Passo pelo corredor da casa e oiço, saídos da televisão, grandes gritos do povo enfurecido que protesta na rua, que acusa, que condena. Clama-se por justiça, alguém é considerado culpado. Pensei que tudo aquilo era contra o casal McCann. Mas não, era contra o Scolari.
Música para filmes
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The Dining Rooms – Catania City Blues
«And now, ladies and gentlemen, the portuguese national anthem!»
Não gosto de hinos porque não gosto de guerras. Nem mesmo daquelas muito pequenas, travadas nos estádios à custa de petardos, palavrões e pontapés nas canelas. Os hinos são cânticos guerreiros, ou marchas militares, que lembram sempre o fogo cerrado e a morte em combate, falam de pátrias e de heróis, de glórias passadas ou previstas, e se destinam a motivar como um urro antes do mergulho num rio de água gelada. Mais prosaicamente, são também instrumentos de submissão do indivíduo ao colectivo, como a ordem unida que os exércitos ensinam aos recrutas desde o primeiro dia no quartel. E servem para exaltar o ânimo e a coragem. Não são cantilenas, lengalengas, como aquelas palavras entarameladas que balbuciam os jogadores-milionários da nossa selecção de futebol. São brados e estados de alma, como o cantam, vibrantes e únicos, os nossos rapazes da selecção de râguebi, neste momento a disputar em França o mundial da modalidade. Se não me entendem, vejam e oiçam como se canta um hino a sério, no próximo dia 15, cinco minutos antes dos corajosos Lobos defrontarem os esplêndidos All Blacks e a vozearia maori da sua haka. E depois cantem-no assim. Ou então façam como eu e calem-se para sempre.
Duas notas posteriores:
1. Para o L’Equipe, «enquanto se ouvia A Portuguesa eles cantavam com tanta força que até dava para desfazer os maxilares». O Guardian comenta que o hino foi cantado com «um orgulho fora do normal», e que «não houve o ‘estou a perder a compostura porque estou a cantar’ que tantos profissionais mostram hoje».
2. Bem procurei uma fotografia totalmente apropriada para ilustrar este post, mas quem a encontrou, magnífica, foi o Carlos Freitas, publicando-a no seu blogue Prosas Vadias. Pode vê-la também aqui, em todo o seu esplendor. E aqui o vídeo.
Contemplação
Apanhei apenas a parte final da entrevista feita por Mário Crespo, na SIC-Notícias, ao novo director do Museu Nacional de Arte Antiga. Mas o que ouvi pareceu-me tão transparente quanto preocupante: a defesa do museu de arte concebido, muito acima de todas as outras possibilidades, como lugar vocacionado para a conservação da «peça» e para a «investigação científica». Como área no interior da qual um público demasiado vasto e um tanto ruidoso se revela essencialmente indesejável e inconveniente. Ficou no ar uma frase um tanto arrepiante que vale por cada uma das suas palavras e pela concepção do significado da própria arte que indicia: com demasiado público nos museus, afirmou Paulo Henriques, «não há seriedade (sic) para a contemplação de um quadro». Ah, e também deixou bem claro que, na sua opinião, os museus portugueses devem manter as ambições «à escala do país que de facto somos». Estamos entendidos.
Nada mudaram (p.s.)
1. Alberto Manguel escreveu que a leitura funda o contrato social. Levando o axioma ao limite, toda a recusa de uma oportunidade para decifrar um livro assinalará uma quebra do pacto que nos aproxima dos outros. Será isso que fizemos? Claro que não. Quando escolhemos livros que não mudaram a nossa vida ou a nossa percepção do mundo, e deixámos de alguma maneira implícito que os não recomendávamos, não proclamámos uma higiene radical e destrutiva. Aceitámos apenas que as nossas escolhas não têm forçosamente de depender de cânones ou de cartilhas.
