Generación Y, o blogue havanês já aqui referenciado há meses atrás, é uma das publicações que acaba de receber o Prémio de Jornalismo Ortega y Gasset, atribuído por um júri nomeado pelo diário El País. O extraordinário, para além da capacidade de sobrevivência de um espaço de liberdade onde ela é geralmente cerceada – não sem que Yoani Sánchez, a sua autora, tenha deixado de ser submetida a intimidações -, é a sua forma luminosa e plena de esperança de lidar com um quotidiano desgastante e sem horizonte visível. E tão notável quanto o tom e a regularidade do trabalho desta valente blogger cubana é o calor combativo, e quase sempre sereno apesar de plural, partilhado pela maior parte das muitas pessoas que escrevem nas suas caixas de comentários. Um ponto a favor da causa da liberdade e da democracia em Cuba.
Após ser acusado de incitar à «subversão do poder de Estado e do regime socialista», três anos e meio de prisão para Hu Jia, o activista chinês de causas relacionadas com a defesa do ambiente, a liberdade religiosa e os direitos das pessoas com HIV ou SIDA. Tudo matérias de somenos importância no país dos dois sistemas, da exploração dos trabalhadores, da censura, da pena de morte e dos Jogos Olímpicos «apolíticos».
Afinal, os novos colegas da blogosfera ainda estão só a ocupar os seus lugares e irão por certo melhorar as suas prestações. Mas o nível do «português comercial» da generalidade dos posts já publicados pelos mais ou menos jovens vinte e seis deputados e duas deputadas que abriram o blogue Câmara de Comuns é um tanto inquietante. Será uma boa ajuda o uso dos correctores da ortografia e da sintaxe, pois estes costumam apanhar os erros, acertar vírgulas, moderar a dimensão dos parágrafos, captar a ausência de sujeito, ensinar os tempos verbais, conformar as concordâncias, rematar problemas avulsos. O dicionário de sinónimos também permitirá alargar um pouco a riqueza vocabular. As malformações do estilo, essas já serão mais difíceis de resolver. É preciso não esquecer que parte do melhor português escrito produzido no rectângulo passa pelos blogues, e por isso não convém baixar o nível dando um mau exemplo. Sobretudo vindo de quem vem.
Os Repórteres Sem Fronteiras estão a organizar uma campanha destinada a mobilizar atletas, jornalistas, membros dos Comités Olímpicos e membros do público presentes nos Jogos no sentido destes usarem, durante a estadia em Pequim, um autocolante com a palavra «Liberdade» escrita em caracteres chineses.
Entretanto a televisão local transmitiu em directo a chegada da chama olímpica, mas atrasou as imagens em alguns minutos para prevenir eventuais distúrbios. Ao mesmo tempo, todos os voluntários e jornalistas foram submetidos a revistas por parte das autoridades. Pela amostra, os agentes dos serviços de segurança chineses vão chegar ao final de Agosto completamente stressados.
Após muitos anos de emudecimento e de pudor impostos pela excessiva proximidade dos acontecimentos e do seu perceptível efeito traumático, multiplicam-se agora em Portugal as publicações que aludem ao passado recente de Angola. Estudos históricos, ensaios sobre a realidade pré-independência, livros de memórias, álbuns fotográficos, romances, reportagens, tomam e retomam, quase sempre sob uma perspectiva europeia, temas durante muito tempo silenciados ou reduzidos ao rumor. A paz podre implodida em 1961, a guerra colonial e as suas circunstâncias, o confronto fratricida de Maio de 1977, os mais recentes anos da guerra civil e da inacabada construção da democracia, são os temas-tempos escolhidos. Mas tem sido ignorada a fase particularmente crítica e conturbada, povoada de intensos dramas humanos, que correspondeu ao período que vai do 25 de Abril à proclamação da independência em Novembro de 1975. Esta ausência acaba de ser parcialmente superada com a publicação, pela Presença, de O Último Ano em Luanda, o mais recente romance de Tiago Rebelo.
