Platão acabrunhado

As nossas noites terão a partir de hoje menos um planeta. Como dizia um jornalista da RTP, Plutão «foi despromovido à divisão de honra» (sic). Exultante, um jovem astrónomo garantiu-nos representar este dia, vá-se lá saber porquê, «um ponto histórico». Aquele que acreditámos ser o nono calhau a contar do sol foi assim varrido para as traseiras do sistema solar. Nada que nos possa espantar, se recordarmos a sorte do seu velho orago: quando os três filhos de Cibele e Saturno fizeram a partilha do universo, Neptuno ficou com os mares, Júpiter tomou conta do Olimpo, e o desafortunado Plutão – a quem os gregos cavilosamente chamavam Hades – herdou os Infernos. Lá teremos então de reaprender a lengalenga da infância: «Mercúrio, Vénus, Terra…».

    Apontamentos

    A máquina

    Auster
    Sei onde poisei a minha última máquina de escrever da última vez que me servi dela, há mais de vinte anos. Mas não tenho vontade alguma de a ir buscar para lhe tirar as incrustações de pó. O «fetiche da Underwood» – que no meu caso era uma modestíssima Triumph com um design que a aparentava com um igualmente modesto automóvel Trabanta – quase me ia dando cabo das costas. Passou-me com o tempo, como a extravagância de fumar cachimbo, que, essa, me estragou definitivamente os dentes. Algumas revistas literárias e ex-libris digitais continuam porém a usá-la, talvez como metáfora de uma qualquer relação matricial com a escrita, ou enquanto pulsão nostálgica, idêntica aquela que nos pode levar, perdoem a imagem de jogos florais, a mergulhar sem necessidade numa manhã de chuva e nevoeiro. Talvez por isso, soa-me um tanto a mania que um homem maduro, moderno e morador em Brooklyn, como Paul Auster, faça sistematicamente questão de exibir em público a sua aversão a qualquer outro instrumento mecânico de escrita. E se empenhe em lançar, em conjunto com o artista plástico Sam Messer, o narcísico álbum A História da Minha Máquina de Escrever, que a ASA editou. Não é que não seja bonita a sua Schreibmaschine Olympia, mas mostrá-la assim parece sinal de caturrice precoce.

      O cedro das patacas

      O rendimento médio per capita é, no Líbano, de cerca de 3.700 US dólares anuais. Um número muito grande de libaneses ganha, pois, muitíssimo menos. Os pagamentos feitos pelo Hezbollah aos milhares de famílias xiitas que perderam as suas casas durante os bombardeamentos israelitas, destinados a que estas possam pagar a reconstrução ou o seu realojamento, varia entre 10.000 e 12.000 dólares, entregues de imediato e em cash, nas conhecidas notas verdes com um retrato de George Washington. Calculo que, de acordo com algumas teorias circulantes a respeito da condição de «movimento de massas» do «Partido de Deus», se considere que tais somas resultem de uma extraordinária capacidade de solidária liquidez da parte dos militantes islamitas e das populações que dizem representar. Existe também quem acredite ainda no Pai Natal. Ou, em versão melting-pot, quem afirme a pés juntos que Elvis Presley há-de regressar numa manhã de nevoeiro. Há crenças para tudo.

        Opinião

        A outra revolução

        Marilyn
        Pulido Valente insistiu hoje, a contracorrente, numa realidade para a qual tenho procurado chamar a atenção (veja-se O Poder da Imaginação – Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60, ed. Angelus Novus). A experiência daquilo que genericamente se tem convencionado chamar «os anos 60» – vividos num raio temporal de perto de duas décadas e, de uma forma gradual, em praticamente todo o planeta – definiu-se muito mais pela afirmação da juventude enquanto grupo social portador de um padrão de vida autónomo, pelo fulgor da nova cultura popular, por uma intensa abertura no campo da moral (incluindo a construção de uma sexualidade renovada), por uma atitude estética própria e omnipresente, pela emergência dos movimentos sociais de um tipo novo, pela afirmação de um modelo de sociedade de natureza anti-disciplinar, do que pela proeminência nos processos de mudança das organizações políticas da esquerda. Estas encontravam-se a viver um impasse histórico, do qual o radicalismo constituía uma das vertentes, e a ortodoxia, principalmente a pró-soviética, a outra. O «eurocomunismo» não era, como havia já na altura quem o apontasse, senão um passo envergonhado, rumo ao que será mais tarde designado como uma «terceira via» entre o liberalismo e a social-democracia. A direita, essa demarcava-se maniacamente de toda e qualquer mudança no seu quadro tradicional de valores.

