvérsias. Não deixa, no entanto, de parecer algo estranho que, tantos anos após a saída de A Interpretação dos Sonhos (1899), os preconceitos, mal-entendidos e simplificações acerca do sentido das hipóteses e das descobertas freudianas permaneçam tão vivos. É assim, por exemplo, que num dossiê recém-publicado pela revista Visão, diversas personalidades lusas revelem esse lado não fundamentado, marcado até por toques de uma agressividade contida, de uma abordagem preconceituosa da «ciência do divã». Por outro lado, muitos dos seus defensores assumem repetidamente posições de um apaixonado parti pris, como tal quase sempre com um envolvimento pouco crítico.

                    Aquilo que se pode dizer é que a obra de Freud trouxe consigo um dos três grandes «Is» por intermédio dos quais, na viragem do século XIX para o XX, o edifício racionalista e cientificista, que a Europa reconhecera como dominador nos duzentos anos anteriores, começou a ser abalado. Ao instinto de Nietzsche e à intuição de Bergson, Freud juntou a integração de um novo continente humano – sediado no inconsciente – que contribuiu em larga escala para a reavaliação da subjectividade e para a abertura de novas possibilidades no domínio da criação. «Is» que integram hoje o património cultural da humanidade e são elementos centrais da emancipação do sujeito e da afirmação da liberdade individual.

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                      Louvor da aceitação

                      António Vieira, lisboeta e baiano, jesuíta por via do «estalo» (palavra sua) que sofreu aos 15 anos de idade, colocava a rigorosa e imutável planificação dos destinos, determinada pela Providência que d’Ele emanava, muito acima de qualquer possibilidade de refutação. Nada de particularmente notável para o seu mundo de fés temidas e inquebrantáveis, como para um homem com as funções que foi exercendo ao longo da vida. Fazia-o porém, como é público, com uma peculiar desenvoltura. Ei-lo no ano de 1654, em plena forma, durante o Sermão de Santo António que pregou no convento nordestino das Mercês, sito em S. Luís do Maranhão: «Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.»

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                        História em diminuendo

                        PREC em PT
                        O livro de Adelino Gomes e de José Pedro Castanheira editado pelo Público (Os Dias Loucos do PREC) define uma útil e documentada viagem pela memória de um período tórrido da nossa história recente. A arrumar na estante ao jeito da mão, ao lado de O Pulsar da Revolução, a cronologia lançada há alguns anos pelo Centro de Documentação 25 de Abril, transformando-se rapidamente em mais uma obra de consulta para historiadores, jornalistas, políticos profissionais e amadores, activistas de diferentes causas e público em geral. Notam-se, entretanto, algumas lacunas, particularmente no que respeita às dimensões cultural, social, ética, e até estética, do Processo Revolucionário Em Curso no imediato pós-Abril. Sem a integração destes factores, para o leitor que o não viveu ou que dele conserva ténue lembrança, o PREC poderá parecer, muito erradamente, apenas uma sucessão de golpes, contragolpes, arranjos palacianos, greves, barricadas, sobrevoos, gritaria e tiros para o ar. Tratou-se, afinal, de uma escolha dos autores. Aquilo que definitivamente não me agrada é, porém, o prefácio de Gonçalo M. Tavares. Nele levantam-se genericamente algumas ideias interessantes para que o leitor comum possa perceber a morfologia de uma revolução e aceite os seus indispensáveis exageros. Mas GMT desenvolve também algumas reflexões, um tanto lacunares, acerca do modo como o conhecimento histórico encararia o carácter dinâmico da intervenção individual e do episódio, assim como a dimensão passional de determinados gestos ou manifestações. Descreve então a História – que escreve com maiúscula para, parece-me, de alguma forma a depreciar – «como uma espécie de ciência que considera as excitações individuais e colectivas focos de perturbação da verdade dos factos», olhando tais excitações «como aquilo que as ciências clássicas classificam de erros».

                        É preciso dizer que, após a superação da fobia do acontecimento produzida pela primeira vaga das escola dos Annales e da intervenção da influência estruturalista que dominou as décadas de 1960-70, a História, enquanto saber preocupado com as leituras presentes do passado, superou esse handicap. Para qualquer historiador minimamente actualizado e aberto às crescentes possibilidades do seu métier, tal questão deixou simplesmente de se colocar. O regresso triunfante da biografia e os novos caminhos percorridos pela história política demonstram-no constantemente. Claro que existe ainda, neste campo, quem pense, escreva e diga o mesmo que pensava, escrevia e dizia há trinta anos, desvalorizando, por exemplo, o papel do olhar de desafio de Salgueiro Maia, ampliado aos olhos do apontador da Chaimite, o qual, por ele convencido, resolveu desobedecer às ordens do seu comandante e não disparar sobre os revoltosos de Abril, possibilitando a sua vitória. Mas contra isso nada se pode fazer se não aceitar criticamente a escolha. GMT é um excelente escritor, como todos sabemos, mas poderia ter a percepção de que a atitude que menciona é própria de uma espécie em vias de extinção. Evitando que fique a pairar a definição lapidar, desalmada e bafienta dessa História-saber que muitos leitores tomarão erradamente por essencial.