Trata-se de uma obra manifestamente realista e assumidamente autobiográfica, integrada na recente voga do romance histórico destinado a um público sedento de narrativas empolgantes – como é sabido, coisa raríssima na literatura portuguesa contemporânea – e escrita sem grandes complexidades estilísticas. De facto, apesar de na sua página da Internet o autor se auto-representar como «um dos romancistas mais importantes das letras portuguesas», trata-se essencialmente de um caso de competente literatura de entretenimento, destinada, não duvido, a ocupar um dos «lugares cimeiros das principais tabelas de vendas nacionais» e a suscitar alvoroço e comoções entre o grande número de portugueses que viveram aqueles longos meses de brasa ou que deles colheram os ecos. Coisa que não constitui defeito, ou serve de atestado de menoridade, diga-se. Não é esse, porém, o aspecto que esta nota de leitura pretende destacar.
Tiago Rebelo propôs-se, como afirma em «nota de autor», «reconstituir essa época confusa e decisiva para o futuro de milhares de portugueses e de milhões de angolanos» (p.470), o que sendo tarefa bem difícil para um historiador, não o é menos para um romancista. Procurou fazê-lo combinando relatos de episódios historicamente verdadeiros e a enumeração de determinados locais de referência localizados em Lisboa ou Luanda, para o que se documentou muito bem. O uso do jargão militar ou do calão urbano lisboeta e luandense conferem também verosimilhança aos fragmentos de vida do universo de Nuno e de Regina, os protagonistas do romance, que muitos portugueses vivos, também eles proprietários de pares de óculos Ray-Ban e camisetas Lacoste, reconhecerão como tendo sido o seu. Ao mesmo tempo, descrições simples e abreviadas, sempre ritmadas e que funcionam como patamares entre diálogos curtos e sincopados – povoados, aliás, dos sempre inevitáveis anacronismos -, asseguram uma leitura rápida, que não requer excessivo esforço de concentração, tal como num romance americano hard-boiled para ler numa viagem de comboio de regresso a casa num fim-de-semana chuvoso.
«Atravessaram o Largo Serpa Pinto e foram caminhando devagar pela Pereira Forjaz abaixo, até à Mutamba, onde no trânsito do final da manhã engrossava sob uma atmosfera pesada. O sol impiedoso reflectia-se no passeio e o brilho intenso feria os olhos. Uma pessoa sentia-se asfixiar com o calor insuportável e o cheiro a combustível queimado. (…) Homens engravatados, a destilarem o calor nos seus casacos formais, de pasta na mão, furavam a massa humana no passeio, apressados para os seus compromissos profissionais.» (pp.163-4)
Aqui e ali, um fumo de outra África, raro mas convenientemente distribuído, modula a paisagem:
«Uma quitandeira com um cesto de fruta à cabeça levava um filho às costas, seguro por um pano étnico enrolado no corpo, a abanar a cabeça adormecida ao ritmo dos passos da mãe.» (p.164)
Este romance é, pois, competente na sua ambição ao mesmo tempo evocatória e nostálgica, recorrendo a personagens pouco complexos, condicionados por amores, ódios, rancores e fidelidades extremos, como que pré-formatado para o guião de uma minissérie televisiva de sucesso imediato. Mas nem por isso – e sobretudo porque retrata apenas o lado que conta para o seu autor, incapaz de dialogar com a paisagem humana que escapa ao batedor europeu em África – deixa de soar a um ajuste de contas. Que sugere cumplicidades com o padrão de leitor, desgostoso ainda pelo fim do Império, ao qual se destina prioritariamente este O Último Ano em Luanda.