        Em Portugal, foi esse também o género de transformação – tardia em relação aos países mais industrializados e a algumas das suas áreas periféricas, mas muito marcada pelo rápido declínio do Estado Novo e pelas pesadas sequelas da guerra colonial – que, de forma particularmente intensa, preparou um clima de rejeição geracional e de afastamento da classe média em crescimento. Devido à inflexibilidade do regime, este só poderia ter terminado como de facto terminou: com um «25 de Abril». A oposição, coagida pela censura e pela polícia política, e por vezes tolhida pelo dogma que incitava o sectarismo, fez aquilo que foi capaz de fazer para combater o poder instalado. E, sublinhe-se, não fez nada pouco. Só que, para um sector cada vez alargado de cidadãos – quase silencioso por vezes, mas profundo e dinâmico, sem dúvida, no divórcio crescente em relação à ordem estabelecida e nos processos de desafectação diante dos padrões de vida que aquela continuava a requerer – os factores preponderantes não foram, de facto, aqueles que uma certa memória da esquerda, e alguma historiografia que com esta tem vindo a colaborar, habitualmente propõem.

        Simplificando um pouco, embora sem fugir ao essencial: na última década do regime, I Can’t Get No (Satisfaction) e The Times They Are A-Changin’ fizeram mais, e sobretudo de forma mais profunda e duradoura, para abalar a ordem vigente, do que o fizeram, nessa mesma altura, a Canção dos Barqueiros do Volga ou a Bandiera Rossa; o cinema de Antonioni ou de Godard fez bem mais do que o de Eisenstein ou até o de Rossellini; a leitura do Salut les Copains! e do Comércio do Funchal, mais, ou pelo menos com maior intensidade, do que a da generalidade da imprensa periódica clandestina; os livros de Kerouac e de Sartre mais do que os de Cholokov ou de Lenine; o impacto de 1968 mais do que o que chegou de 1917; o festival de Woodstock mais do que a festa de L’Humanité; mesmo a Marilyn de Wahrol talvez mais (talvez) do que a Guernica de Picasso. Situa-se na percepção deste conflito e desta mudança, sobretudo no que respeita aos ambientes urbanos da Europa central e ocidental, a possibilidade de uma compreensão mais completa da rápida queda das democracias musculadas (o gaullismo, por exemplo). Ou, como aconteceu connosco, do fim das ditaduras arcaicas e desse pequeno mundo protegido, simbolicamente representado nas cerimónias lúgubres do 10 de Junho, dentro do qual a sua cada vez mais limitada e estéril base social de apoio ainda acreditava habitar.

          História

          Cuba: ficção e realidade

          Ainda sobre Cuba, vale a pena ler este texto de Elísio Estanque, escrito depois deste outro artigo – absolutamente revisionista na relação com a história recente de um certo lado da esquerda, mas que, para já, parece ter passado algo despercebido – publicado na revista Visão por Boaventura de Sousa Santos. Talvez um pouco mais agreste, mas não menos questionador, veja-se também este eco. O silêncio a propósito do tema que se nota na generalidade dos blogues ditos «de esquerda», sempre prontos a questionarem as vozes independentes (por vezes até mais, e com maior virulência, do que aquelas que chegam da margem direita), não deixa de ser coerente. E lamentável.

            Opinião

            Amor em fascículos (1)

            Amor
            Para Denis de Rougemont, a paixão amorosa terá nascido em pleno século XII, quando dentro do universo feudal se constituiu o mito literário do amor cortês (L’Amour en Occident, 1939). A lenda de Tristão e Isolda definiu o arquétipo. Aqui encontra-se um pouco de tudo aquilo que virá a excitar uma certa imaginação amorosa: o condição de Isolda como mulher casada e supostamente inacessível; a pureza de Tristão e o seu pendor acentuadamente melancólico; a paixão que não pode ser evitada nem controlada, mas que se revela impossível; o filtro mágico que irá unir para sempre os dois amantes; a fuga de ambos através da floresta; as aventuras heróicas e façanhas extraordinárias condicionadas por sucessivos obstáculos e um estado febril de esperança amorosa; o suicídio de Tristão e a morte de Isolda; o amor para além da própria morte. A lenda ocupará um lugar considerável no imaginário cavalheiresco medieval, traçando, pelo menos até aos neo-românticos, o modelo do amor enquanto relação sublime mas necessariamente inquietante. Condenado ao êxtase mas também à definitiva infelicidade.