2. Poderia ter optado por livros da área da não-ficção. Aqueles que, por interesse ou dever de profissão, mais leio e, muitas vezes, mais facilmente sou capaz de rejeitar. Muitos de pouco ou nada me servem, esqueço-me dos seus títulos, sou incapaz de os citar ou recomendar. Poderia ter escolhido alguns destes, claro. Mas não fui por aí porque também pouca não-ficção me marcou tão profundamente quanto me marcaram, talvez para a vida inteira, muitos romances e outras ficções.
3. O Luís Mourão levou a tarefa que lhe foi pedida tão a sério que resolveu escutar algumas vozes próximas. Gostei imenso do tom inquietante do seu início de resposta, e parece (?) que a procissão ainda vai no começo. O Francisco José Viegas entendeu explicar melhor porque respondeu ao desafio e, de certa maneira, porque respondeu como respondeu. Pode parecer uma forma de relativizar as suas escolhas, mas é, principalmente, um ponto de partida para outras coisas. A acompanhar, claro. A Carla Hilário Quevedo acha que estou a provocar quando cito o Corão, «um livro religioso». Mas cito dois, pois o Livro Vermelho também o foi. E se quisesse mesmo provocar teria referido a Bíblia Sagrada, o que a educação católica não me deixou fazer (de facto a Bíblia mudou-me, e muito).
4. Tão divertido como responder a estes inquéritos soft de Verão, é ver os caminhos ínvios e sinuosos que as nossas respostas (e as dos outros) certas vezes tomam. As malandras.
Da usura do tempo
1966
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2006
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Peter, Paul & Mary (em 2006 com Pete Seeger)
2h03m
Pode viajar-se agora a 300 à hora no belo comboio Eurostar laranja branco e prata. Uma viagem entre Paris e Londres demorará em breve apenas 2 horas e 3 minutos. Vai ser bastante mais fácil conceber álibis para infidelidades além-Mancha ou para atentados em Balmoral.
Esquecimento selectivo
Julgo tratar-se de uma doença. Gosto muito, mesmo muito, de cinema, passei uma fase da vida em que, cheio de olheiras mas sempre desperto, via em média uns 10 filmes por semana – antes ainda do surgimento do VHS, se bem me faço entender –, continuo a ver aquilo que posso, mas raramente consigo guardar a memória dos filmes por mais de umas quantas horas. Se não tomo umas notas ou guardo o recorte de alguma crítica que saiu na imprensa, lá se vão as imagens, os sons, as figurinhas a mexer e os «perfumes visuais». Por vezes, sobra um vestígio acessório associado a um artigo que possa ler, a um livro que evoque um certo filme, a um programa de televisão ou a uma passeata pelo You Tube. Dos Dez Mandamentos lembro-me apenas da dureza das cadeiras em madeira do Cineteatro da Figueira e de dar uma volta nos carrinhos de choque antes da sessão. De O Homem que Amava as Mulheres recordo-me só do vislumbre das pernas da Brigitte Fossey (mas já não me lembrava de todo do nome dela). De Saló ou os Cem Dias de Sodoma tenho a exclusiva memória de o ter visto com uma terrível dor de dentes. Isto para falar apenas de recordações com mais de trinta anos. Acho por isso extraordinária a forma como certas pessoas – de João Bénard da Costa, que tem sempre uma referência cinéfila para contar, até uma amiga minha que sabe mesmo dizer quais as condições atmosféricas e com quem foi ao cinema no dia tal do ano xis –, falam de filmes que viram há décadas. Com aquela mesma certeza descritiva que usamos para relatar um encontro da manhã ou a ida ao hipermercado. Invejo-os e acho que a medicina devia procurar uma cura para quem padece deste tipo de esquecimento. Faria da memória das vidas de quem dele padece, ou pelo menos da minha, um território com toda a certeza um pouco mais movimentado.
Nada mudaram
Mais um desafio em cadeia. Este, chegado através do Eduardo Pitta, parece estimulante: contar os dez livros que não mudaram a nossa vida. Vale a pena verificar, nesta série, como obras reputadas «incontornáveis» são repetidamente citadas. Aqui ficam pois os meus livros-niet, todos eles lidos sem deixarem manchas. Dez obras que poderiam, claro, ser outras cem.