A fechar, uma precisão histórica que importa, uma vez que Tiago Rebelo insiste numa afirmação, destacada no texto da contracapa, que alimenta um mito circulante entre muitos dos portugueses regressados em 1975 ao rectângulo europeu. Segundo este mito, os três movimentos de libertação «estavam derrotados» quando ocorreu em Portugal a queda de Marcello Caetano. Não sei de onde é possível inferir tal «informação» para que ela possa ser recorrentemente utilizada como verdade indesmentível. Todos sabemos, todavia, onde se pretende chegar através da repetição da fábula. Ainda que ela aqui ocorra mediada por uma estratégia narrativa que se maquilha de ficção.
Sai na próxima semana, nas suíças Éditions de l’Aube, Forget 68, o mais recente livro de Daniel Cohn-Bendit (ou antes, contendo uma entrevista a DC-B). Levantou-se de imediato um clamor sobre a «traição» do homem ao qual terá faltado «apenas a fibra moral e social para viver a sua vida, coerente com as suas ideias». Para os desamparados do Maio de 68, que do movimento não vislumbram os efeitos culturais no longo prazo que o «judeu alemão» actualmente enfatiza, mas sim a sua dimensão simbólica de momento maior da fase terminal das ortodoxias marxistas, é insuportável imaginá-lo sob outro retrato que não seja aquele que preenche o seu próprio imaginário, construído sobre um episódio exaltante agora com quarenta anos de idade.
Mas Cohn-Bendit é o primeiro a avisar, num dos passos do livro que o Nouvel Observateur acaba de divulgar, que o título Forget 68«não quer dizer que esse passado esteja morto, mas que ele foi soterrado sobre quarenta toneladas de calçadas [pavés, disse Daniel] que, depois dele, transformaram e mudaram o mundo». Porém, «culturalmente ganhámos», pois considera, a meu ver justamente, muitas das práticas que as democracias naturalizaram – como sejam aquelas associadas à democracia participativa, aos progressos no papel social das mulheres, à valorização dos direitos das minorias, à dissolução do rigor das antigas hierarquias, ou à liberdade de ensino e à sua democratização -, como tendo resultado, em larga medida, da vitória de um «espírito de 68» que ultrapassou as datadas circunstâncias do seu nascimento. Elas estão inscritas nos hábitos das sociedades democráticas e delas participam hoje praticamente todas as correntes de opinião, retirando-se apenas deste panorama os ultraminoritários grupos da extrema-direita.
Só que essa vitória partilhada conduziu inevitavelmente a uma outra realidade, a um outro tempo, no qual as contradições e as causas já não são aquelas que, há quarenta anos atrás, mobilizaram pessoas como Daniel Cohn-Bendit e muitos milhares de jovens «socialistas libertários» como ele foi. Da mudança das causas e da real dimensão da «traição» do «infame» Dany – como gosta que o continuem a tratar – fala entretanto o discurso que este acaba de proferir na sessão do Parlamento Europeu sobre a atitude da UE em relação aos Jogos Olímpicos de Pequim e à questão do Tibete. O discurso pode ser visto e ouvido aqui, sob o título «Il faut foutre le bordel pendant les Jeux Olympiques à Pékin».
Como os 40 anos sobre o Maio de 68 estão aí, regressarei inevitavelmente ao tema. Entretanto já encomendei Forget 68.
Outros tempos aqueles, quando os call-centers não existiam e jamais alguém nos oferecia, através de chamadas insistentes e não solicitadas, telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens perante as ofertas, vindas da concorrência, de outros telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens. Clique aqui (e depois outra vez) para apreciar, em todo o seu esplendor, a notícia que a imagem acima invoca.
Comemorando a 100ª chamada proveniente de um «número privado» registada, em apenas cinco dias, no meu telefone fixo. Imagem da revista Gente, no. 23, 16 de Abril de 1974
Cheguei ao caso através de um post de Francisco José Viegas. Nele se chama a atenção para uma opinião de José Eduardo Agualusa, expressa durante uma entrevista concedida ao jornal Angolense, segundo a qual Agostinho Neto, António Cardoso ou António Jacinto poderiam ser «eventualmente muito boas pessoas,(…) mas eram fracos poetas». Claro que, sobretudo por causa do primeiro, caíram o Carmo e a Trindade para os lados de Luanda, ao ponto de começarem de imediato a correr declarações tendentes, uma vez mais, a desqualificar Agualusa no plano intelectual, político e até pessoal, acusando-o, por exemplo, de ter ido «longe demais ao atacar grandes figuras emblemáticas da literatura nacional».