              Devaneios

              A culpa (2)

              Günter Grass
              Nunca me ponho a correr diante de uma polémica. Desde que, para além de para ela me achar virado, a mesma se estabeleça entre pessoas que, pensando de diferente forma, respeitam a opinião do contraditor. Por isso, não sou capaz de polemizar, a propósito do «caso Günter Grass», com Luís Mourão ou com Carlos Leone. Porque, não agredindo qualquer um deles a minha leitura a propósito do passado de SS de Grass, também não discordo substancialmente dos argumentos que um e o outro invocam. Ambos aceitarão que não seja novidade alguma para mim a perspectiva segundo a qual «toda a leitura que valha a pena será sobretudo uma relação impessoal com uma voz que passa através daquilo a que chamamos autor» (LM), ou, em diferente direcção, que eu aceite que se não deva «chamar consciência moral a quem nunca fez mais do que generalizações vazias e grotescas sobre história» e, ademais, «sempre foi ridículo, como o é agora» (CL). Partindo de pressupostos de certa maneira opostos, e provindo de pessoas que sei lerem por hábito de uma forma acentuadamente crítica, as duas afirmações não podem deixar de ser respeitáveis (bem, a segunda frase de CL sê-lo-á de forma menos peremptória…). Só que existe um padrão de leitor, chamemos-lhe o leitor cândido – como eu o fui quando tinha quinze anos e pela vez primeira li GG, ou como o gosto de ser ainda quando me entretenho a folhear Groucho Marx, Maria Filomena Mónica ou os títulos d’A Bola -, para o qual um dado autor «é» aquilo que lhe indiciam ser, estabelecendo com ele um pacto de confiança que essa candura determina. Foi entre esta imensa turbamulta que, sem complexos, e em nome da tal relação que estabelecera com uma «consciência alemã anti-nazi do pós-guerra», me incluí quando escrevi o post-em-choque que ambos de alguma forma questionaram. Desconfio que, para uma boa parte dessa multidão, a revelação em causa possa funcionar como o tal golpe publicitário que as leve a correrem para as portas das livrarias como se um novo e cada vez mais graúdo Harry Potter estivesse para chegar. Mas admito que os mais influenciados por uma informação intensamente mediatizada o façam (e de um registo na Wikipedia já ninguém os livra). Sorte, neste caso, a das contas bancárias de GG e dos seus editores.

                «La Puta»

                Das recordações da infância em Santiago de Cuba, conta assim Eduardo Manet: «A minha mãe não pronunciava a palavra: contentava-se em erguer os braços para o céu, fechava os olhos e articulava grosseiramente, para que eu a captasse sem a ouvir. ‘La puta’. Muitos anos mais tarde, não consigo ver um retrato de Isabel, a Católica, sem pensar interiormente, como teria feito a minha mãe: ‘A puta!’. Aquela que expulsou ou queimou árabes e judeus, a que trouxe a infelicidade.»

                  Recortes

                  Agressor errado

                  Foram demais. Centenas de milhares de mortos e um número de feridos que nunca poderá ser contabilizado. Eram quase todos muçulmanos e civis, em poças de sangue sobre a terra queimada. Como recordava alguém há pouco tempo, aconteceu Serbrenica e na altura poucos apontaram o dedo à Sérvia, aconteceu Grozny e desculpou-se a Rússia, aconteceu Darfur e praticamente não se ouviu uma voz contra o governo genocida do Sudão. Boat people conduzida ao deus dará pela maré errada.

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                    Os Ciclopes

                    Ciclope
                    Netos de Uranos (o Céu) e de Gaia (a Terra), deuses primordiais na mitologia grega, os Ciclopes são criaturas fantásticas que possuem como atributos a força bruta e, consequentemente, o poder que esta lhes confere. A sua fraqueza reside apenas na visão monocular, a qual, apesar de assustadora para quem os contempla, lhes limita o ângulo de visão, facilitando inúmeras vezes as armadilhas ou a retirada dos seus inimigos.