قُرْآن / Corão (séc. VI), de Abu al-Qasim Muhammad ibn ‘Abd Allah ibn ‘Abd al-Muttalib ibn Hashim (abençoado copy-paste)
A la Recherche du Temps Perdu / Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), de Marcel Proust
Ulysses / Ulisses (1922), de James Joyce
Der Zauberberg / A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann
Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Wolf
Как закалялась сталь / Assim foi Temperado o Aço (1945), de Nikolai Ostrovski
Huis-Clos / Entre Quatro Paredes (1945), de Jean-Paul Sartre
Die Blechtrommel / O Tambor (1956), de Günter Grass
毛主席语录 / O Livro Vermelho (1964), de Mao Tsé-Tung (este não mudou, mas quase mudava)
Generation X: Tales for an Accelerated Culture / Geração X (1991), de Douglas Coupland
Mas, por supuesto, o primeiro livro da lista pode estar ainda a tempo de transformar a minha vida.
Desta vez, e tentando não me repetir (mas não garanto…), passo à Joana Lopes, ao João Tunes, ao Rui Ângelo Araújo, à Shyznogud e ao Lutz Brückelmann. Então vá.
Desordem do mundo
A Coreia do Norte parece ir em breve abandonar o «eixo do mal» e promete «desmantelar todas as centrais nucleares», os taliban agora não degolam todos os missionários cristãos nem dão chibatadas em todas as sul-coreanas que apanham a viajar sem burka, o general Khadaffi tornou-se justo, compassivo e um excelente cliente para a indústria francesa do armamento. O mundo já não é o que era.
V.V. Putin contado às crianças
«Ninguém se iluda: a imagem que temos dos outros povos, ou de nós próprios, encontra-se associada à história que nos contaram quando éramos pequenos.» A frase abre Comment on Raconte l’Histoire aux Enfants, um dos mais conhecidos livros de Marc Ferro, publicado em 1981 (seguido, quatro anos depois, de L’Histoire sous Surveillance). Desde cedo perceberam os poderosos a importância da manipulação do passado no processo de perpetuação do seu poder, da sua imagem, da sua vontade e do seu legado. Foram, porém, os regimes totalitários do século XX que mais longe levaram a apropriação desse passado pelo poder e a sua manipulação como factor de controlo das sociedades e de construção do «homem novo», procurando gerir de uma forma eficaz o conhecimento do mundo vivido que deveria ser transmitido às novas gerações. Os regimes de tipo fascista e comunista, sustentados por uma representação monolítica da realidade e uma visão unívoca do seu movimento, não negligenciaram (como não negligenciam os seus sobreviventes) educar de forma «certa» as suas juventudes, mobilizando as suas organizações, controlando o aparelho educativo e propagandístico, sonegando as visões alternativas ou demonizando-as de forma liminar. As concepções fundamentalistas no domínio do religioso procuram ainda imitá-los, se bem que hoje o façam num universo onde a porosidade das fronteiras parece tornar essa acção depuradora cada vez mais difícil. Mas não impossível: nas escolas religiosas de diversos grupos ultra-ortodoxos cristãos ou judaicos, em numerosas madrassas ou centros de formação de futuros «mártires», é esse o ideal narrativo e pedagógico a perseguir. Contar da forma «certa» e camuflar o que se não deve conhecer. Fornecer certezas e elidir a dúvida.