Sem ser crítico literário, conheço o suficiente da obra dos três autores angolanos para, neste caso, concordar genericamente e em consciência com Agualusa. O que não invalida que admita que, para muitas pessoas para as quais a grande poesia deva «conter mensagem», ou então «exprimir sentimentos» sob «belas palavras», eles mereçam todos os epítetos que lhes possam conferir a aura dos «grandes poetas». Posso dizer a mesma coisa da poesia de Miguel Torga, Eugénio de Andrade ou Manuel Alegre, que não considero grandes poetas embora deva respeitar quem ache que o são ou quem tenha gosto em lê-los. Como reconheço a honestidade e o esforço que todos eles foram, eventualmente, depositando no seu próprio labor poético. Aquilo que não é tolerável é que a obra de alguém – poeta, crítico, amola-tesouras ou qualquer outra coisa – esteja isenta de exame e origine formas de coacção sobre a opinião ou a iniciativa de quem a possa contestar. Pelo que se pode ver, na ainda débil democracia angolana, onde se mantém um regime «firme e determinado, mas não totalitário» (palavras de um editorial do sempre oficioso e oficiante Jornal de Angola), permanece com voz activa quem pense que deva estar. Concordo com FJV quando este lembra que «convém estar atento, para que não pensem que ninguém ouve».
Que fique claro que considero detestável – e particularmente perigoso – Fitna, o filme anti-islâmico de Geert Wilders, aquele deputado da extrema-direita holandesa que saiu agora da semi-obscuridade para os títulos dos media. Detestável pelo seu conteúdo racista e intolerante, que não se contradiz quando estigmatiza o racismo e a intolerância dos outros, uma vez que toma partido por um dos lados do conflito de culturas e de explicações do mundo para o qual existem apenas os inequivocamente bons (nós, sem dúvida) e os inexoravelmente maus (os outros, pois quem mais haveria de ser?). Mas o filme é perigoso também, pois serve essencialmente para excitar os ânimos dos extremistas – situados de um lado e do outro do combate sem tréguas que eles desejam – podendo servir de rastilho para uma vaga de violência e xenofobia difícil de conter e capaz de trazer ainda mais ódio, sofrimento e desejo de vingança.
Todavia, algumas das reacções de repúdio que tenho lido por aí parecem-me algo filisteias e inapropriadas, pois tendem, uma vez mais, a desvalorizar objectivamente um elemento presente no documentário – e nele alarvemente generalizado – que é o poder crescente dos grupos islamitas sobre sectores cada vez mais amplos do mundo islâmico. Mergulhados há séculos na insciência, na miséria e na submissão – que Enzensberger considera ter sido agravada quando da recusa da revolução cultural determinada, na Europa, pela invenção da tipografia -, afastados de um debate aberto sobre o mundo contemporâneo, a sua diversidade e as suas oportunidades, dependentes de tecnologias que são forçados a comprar ao ocidente, eles têm sido presa fácil dos tiranos e dos exaltados, para os quais a missão apenas estará concluída quando a sua concepção paranóica e medieval do mundo vingar sobre o planeta.