                      Devaneios

                      A culpa

                      Será possível perdoar a Günter Grass por vir agora dizer que na juventude foi membro das SS? Perdoo-lhe por o haver sido aos 17 anos. Mas não por tê-lo escondido de nós durante este tempo todo. Jamais voltarei a ler um livro escrito por Grass antes desta declaração tardia.

                      PS – Luís Mourão questiona-me sobre o sentido desta posição de normando. De facto, eu também acho que «esta declaração (pode) dar uma espessura maior à dimensão crítica do romancista Grass». Sob este aspecto, quanto mais complexo, por vezes, mais denso, mais embaraçoso, mais interessante. Mas eu comecei a ler Grass – como admito que muitas pessoas ainda o façam – justamente por tomá-lo, de forma singela, por uma voz da consciência alemã anti-nazi do pós-guerra. Sinto-me assim como aquele sujeito que só ao fim de 40 anos de casamento percebeu que a esposa foi levando uma vida sexual dupla. Traído, portanto. Mas pode ser, caro Luís, que o tempo cure a mágoa e me devolva a razão. A ingenuidade, essa já é mais difícil.

                        A imensa tristeza

                        Revisitando um artigo publicado em 2003 na revista Periférica

                        1.

                        Stalin Martínez, irmão de Lenin e Lenina Martínez, estomatologista no romance Conta-me coisas de Cuba, do exilado Jesus Díaz, viveu uma situação que o levaria ao desespero e à fuga da ilha. Pepa, a velha ventoinha Westinghouse, avariara-se irremediavelmente, deixando-o, sem dinheiro ou influências para conseguir uma nova, confinado ao calor constante, insuportável, de um quarto solitário em La Habana.

                        Confunde-nos a variedade de metáforas negativas usadas por muitos escritores cubanos para se referirem ao habitat que conformou as suas vidas, deslocando o mal-estar para relatos aparentemente laterais. Karla Suárez insiste na mudez como veículo expressivo e como processo de compreensão do mundo em redor (Os Rostos do Silêncio). Zoe Valdés aborda a sobrevivência esgotante, sem horizontes, daqueles que não procuraram o exílio (O Nada Quotidiano). Pedro Juan Gutiérrez transforma o sexo obsessivo numa cadência que exige concentração de energia, que esgota, não deixando espaço para o pensamento e para a vida social (na Trilogia Suja de Havana, sobretudo). Daína Chaviano, ergue universos mágicos numa cidade arruinada, sobre vidas com senhas de racionamento, filas, polícia política, ininterrupta propaganda oficial (no ciclo La Habana Oculta). Nem os mais obstinados na negação do manifesto podem ignorar a forma como o relato ficcional da Cuba contemporânea – o relato do dissídio, naturalmente – descarta a vivência colectiva de praças e reuniões, a propaganda visível nos outdoors do regime e em folhetos para turistas.

                        Cuba: Imagens & Testemunhos (2002), um álbum organizado por João Vilar e Alfredo Duarte Costa, é diferente. Alinham-se fotografias e relatos do que da ilha, da sua vida e do seu futuro pensam (ou dizem) figuras como Maria Barroso, Jorge Sampaio, Luís Represas, Rui Veloso, Américo Amorim, Pedro Lamy, Miguel Urbano Rodrigues, Edite Estrela, Eusébio, entre outros nacionais e alguns estrangeiros inseridos na conexão cubana (como o cardeal D. Jaime Ortega ou a obrigatória Aleida Guevara). As imagens são belas, revelando tipos únicos na paisagem luminosa em cinemascope, numa espécie de pobreza limpa e honrada, numa decadência de charme que nos habituámos a reconhecer. Os textos não passam do lugar-comum, do elogio previsível, numa justificação pela negativa – a crítica do bloqueio americano, a resistência do regime apoiada em palavras esvaziadas do sentido original (como rebeldia ou revolução), o bricolage como arma dos necessitados – daquilo que, fora dos meios de comunicação estritamente controlados, é um país sem a marca de projectos mobilizadores. Vivendo um quotidiano que apenas para os estrangeiros, e mais moderadamente para alguns naturais mais humildes sitiados pela propaganda, parece marcado ainda pelo júbilo. Pedro Lamy, o piloto de automóveis, fascinado, como seria de prever, pelos Pontiac e Chevrolet «que se mantêm como novos», fala da gente que aos seus olhos «vive num constante momento de alegria e boa disposição». Miguel Urbano Rodrigues, histórico da mais impoluta ortodoxia comunista lusitana, adensa a ideia, tratando os cubanos como semi-heróis homéricos, capazes, na paisagem devastadora de uma «crise global da civilização», de afirmarem uma inigualável «atmosfera marcada por intensa alegria de viver».