A decisão recente do presidente russo, Vladimir Putin, no sentido de mandar redigir – não por historiadores credíveis, mas sim por um conjunto de consultores políticos – e distribuir como guia para a redacção dos novos manuais escolares, de uma História Contemporânea da Rússia. 1945-2006, comporta a semente de um retrocesso àquele estado de coisas, unindo-se a uma deriva crescentemente autoritária e expansionista que Moscovo já não esconde. Segundo um extenso artigo do Público, desvaloriza-se ali o Holocausto e os crimes de Mao, relativiza-se o genocídio perpetrado no Camboja pelos khmers vermelhos, faz-se equivaler a «hegemonia global» dos Estados Unidos à política externa do Terceiro Reich, amacia-se o Gulag, comparam-se os assassínios em massa da era soviética (a maioria deles, relembre-se, efectuada em tempo de paz) ao uso da bomba atómica norte-americana em tempo de guerra, e elogia-se José Estaline, «figura contraditória (…), demonizado por algumas pessoas e para outras um herói pelo papel que desempenhou na Grande Guerra Patriótica [a Segunda Guerra Mundial] e na expansão territorial» e também «o mais bem-sucedido líder da União Soviética». Para além, naturalmente, de se atribuir um relevo ímpar ao «rumo do presidente V. V. Putin em direcção à consolidação da sociedade», marcado principalmente por uma «restauração da posição da Rússia na política externa.» A comunidade de historiadores da Rússia tem, na sua generalidade, reagido com indignação a esta reescrita da história e à sua deriva nacionalista e autoritária, mas a verdade é que, entretanto, novos milhões de russos irão ser educados neste processo de manipulação da verdade. O resultado desta nova torrente de «lavagem» aos cérebros de toda uma geração ainda não pode ser conhecido, naturalmente. Mas permite-nos conjecturar de maneira legítima sobre o mal que transportará consigo. Pavel Danilin, um dos responsáveis por esta História putiniana, avisa: «temos que nos purgar do lixo, nem que seja à força».
A dúvida
As revelações sobre a longa e profunda crise de fé que, contra todas as aparências, viveu Agnes Gonxha Bojaxhiu, Teresa de Calcutá, não podem deixar-nos indiferentes. A partir da correspondência mantida ao longo de 66 anos com os seus confessores e superiores, que o livro Mother Teresa: Come Be My Light põe agora à nossa disposição, é todo um percurso de dúvida que o acto de entrega ao tormento dos outros e às missões que lhe foram destinadas pela sua Igreja jamais foram capazes de resolver por inteiro. São ali recorrentes as referências a sentimentos de «secura», de «escuridão», de «solidão» e de «tortura», que, no constante convívio com o Inferno que foi quase sempre a sua vida, a levaram a duvidar da existência do Céu e até do próprio Deus. «O sorriso», o seu sorriso, escreveu Agnes, o sorriso que sempre lhe associamos, «é uma máscara» ou mesmo «um manto que cobre tudo». E este não parece tratar-se de um trajecto de ascensão espiritual rumo ao absoluto da fé, como o de Santo Agostinho (dizia ele, sabemos lá nós), mas exactamente o seu inverso: um olhar permanente, e inevitavelmente amargurado, sobre uma dúvida que não cessa e colide com o próprio sentimento de dever. O que não pode deixar de nos oferecer um olhar bem mais humano sobre a vida difícil desta albanesa pequenina, missionária, e, sabemo-lo agora, sempre sofrida e inquieta. Santidade é isto, é duvidar, é crer e descrer, não a entrega cega, segura e néscia seja a que fé ou a que causa for.
Citações retiradas de um artigo da Time que a revista Visão traduziu e publicou.
Um mau sinal
Infelizmente, é já absolutamente normal, e até expressão de uma certa forma de coerência, que, em nome dos «sagrados princípios do internacionalismo», o PCP convide os bandidos armados e narcotraficantes das FARC ou os oligarcas, delatores e torcionários do partido único da Coreia do Norte – para além dos representantes dos regimes totalitários cubano ou bielorusso e de outras forças consabidamente antidemocráticas – para a sua Festa do Avante!. O que me parece mais preocupante é que a opinião pública de esquerda considere o facto de somenos importância e abandone a denúncia deste tipo de situação nas mãos dos sectores conservadores ou mesmo dos descendentes da velha direita. As preocupações a propósito das liberdades fundamentais e a decência política mais elementar parecem, uma vez mais, submergir por estes lados diante de pequenas prioridades tácticas. Um mau, ou um péssimo, sinal.
Vejam-se as posições – muitas delas no sentido que refiro acima – que são inventariadas pelo Tiago Barbosa Ribeiro num dos seus posts sobre este assunto.