É certo que o radicalismo islâmico não pode ser identificado com o Islão no seu todo, e que é dirigido por minorias que apenas se representam a si mesmas. Mas é já um fenómeno de massas, e em crescimento – basta olhar para a dimensão das manifestações de rua que assumem as suas palavras de ordem – em relação ao qual é preciso definir uma intervenção que não deve apoiar-se na errada noção de que os seus responsáveis são uma ínfima minoria e que existe uma opinião moderada que acabará por isolá-los. Uma intervenção que passa pela defesa intransigente dos valores de tolerância, liberdade e laicidade que o mundo de matriz iluminista – hoje crescentemente miscigenada com diferentes influências, é certo e é bom – deve preservar e partilhar, no diálogo com o outro, enquanto conquistas que lhe permitiram um dia começar a superar o estado de barbárie. E que as populações brutalizadas pelos regimes tirânicos que vigoram na generalidade dos países islâmicos têm o direito de reconhecer como opção. Diminuir a importância desta tarefa por causa duma guerra estúpida como aquela que Bush levou ao Iraque, devido a algumas iniciativas criminosas dos falcões israelitas, ou em função de acções deploráveis e arriscadas como esta do deputado holandês, é que pode tornar-se perigoso. Ao contrário do que parece pensar gente como Wilders ou os desculpabilizadores passivos do Outro, o mundo não é, nem pode ser, a preto e branco. E menos ainda com o preto de um lado e o branco do outro.
Há alguns anos, em crónica do El País, Mario Vargas Llosa considerava excessivamente apocalíptico o mundo segundo Hans Magnus Enzensberger. Não sabemos se o escritor peruano, que parece cada vez mais céptico em relação à actualidade, dirá hoje a mesma coisa. Mas podemos reconhecer, sem grande margem de erro, que Enzensberger tem mantido a coerência na sua forma irónica e desiludida, ritmada «com raiva e paciência», de olhar a parte da realidade que lhe cabe.
Em 1992-93 publicou dois pequenos ensaios, Perspectivas da Guerra Civil e A Grande Migração (ambos editados em 1998 pela Relógio d’Água, num volume que levou o título do primeiro), nos quais aportava já a uma «cultura do ódio» tendente a multiplicar, dia após dia, os conflitos armados e a insegurança nas ruas. No final do segundo texto, referindo-se aqueles que municiavam este estado das coisas, considerava que «o instinto de autoconservação dessas pessoas é menos marcado do que geralmente se pensa». Em 2006 alargou esta percepção na edição revista de um artigo, escrito originalmente para o Der Spiegel, que a Sextante Editora acaba de traduzir sob o título Os homens do terror. Ensaio sobre o perdedor radical.
Enzensberger vira-se aqui para o protagonista, particularmente agressivo e perigoso, dessa violência que não cessa de subjugar o planeta, tornando virtualmente arriscado qualquer lugar ainda há pouco tempo tomado como tranquilo e seguro. Para o perdedor radical, que vive do lado de fora das civilidades comuns, das sociabilidades transparentes, incapaz de as adoptar ou de com elas tratar, e busca a redenção desse estado de auto-exclusão através do recurso a um terror sem piedade que tudo esmaga.
Este perdedor radical não pode ser, todavia, comparado ao simples falhado. Enquanto este se resigna com a sua sorte, esperando por melhores dias ou por uma oportunidade providencial, aquele «isola-se, torna-se invisível, cuida dos seus fantasmas, concentra a sua energia e espera pela sua hora» (p.10). O tempo da vingança é então preparado cuidadosamente, fora da luta de massas (age sozinho, ou em conjugação com outras solidões) e das aproximações impróprias para a missão que o deslumbra (é quase sempre homem, e instado à misoginia). Incapaz de reconhecer-se culpado do seu isolamento, da sua incapacidade para se inscrever num quadro social criador e optimista, projecta sobre os outros a causa da sua própria miséria.
Enzenberger anota que, no passado, a sua energia destrutiva foi mobilizada por uma multiplicidade de movimentos dotados de uma ideologia e de inimigos localizados (de carácter nacionalista, religioso, racista ou totalitário), mas actualmente a culpa é toda ela lançada sobre os cidadãos dos Estados Unidos e dos países que os apoiam, sobre os judeus (todos, sem excepção), sobre os cúmplices passivos ou beneficiários da globalização, sobre as mulheres que pretendem ocupar um lugar que se lhes afigura inaceitável, sobre os infiéis que não se conformam com uma percepção unívoca do mundo, sobre as democracias que não se conformam aos seus desejos.