                        Observando à distância, afinal que outro estado de espírito deveríamos presumir num povo que conhece uma inflação próxima do zero, a quase completa literacia, um sistema de saúde gratuito e razoavelmente avançado? Que outra sensação poderia legar ao turista o perfume adocicado dos inigualáveis charutos, o calor contagiante das pessoas, a sensualidade dos corpos, a omnipresente música tão característica da casa comum caribenha? Elementos dispersos de uma mitografia da felicidade erguida também sobre a herança do lugar privilegiado que a Cuba revolucionária tem ocupado, em particular na Europa e América Latina, no imaginário da esquerda ocidental.

                        2.

                        Após a tomada do poder pelos insurrectos da Sierra Maestra, os tropos que integravam a sua gramática fundadora – revolução, rebeldia, anti-imperialismo, colectivização, socialismo – foram afixados nas paredes, proclamados diariamente, ampliando uma simpatia mais imediata do que aquela que se poderia sentir pelos distantes, previsíveis e nada modelares aparatchiks moscovitas. E ainda que Cuba tenha rapidamente começado a copiar o modelo centralista das «democracias populares», tal não fez diminuir, mesmo na área da social-democracia, e principalmente entre os intelectuais e alguma juventude, o «tropismo cubano» manifestado perante um regime dotado do fulgor impossível de vislumbrar nos desfiles rituais diante do Kremlin. Imagem ampliada ainda pelo efeito carismático de políticos sem rugas, possuidores de um estilo novo, directo, rebeldes com causa desprovidos dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas da época. Sartre, de visita logo em 1960, sentiu-se imediatamente seduzido pela «lua-de-mel da revolução», vivida num clima de aparente euforia geral. Foi essa a atraente Cuba – do Che, de Cienfuegos, de Castro, cuja conjunção a verdadeira história rapidamente separaria – ­que, entre muitos outros jovens e menos jovens de todo o mundo, então procurou Annie, a romântica única filha do major Silva Pais, último director da PIDE, «portuguesa na revolução cubana» recordada no romance-livro de memórias de José Fernandes Fafe.

                        Mas nada disto transparece na palavra dos actuais escritores e exilados, para os quais a expressão da tristeza é inevitável. Guillermo Cabrera Infante, ex-companheiro de Fidel, sentiu, por isso, a necessidade de escrever a crónica pessoal de uma cidade aberta, sonora, plural, que fora a da sua infância, adolescência e parte da idade madura (Havana para um Infante Defunto). A descrição da opressão, feita pelos numerosos dissidentes – nem todos eles iguais, nem todos «canalhas» e «criaturas da CIA», como pronunciam os epígonos do regime e os seus bajuladores – já fazia notar esse distanciamento. Lê-se Antes que Anoiteça, autobiografia impressionante, indesmentível e indesmentida, do suicidado Reynaldo Arenas, guerrilheiro castrista aos quinze anos de idade, assumido gay, e percebe-se como o regime procurou conter, normalizar a criatividade sem limites, o sentido do risco e a paixão da desordem, a busca da beleza e o frisson da perdição, tudo fazendo para submeter os comportamentos culturais e o viver comum às «metas da Revolução» definidas, sem recurso algum, no estreitíssimo conclave do partido único.

                        No conto «Delito de dançar o Chá-Chá-Chá» (incluído na colectânea É Tudo um Jogo de Espelhos), é ainda Cabrera Infante que coloca uma poderosa interrogação face a uma futilidade: que fazer socialmente com esta dança que teve «a desgraça de o seu nascimento coincidir com a ditadura de Batista» e, por isso, «como a poesia hermética, como o jazz», se tornou culpada de uma alegria ilegítima e decadente? A revolução distinguirá por tempo demais – aproxima-se agora do meio século de sentido único – o bom do mau, o justo do injusto, o conforme do disforme, e, também por isso, toda a diferença em relação a um hipotético padrão de perfeição é condenada.