                          História

                          Fulgor e sombra

                          playing
                          Dois dias e meio no CCB, preenchidos por 115 concertos onde é possível escutar A Harmonia das Nações. Bach, Couperin, Handel, Purcell, Rameau, Scarlatti, Telleman, Vivaldi, Soler, ou Francisco António de Almeida e Carlos Seixas, numa embriaguez permanente de notas e de timbres. Um fulgor barroco – associado, por Luigi Russo, a «crise de valores, tensão so­cio-politica, instabilidade, evasão onírica, mag­nificência, crueldade, sentido do efémero, osten­tação, hipocrisia, voyeurismo, preciosismo, angús­tia, extravagância, gosto do horrível, hipérbole, utopia, artifício, luxúria, thanatos» – em tempos sombrios que se diriam mais de cantochão.

                            Apontamentos

                            De espaldas

                            Lola
                            Espanholada‘, dizem os melhores dicionários da língua mátria, é ‘fanfarronice‘, ‘jactância‘. É o ‘exagero‘, a ‘hipérbole‘, aquilo que perturba, pelo ruído ou pelo excesso, a sensibilidade de um povo de costumes pouco ruidosos. Como por ‘espanholar‘ se entende esse pícaro «gabar-se de façanhas pouco verosímeis». Gente como nós, portugueses suaves, treinados desde o ovo «a controlar as emoções, a cuidar das maneiras» (assim se nos pudicamente refere Federico J. González, autor de umas Reflexões de um Espanhol em Portugal), não poderia ter produzido um Cervantes, um Goya, uma Dolores Ibarruri, um Cordobés, uma Lola Flores, um Almodóvar. Mesmo uma Isabel Pantoja. Ou, valha-nos Deus, um Zapatero. E jamais deixa de estranhar as suas inquietantes espanholadas.

                              Apontamentos

                              Evasões

                              Uma semi-surpresa tive-a ao ler, há alguns meses atrás, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, de Umberto Eco. Um deambular autobiográfico, na forma de romance, pelas mais antigas leituras e experiências musicais das quais o autor é capaz de se lembrar. Reparei então que é possível detectar uma tradição comum à literatura infanto-juvenil da Itália dos anos 40 e à do Portugal dos inícios da década de 1960. Os heróis foram quase os mesmos, quase os mesmos os cenários de aventura e os mapas do exotismo, semelhantes os propósitos de evasão projectados, no interior de sociedades marcadas por um profundo conformismo, sobre territórios distantes, tempos recuados, destinos improváveis. Os vultos de Fantomas e de Buffalo Bill, de Arsène Lupin e do Corsário Negro, de Sandokan e de Rocambole («hoje em Madrid, amanhã em São Petersburgo, mas ainda ontem em Pequim»), andaram pendurados em idênticos cordéis nas travessas de Milão e de Lisboa, como nos de Marselha ou Barcelona. Experiências-reminiscências para sucessivas gerações de rapazes. Ou, assim se dizia outrora, de umas quantas «marias-rapaz».

                                Olhares

                                Insolência

                                antevisão de pernas

                                Os poetas machos da geração que me antecedeu
                                falavam obsessivamente das pernas das mulheres.
                                Viviam num universo móvel onde elas as pernas
                                prefiguravam o indizível distante que as mãos,
                                tangentes, iriam procurar e querer depois beijar.
                                Habitavam o lugar distante lá onde todo o desejo
                                perfazia em privado a intenção das linhas ondulantes.

                                Os da minha, que eu saiba procuraram o corpo
                                erotismo táctil ignorante de pernas porém ágil em pêlos
                                odores líquidos nos lugares que não era preciso vigiar.
                                Saíam de manhã as mãos abertas averiguando o vento
                                preliminar de encontros indagados sob as árvores
                                ou em camas cedidas nuas por companheiros solitários.
                                Sabem da urgência diurna que antecede o silêncio.

                                  Etc., Poesia

                                  A eternidade a 750 graus Celsius

                                  Em declarações à TSF o padre Vaz Pinto considerou normal que o Vaticano tenha decidido agora passar a incluir a leitura de jornais, a navegação na Internet e a televisão em excesso como pecados que têm de ser relatados em confissão auricular. Não tanto pelo seu «uso», admite, mas antes pelo imoderado «abuso» do qual serão constante objecto (aceitemos ainda que possa existir um abuso moderado de tonalidade apenas semi-concupiscente), o qual fará com que se deixem de lado «coisas mais importantes: a mulher, os filhos, o desporto, a cultura, o serviço social e por aí fora». Não sei ao que se refere VP quando fala de um certo «e por aí fora». Ou se as mulheres que abandonam os homens para se passearem por pecaminosas mailboxes, ou pelo universo aviltante dos blogues, sofrerão de idêntica maldição. Por mim, que recomendo insistentemente aos meus alunos a leitura de jornais, e lhes aponto inúmeras vezes, como material de referência documental, programas televisivos e sites da Internet, estarei inapelavelmente condenado a viver a eternidade nos tórridos domínios do decaído Belzebu.

                                  Depois de escrito – Não terei outras respostas a estas questões senão aquelas que me possam ser sopradas ao ouvido pelo Deus dos romanos, mas será que tais pecados terão efeitos retroactivos? e incluirão atitudes profundamente anti-sociais como passar tardes inteiras no cinema, a ler romances com mais de 500 páginas, a ouvir um ciclo inteiro de óperas de Wagner ou a olhar para determinado pormenor de um quadro de Vermeer? e afectarão eles os milhões de idosos que têm por única companhia a televisão ou um exemplar gasto pelo uso do jornal local? e serão abrangidos os jornais desportivos? e também as longuíssimas bençãos urbi et orbi transmitidas por diversos canais em simultâneo? e a Missa do Galo? e o Preço Certo em Euros?

                                    Opinião