Senhor da vida e da morte, o perdedor radical dilata a sua energia destrutiva «quando consegue vencer o seu isolamento, quando se socializa, encontra uma pátria de perdedores, da qual espera não só compreensão como reconhecimento, um colectivo de semelhantes a si, que lhe dá as boas vindas». Então, essa energia é potenciada, definindo-se «uma amálgama de desejo de morte e de megalomania» (p.37), ao mesmo tempo que um sentimento catastrófico de omnipotência o liberta da sua impotência. O momento da acção surge quando, neste processo da aproximação aos seus iguais, encontra um detonador ideológico capaz de induzir a explosão.
Para o ensaísta e poeta, no mundo actual, este detonador encontra-o o perdedor radical no islamismo, como «único movimento suficientemente poderoso que está em condições de agir globalmente» (p.49), uma vez que se apoia num universo humano que vive uma realidade particularmente difícil. O Islão não tem conseguido, de facto, examinar a parte de culpa que tem pela prostração económica e política dos seus 1300 milhões de fiéis. O declínio civilizacional do qual tem sido cúmplice, iniciado pelo século XV e associado à recusa da revolução tipográfica, terá hoje que ver com o modelo económico colonial e pós-colonial no qual vivemos. Mas os regimes islâmicos ampliam os seus efeitos ou reforçam constantemente os sentimentos de frustração e de inferioridade dos seus súbditos, submetendo-os à miséria e ao analfabetismo, escravizando as suas mulheres, conduzindo a um gigantesco brain drain, impossibilitando um desenvolvimento social harmónico, mas convencendo-os ao mesmo tempo da sua superioridade em relação aos demais habitantes do planeta.
É neste caldo de cultura que o perdedor radical se movimenta, ainda que a esmagadora maioria dos seus alvos seja afinal constituída por muçulmanos, como tem acontecido no Iraque, no Afeganistão, nos países do Magrebe, no Líbano e até na Palestina. O que não espanta Enzensberger, dado o facto de o seu objectivo consistir precisamente «em tornar o maior número possível dos outros em perdedores» (p.105). Na realidade, as correntes islamitas não estão interessadas em soluções para os dilemas do mundo árabe, limitando-se à negação: «Trata-se de um movimento apolítico, no sentido estrito, pois não se coloca numa exigência negociável. Em última análise, deseja que a maioria dos habitantes do planeta, composta por não crentes e infiéis, capitule ou seja morta.» (p. 109) Ao mesmo tempo organiza o suicídio de uma civilização inteira, numa orgia de morte que crê redentora.
Neste livro incómodo, Enzensberger dimensiona urgências. Aponta a mira telescópica para o perdedor radical isolado, suscitando a clara percepção de que este não é um perigo negligenciável. E muito menos passageiro.
Foi um oportuno post de Joana Lopes que me chamou a atenção para as declarações de Jorge Sampaio ao pasquim gratuito Sexta – por desinteresse passei a deitá-lo no lixo sem o abrir –, a propósito daquilo que este considera ser a instalação da ambiguidade na linha de separação que hoje possa ainda traçar-se entre o que é a esquerda e o que significa a direita. Segundo Sampaio, que enquanto PR nos atirou à cara ad nauseam com o seu passado de combatente pelas causas da liberdade e da justiça social (que apesar de todas as vicissitudes foram e são essencialmente património da esquerda), «não podemos ficar reféns de debates ideológicos» e o que conta nos tempos que correm é sobretudo uma aplicação de «políticas concretas e sustentáveis». Que não possuam cor, ou que desejavelmente a não tenham. Uma ideia estafada, com pelo menos duas décadas de eco, como se sabe. E potencialmente de direita. Mas que poderá ser considerada por alguns dos preclaros membros da Comissão Política Nacional dos socialistas, tendo em vista a próxima revisão do programa partidário. Se é que este ainda lhes merece um minuto de atenção.