                        Não surpreende assim o número considerável de intelectuais – jornalistas, escritores, professores, artistas plásticos, cineastas, fotógrafos, músicos, estudantes – envolvidos com o universo da oposição. Ou que fazem por viver a sua vida à margem dos favores e das sugestões do regime. Recorrentes vagas repressivas têm empurrado para a proscrição, o cárcere ou o paredão um conjunto de pessoas, diferentes sem dúvida nas motivações e formas de agir, unidas pela recusa do único, fonte dessa imensa tristeza produzida pela ausência de um lugar para o exercício descomprometido da diversidade. E nem mesmo um escritor em relativa paz com o governo, como Lisandro Otero, Prémio Nacional da Literatura de Cuba de 2003, se eximiu, no discurso pronunciado quando da entrega do galardão, de deixar implícita essa carência, essa insatisfação: «Se não se tomam medidas restauradoras a paixão converte-se em rancor, o entusiasmo torna-se indiferença, a fé é destruída pelo cepticismo. Não obstante, há que continuar alentando sonhos». Do que falava afinal Otero?

                        «Morre-se de nostalgia em Cuba», afirmou Karla Suárez numa entrevista publicada pelo Diário de Notícias. É provável que sim. Não a nostalgia do miserável passado pré-revolucionário, sobrevivente na memória da geração que o conheceu ou nos manuais de história concebidos como hagiografias. Mas, é legítimo suspeitá-lo, a dessa alegria perdida que apenas a liberdade sem adjectivos, incandescente, pode trazer.

                          Opinião

                          Casa Grande e Sa(e)nzala

                          É provável que alguém ainda hoje encontre glamour na história da gata borralheira. Pessoas que vivem de romantizar o passado, leitores da Hola ou da Nova Gente, candidatos a uma promoção social rápida através de concursos televisivos ou figuração em novelas. Olhar o comércio das relações como via possível para uma vida melhor ou alguns minutos de fama. Mas encontro uma infinita tristeza no testemunho transcrito hoje pela revista Pública em artigo sobre o parque termal do Vidago. Corriam os anos 40, recorda uma então jovem frequentadora das pensões «mais em conta» da localidade: «Quando havia bailes no Palace não podíamos entrar, mas nós trazíamos toilettes, vestido comprido, salto alto, e os rapazes vinham todos do Palace para a nossa beira e dançávamos à volta do lago.» Predadores descendo as escadaria do hotel disfarçados de príncipes encantados. A desigualdade como normalidade. Era isto também o salazarismo e a vida na província.

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                            Do inimigo americano

                            Made in America
                            [retomando…] Como se sabe, é nas ocasiões difíceis que se mostra o melhor e o pior de nós. As emoções tolhem-nos então a consciência, falamos sem controlar as palavras, gritamos juras que reconhecemos logo serem um pouco exageradas. Diz o povo que «é do vinho!» Nessas alturas, é necessário aplicar um esforço suplementar para se evitar que o mais fundo de nós – os fantasmas, as raivas, os desejos, as expectativas – tolha os nossos actos. Infelizmente é isto que acontece com muitos dos «argumentos» de uma esquerda quase exclusivamente orientada para um espaço mítico cujos reflexos reverbera sem pensar duas vezes. O resultado é, para além do espectáculo triste de uma esclerose exposta em público, a oferta de argumentos aos sectores neoconservadores, cedendo-lhes o espaço de manobra que fora historicamente da esquerda e lhe facultara, durante décadas, a afirmação de uma efectiva superioridade moral.

                            Recorro, para ilustrar esta situação, a dois extractos da crónica de Constança Cunha e Sá saída no Público de hoje (citações algo longas mas necessárias): «A esquerda, naturalmente, depois de perder o seu “sol na terra” e de ter assistido à destruição sistemática dos seus principais mitos, descobriu no antiamericanismo primário, não só a sua grande bandeira, mas principalmente o seu último (e único) combate. Falhada a gloriosa aventura do comunismo e desfeitos os sonhos da ideologia, resta à esquerda aprender a viver num mundo que a contraria e escolher um inimigo que lhe restitua a identidade perdida. O resultado deste duvidoso exercício é conhecido: um delírio teórico que despreza a realidade e um moralismo sem moral que leva à defesa dos pobres e dos oprimidos e ao elogio de regimes que sobrevivem (e sobreviveram) à custa de uma imensidão… de pobres e de oprimidos.» Mais adiante, CCS refere-se a Miguel Portas, criticando o facto de este ter andado «pelos bairros destruídos de Beirute de braço dado com os heróis do Hezbolah», e lembrando que «este seria prontamente liquidado, se fosse exportado para o Irão, o principal patrocinador dos seus corajosos “resistentes”». E acrescenta: «Mas não é isso que impede este defensor da igualdade entre os géneros, dos direitos dos homossexuais e da separação entre o Estado e a Igreja de apoiar implicitamente um regime teocrático que se distingue pela violência com que trata as mulheres e pela intolerância fatal que nutre pelos homossexuais. O antiamericanismo militante, potenciado pelos erros da Administração Bush, supera qualquer tipo de incoerência e junta, na mesma causa, os mais improváveis parceiros.» Não havia necessidade de dar assim o flanco.