EPC
A minha atitude diante da presença pública e do trabalho de Eduardo Prado Coelho (nascido em 1944 e morto hoje de forma súbita) foi oscilando sempre entre a admiração, pela constância da sua atitude pedagógica de polemista e intelectual empenhado (dos últimos, talvez), pela sensibilidade de muitos dos seus textos também, e a impaciência, motivada por atitudes aparentemente inexplicáveis de parcialidade, rejeição ou mesmo jactância que certas vezes exibia. Seja como for, e isso é o mais importante, e isso é aquilo que fica, EPC – como era, tantas vezes, impessoalmente chamado – manteve ao longo de vida uma atitude, de certa forma exemplar mas infelizmente rara, de intervenção crítica e de independência no campo largo da atitude cultural, do combate de ideias e da vivência da cidadania. Por isso, pelo que disse, escreveu ou deu a conhecer, foi sem dúvida, como escreveu Eduardo Pitta, o intelectual português mais influente dos últimos 25 anos. Vai fazer-nos bastante falta.
Aquela vontade de ir
A poucos dias de se perfazerem cinquenta anos sobre a sua saída em 5 de Setembro de 1957 para as livrarias americanas, um pequeno dossiê do suplemento Ípsilon rememora o impacto da primeira edição portuguesa de On the Road, de Jack Kerouac, lançada em 1960 pela Ulisseia com o título Pela Estrada Fora (numa tradução de Hélder dos Santos Carvalho, morto novo quando vivia em França a sua própria experiência «na estrada»). Num volume da colecção Découvertes Gallimard, Alain Dister sublinha o desconforto da viagem à boleia – ou em auto-stop, como se lhe referiam os jovens portugueses «francófilos» da década de 1950 –, relembrando a fadiga, o desconforto, o aborrecimento, o frio, a chuva, o perigo, mas recorda também como, para a geração que tomou On the Road como bíblia da perpétua deslocação, tudo isso era facilmente trocado pela sensação de liberdade, de procura e de vertigem que esta sempre possibilitava. A estrada de Kerouac, na sua imensidão, na melancolia dos cenários imutáveis ao longo de centenas de quilómetros, mas também no inesperado que a qualquer instante a podia cruzar, transformava-se na grande metáfora para uma vida em movimento que uma parte da juventude americana e europeia das décadas de 1950-1960 antevia como cenário da descoberta da felicidade, mas que fechará simbolicamente em 1969, com Easy Rider, o road movie de Dennis Hopper marcado já pela visão desencantada, pós-hippie, do fim da utopia.
O destaque dado neste conjunto de artigos a alguns portugueses que, por aquela época, perseguiram essa bela quimera, faz todo o sentido. Mas o que não é referido, e que por isso valerá a pena lembrar, é que num país periférico, silenciado e fechado ao exterior como o era Portugal na altura, esse desejo de evasão pela viagem se processou principalmente por vias bem diversas da procura individual e descomprometida dos membros da beat generation e dos seus discípulos. Aqui, para a esmagadora maioria das pessoas, e principalmente para os jovens urbanos e com alguns estudos, quando até a própria boleia era olhada com desconfiança por boa parte da sociedade e pelas autoridades, a vontade de fuga materializava-se principalmente nos consumos culturais possíveis – em especial naqueles mais solitários, proporcionados pela leitura, pela música, ou, em menor escala, pelo cinema – ou, no limite, na experiência da fuga através da imaginação de locais idealizados a partir de referências físicas que iam de Nova Iorque e Paris a Moscovo e Pequim. Os nossos beatniks ter-se-ão contado pelos dedos e permaneciam invisíveis, por muito que hoje se possa fantasiar acerca do seu papel ao longo da década e meia que antecedeu a revolução de Abril.