Completam-se hoje precisamente 45 anos sobre o lançamento de Please Please Me, o primeiro álbum dos Beatles, gravado numa única sessão de 15 horas em 11 de Fevereiro de 1963. O valor simbólico deste momento na cultura popular do século XX tem sido desvalorizado por quem não possui uma clara memória da época ou tende a menosprezar o impacto da então nova cultura juvenil. A ingenuidade quase pueril das letras dos primeiros temas, a linearidade dos arranjos iniciais, a forte concorrência transgeracional dos mais longevos Stones (cujo álbum inaugural saiu apenas um ano depois), bem como a complexificação posterior do rock, contribuíram também para a instalação de um certo desinteresse pelos primeiros tempos dos fab four junto das gerações mais recentes. Olhando este vídeo, percebemos que existia uma nova energia no ar.
Todo o país viu as imagens e fala no caso da agressão da aluna da Carolina Michaëlis à sua professora de Francês. A atitude é de unânime condenação, embora eu desconfie que alguns estudantes da faixa etária da agressora possam considerá-la uma heroína e, em certos casos, tenha já «molhado o pão» no apetitoso lombo de outro infeliz docente (ou, pelo menos, tenha sentido uma quase-irreprimível vontade de o fazer). Têm sido distribuídas as culpas por toda a gente, colocando-se por vezes a agressora – que não deixa de o ser pelo facto de não ter batido na cara da professora – numa posição protegida de «vítima do sistema» que lamentavelmente perdeu a compostura. Sem querer insistir no que tem sido dito (um largo leque de posições pode ser encontrado na caixa de comentários de um post de Daniel Oliveira), chamo a atenção para algumas coisas que me perturbaram particularmente e que estão para além da agressão em si. São elas a cumplicidade ou a inacção do conjunto da turma, a falta de uma reacção decidida da professora, a não-apresentação imediata de queixa, a incapacidade da direcção da Escola para tomar medidas claras e prontas (e depois para esclarecer devidamente a opinião pública), a revelação de uma sucessão de casos análogos ou piores entretanto silenciados, o facto da esmagadora maioria das vítimas destes casos serem mulheres, o silêncio conivente dos pais dos jovens agressores (que terão a dizer disto as sempre tão buliçosas «comissões de pais»?). E ainda a real responsabilidade dos governos que têm vindo a retirar prestígio e autoridade aos professores.
O caso leva-me a reflectir sobre a minha própria experiência, e a falar aqui de um assunto que permanece tabu, ainda que falado entre dentes, com sinais de vergonha, por professores, agora do ensino superior, que não sabem o que fazer e começam também a temer o pior. Dou aulas numa universidade desde 1981, e, naturalmente, ao longo de todos estes anos tenho-me confrontado, na relação mantida com dezenas de milhar de alunos, com comportamentos muito diferenciados no espaço das aulas. Apesar dessa diversidade, e tendo conservado sempre uma relação nada autoritária com a generalidade deles, jamais tive o menor problema disciplinar. Tanto quanto sei, a mesma coisa se passava com quase todos os meus colegas (as raríssimas excepções ficaram quase sempre a dever-se a atitudes de incompetência ou de arbitrariedade). Quando começaram a suceder-se os problemas disciplinares nas escolas secundárias, estes não se reflectiram logo nas universidades, presumindo-se sempre que os estudantes entretanto «cresceriam» e manteriam já comportamentos responsáveis quando chegassem aos nossos anfiteatros.