                            Publiquei há cerca de 5 anos uma pequena crónica sobre a questão do «antiamericanismo como dogma» [ver nota no final deste post], o qual justifica actos espúrios como aquele corporizado por MP (pessoa que prezo como sinal animador, espero que para continuar, de uma «esquerda que pensa» prospectivamente). Não sendo suspeito de simpatias para com as políticas de Bush, gostaria, todavia, de deixar à reflexão algumas palavras de Jean Baudrillard escritas há cerca de duas décadas atrás: «Não consigo deixar de achar que este universo completamente apodrecido de riqueza, de poder, de senilidade, de indiferença, de puritanismo e de higiene mental, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil, tem ar de manhã do mundo. Talvez por o mundo inteiro continuar a sonhar com ele, enquanto ele o domina e o explora.» Talvez, acrescento, por, antes ainda da revolução jacobina, ter nascido ali a «erva daninha» da melhor liberdade.

                            A esquerda que não integrou completamente a lógica neoliberal do sauve qui peut precisa reflectir sobre isto. Como atitude democrática, solidária e construtivamente utópica sobreviverá à usura do tempo e a esta dramática perda de capacidade para compreender o mundo de forma dinâmica e preparar os processos de mudança. Espera por uma refundação que, como todas as refundações, implica a observação dos alicerces e a eclosão de uma série de explosões. Gostaria que não fossem necessárias também umas quantas implosões.

                            Nota: O artigo que mencionei, publicado originalmente em 2001, encontra-se aqui em formato PDF.

                              Opinião

                              A velhice de Sciascia

                              A velhice de Sciascia
                              Um dos primeiros sinais do envelhecimento mostra-se na relação com os processos de mudança. O inexoravelmente envelhecido – seja uma pessoa ou um sistema de ideias – revela uma dificuldade crescente em incorporar as imagens, os acontecimentos, os gestos que não tiveram lugar na fotografia imutável do seu pacto inicial com o mundo. Mede então os sucessivos presentes pelo grau de proximidade ou de semelhança com o modelo original. A partir de um certo limiar, essa teimosia passa a alimentar um processo incontornável de fuga perante o real, o qual deverá moldar-se forçosamente às suas expectativas. Trata-se de um trajecto que se repete de forma dolorosa, legando ao presente os sinais da decadência e acelerando os passos para a irrelevância.

                              Uma recente revelação reafirmou-me este elo. Uma leitura deste verão – Cosa Nostra. História da Máfia Siciliana, de John Dickie (Edições 70) – mostrou-me o especto da velhice de Leonardo Sciascia. Quando do combate dos juízes Falcone e Borsellino contra a relação entre o crime organizado e o poder político em Itália conduziu, pela primeira vez, à possibilidade de desmantelamento efectivo da organização siciliana – facto que determinaria o assassinato dos dois juízes em 1992 – Sciascia, já velho e bastante doente, insurgiu-se contra o trabalho de ambos por este colocar em causa a imagem sobre a qual, ao longo de toda a vida, havia efabulado a sua ilha natal. Escreveu então no Corriere della Sera: «Quando me insurjo contra a máfia isso também me faz sofrer, porque dentro de mim, tal como dentro de qualquer siciliano, ainda está vivo um resíduo de mafioso.» Via assim o desmembramento daquela organização «como uma cisão, uma laceração.» Desta maneira, em nome do mundo que muitos anos antes concebera como seu, e cujos fundamentos estavam a ser abalados por um volume de informação sem precedentes, o autor de O Dia da Vergonha – com muitos outros escritos seus um elemento central de formação da consciência internacional anti-máfia que nos anos 80 transformara a série televisiva O Polvo num êxito de audiências e o comissário Corrado Cattani num herói do imaginário europeu – Sciascia recusou mudar e preferiu sair coerentemente deste mundo, concebendo-o como sempre fizera. Um fim triste e, infelizmente, muito comum.