As guerras de Martha
Marguerite Duras afirmou, em A Vida Material, que «o jornalismo só releva da literatura quando é exercido de forma passional». Acabei de ler A Face da Guerra (Dom Quixote), uma selecção de reportagens sobre diversos conflitos escritas no terreno por Martha Gellhorn (1908-1998) entre os anos 30 e 90 do século passado, começando com a Guerra Civil de Espanha (a primeira reportagem é de Julho de 1937), passando por Dachau, Saigão ou Jerusalém, e fechando com a invasão americana do Panamá. Ao percorrer aqueles textos, que quase não perecem datados, acabei por ficar ainda mais seguro da justeza da afirmação de Duras. Um jornalismo como o praticado por Gellhorn, que não receia a polémica, que informa mas também se emociona e toma partido – e não engana o leitor, pois assume que o faz – é o único que se distingue e permanece para além do instante. Separando-se daquele outro, supostamente «isento» e «objectivo», sem corpo, alma ou identidade. Que nos pode ser de alguma utilidade prática, revelando o onde, o quando ou o para quê, mas logo se torna irrelevante. E que acaba por morrer incógnito.
Plagiu
A descoberta de sucessivas pistas de plágio no blogue pessoal de Luís Filipe Menezes não me espanta. Trata-se de uma prática muito comum no universo da política local (e não só, convenhamos), coincidente com a ausência de ideias ou a baixa densidade cultural de muitos dos seus protagonistas. Se percorrermos o país através das páginas pessoais (ou de textos reproduzidos) de algumas das suas figuras mais ou menos públicas, em inúmeros artigos de uma boa parte da imprensa regional, mesmo em intervenções públicas supostamente originais, encontraremos exemplos constantes de corta-cola-e-cala. Mas LFM não é apenas um político local, pois pretende presidir a um dos dois maiores partidos institucionais e ser primeiro-ministro de Portugal. E ou a coisa está pior do que eu pensava ou uma prática desta natureza é indesculpável, não valendo atirar agora com as culpas para as costas de um qualquer «assessor», supostamente responsável pelos sucessivos actos de cópia não declarada (assinados de facto por LFM, «autor» ou autor do blogue em causa). Numa prova académica, quando detectado, o plágio equivale imediatamente a uma reprovação (e na generalidade das escolas inglesas, por exemplo, corresponde até a uma expulsão): será que, por estes lados, as boas práticas destinadas a combater a fraude e a desonestidade intelectual não se aplicam também aos políticos profissionais? Suspeito que conheço a resposta.
Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a gravidade deste tipo de acto, aqui se copia a entrada Plágio da Wikipédia em português (acedida em 22.08.2007, às 14h30, e, sendo de origem brasileira, adaptada aqui ao português europeu):
O plágio é o acto de assinar ou apresentar uma obra intelectual de qualquer natureza (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, etc.) contendo partes de uma obra que pertença a outra pessoa sem colocar os créditos para o autor original. No acto de plágio, o plagiador apropria-se indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria da mesma.
A origem etimológica da palavra demonstra a conotação de má intenção no acto de plagiar; o termo é originário do latim plagiu que significa oblíquo, indirecto, astucioso. O plágio é considerado antiético (ou mesmo imoral) em várias culturas, e é qualificado como crime de violação de direito autoral em vários países.
Plágio não é a mesma coisa que paródia. Na paródia, há uma intenção clara de homenagem, crítica ou de sátira, não existindo a intenção de enganar o leitor ou o espectador quanto à identidade do autor da obra.
Para evitar a acusação de plágio quando se utilizar parte de uma obra intelectual na criação de uma nova obra, recomenda-se colocar sempre créditos completos para o autor, seguindo as normas da ABNT, especialmente no caso de trabalhos académicos onde normalmente se utiliza a citação bibliográfica.
Gestualidades
A codificação dos gestos é sempre mais lenta do que a realidade que a suporta. Hoje, num restaurante, alguém numa mesa em frente da minha pedia a conta – aberta por um PDA, processada por computador desktop, impressa a jacto de tinta – mimando para o empregado, de forma convencional, o gesto de escrever. Calculo a agitação que teria criado se lhe tivesse ocorrido levantar a mão direita (ou, pior, a esquerda; ou, pior ainda, ambas) simulando o acto de digitar.