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                                A ratoeira e os estrábicos

                                No último número do Courrier Internacional, o dossier «Líbano: escrevem os intelectuais» integra testemunhos de escritores de Israel, da Síria, do Iraque e do Líbano. Todos eles procuram, com o êxito possível, permanecer lúcidos debaixo do fogo da artilharia e do rumor dos brados da rua. Natural de Beirute, Wajdi Mouawad – não interessa esclarecer aqui em que família nasceu ou a que deus é suposto orar – conclui a sua colaboração com um grito de dor que deveria ser ouvido por todos aqueles que se apressam a colocar o bem e o mal inteiramente de um dos lados. «O que é aterrador não é a situação política», diz ali Mouawad, «é a ratoeira em que a situação nos coloca e nos obriga, face à impotência de agir, a fazer uma escolha insuportável: a do ódio ou a da loucura.» Num outro artigo, o poeta sírio Adonis fala-nos do espectro de «uma regressão de três mil anos», determinada pela possível destruição do oásis cultural libanês e pelo triunfo previsível dos extremismos religiosos: «O perigo que hoje se corre é o de um regresso ao tempo dos profetas, dos apocalipses, das guerras e do desespero. Um regresso ao absolutismo.» Coisa que não parece incomodar muito as certezas dos nossos analistas estrábicos a propósito de quem são os bons neste conflito decisivo. Vale a pena comprar este número do CI e lê-lo com os olhos abertos.

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                                  O fascismo que existiu

                                  Concordo muitas vezes com as observações jornalísticas de Vasco Pulido Valente. Muitas vezes, divirjo também do seu tom azedo e, em alguns momentos, gratuitamente provocatório. Para além de uma atenção crítica ao que se passa à sua volta – o que corresponde, actualmente, a uma atitude relativamente rara na imprensa diária – percebe-se uma grande capacidade para se dirigir directamente ao essencial das questões, contornando as meias-tintas próprias de quem tem pavor de chegar a uma conclusão dolorosa ou de levantar problemas que se metam com os fantasmas pessoais. Não posso, porém, deixar de discordar da posição de Pulido Valente quando há dias, em crónica saída no Público, resolveu levantar-se contra o movimento que tem procurado impedir que se destruam ou desvirtuem espaços e edifícios que, de alguma maneira, sinalizam a memória do país que era o Portugal dos anos do Estado Novo.

                                  VPV referia aí, e bem, uma verdade que algumas pessoas insistem em negar, ou sequer em aceitar ouvir: o país de Salazar e de Caetano jamais viveu um fascismo típico, com a dose de violência e a dimensão totalitária que se sabe ter acontecido em países nos quais este fundamentou a razão de Estado, ou junto de movimentos que não lograram alcançar o poder mas lutaram por governos anti-democráticos, chauvinistas e intransigentes. O salazarismo foi essencialmente um conservadorismo autoritário, beato e pacóvio, que temeu sempre a febre de violência e de expansionismo do Estado que nas décadas de 1920 e 1930 envolveu principalmente a maioria dos cidadãos da Itália e da Alemanha (se aceitarmos o nazismo como um «fascismo» germanizado). A repressão e a censura, tal como a mobilização das consciências através da propaganda e da educação, foram de facto, entre nós, muito mais «benévolos» do que naqueles lugares. Nisto, VPV tem pois toda a razão.

                                  Só que, apesar dessa «benignidade», o regime salazarista conformou, em Portugal, uma sociedade fechada, desigual, desumanizada, repressiva, arcaizante, cujos sinais aparentemente incorpóreos permanecem em muitos dos nossos atavismos, mas cuja conformação visível se situa nas práticas objectivas e na herança cultural que nos legou. Basta – recomendo-a a quem para tal tenha paciência – uma leitura atenta dos interesses e dos códigos evidenciados todos os dias pela maioria da nossa imprensa regional. Aí, sobrevive ainda o nosso «fascismo» caseiro. É nesse sentido que, enquanto «lugares da memória» e nichos de resistência, as prisões políticas ou os edifícios da Pide – em conjunto com todos os espaços simbólicos que despertam para a lembrança daquela época – merecem ser preservados. Ficarão como sinais de que por aqui existiu, legando ao presente as suas marcas repulsivas, um tempo de ordem e barbárie.

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