Mas tudo mudou há cerca de dois ou três anos atrás. A verdade é que, após as sucessivas vagas de alunos com deficiente formação científica imposta por programas e métodos no mínimo discutíveis, começaram a chegar às escolas superiores estudantes com uma quase nula formação cívica e frágil capacidade de autoresponsabilização. E, pela primeira vez, eu e muitos colegas – com toda a experiência de anos de trabalho, com todo o prestígio que a maioria acreditava ter conquistado para a vida – começámos a ter problemas: alunos que conversam sistematicamente durante as aulas, que chegam atrasados todos os dias, que entram e saem sem uma palavra, que não desligam o telemóvel, que se dirigem ao professor de forma impertinente, que exigem facilidades confundidas com direitos sem cumprirem deveres, que em muitos casos nem sequer distinguem claramente as competências de quem ensina e as suas próprias obrigações. Falta o último passo que, ao que se vê, no ensino secundário há já muito tempo foi dado: transformar as aulas num campo de batalha. Este passo não é inevitável: quero acreditar que, a ser bem aplicado, o previsto sistema de tutorias possa ajudar a melhorar os processos de responsabilização e a articulação entre a vida e a escola, como quero acreditar que a ampliação dos cursos de 2º e 3º ciclo traga para a vida nas escolas superiores pessoas mais amadurecidas e tolerantes. Como acredito nos alunos interessados, empenhados e até afectuosos. Mas temo que, entretanto, algo de mau possa acontecer.
Claro que a maioria dos estudantes universitários – sei-o por tentar andar de olhos abertos e graças a uma sucessão de óptimas experiências pessoais – não se enquadra neste cenário de catástrofe anunciada. A maioria dos alunos do secundário, acredito, também não se adequará a ele. Só que aos outros, aos elementos de uma minoria a quem é permitido protagonismo, o sistema educativo em vigor e as políticas que estão a ser aplicadas, minando a centralidade do professor na escola como na sociedade, conferem um grau de manobra cada vez mais perigoso. Que o meio social envolvente observa demasiadas vezes com um encolher de ombros.
P.S. – Pouco deve interessar, em casos como aquele que desencadeou o actual debate, o desculpabilizador discurso pedopsi sobre o telemóvel enquanto prótese. A admissibilidade do seu uso imoderado começa quase sempre em casa e apenas é possível porque, daí até à escola, tem sido mantida toda uma rede de permissibilidade que não deixa muitos jovens perceberem (ou não os obriga a perceberem) que existe uma dimensão de sociabilidade moderadora da utilização lúdica ou produtiva da máquina, de qualquer máquina. Que há vida para além dela.
A memória recuada que tenho da Sexta-Feira Santa remete-me para uma memória de medo seguida de perto por um sentimento de revolta. O medo era o da criança de educação católica a quem contavam dos raios e dos coriscos reservados, a par de um lugar no Inferno, a quem ousasse comer carne (embora quem pudesse enchesse a boca de amêndoas e coelhos de chocolate). E como eu sentia vontade, principalmente naquele dia, de comer um enorme bife, com ovo estrelado a cavalo e montanhas de batatas fritas! A revolta sobreveio anos mais tarde, quando as quatro estações da rádio e o canal único de televisão iniciavam quarenta e oito horas de uma programação apenas preenchida com vias-sacras, prédicas, penitências, mensagens do patriarcado, peças de Schumann e de Brahms, e cantorias de igreja de qualidade muito duvidosa, não me deixando, como sempre, entrar em órbita com o programa Em Órbita, minha escola e santuário. «Ao terceiro dia», o domingo de Páscoa emergia como tempo de júbilo e um regresso à vida.
As autoridades chinesas do Tibete garantem que uma centena de pessoas se entregou à polícia, reconhecendo ter participado nos motins de sexta-feira passada em Lhasa, capital do território. (…) Este é o primeiro número divulgado pelas autoridades locais desde a meia-noite de ontem, fim do prazo dado (…) para que os participantes nas manifestações se entregassem. As autoridades prometiam clemência, avisando que quem ignorasse a ordem seria severamente punido pelos seus actos. (publico.pt)
Os métodos continuam os mesmos. E os silêncios que os acompanham também. Admitindo que aquelas vozes das sombras, capazes de utilizarem nas suas proficientes análises expressões como «a promoção do feudalismo tibetano continua a desenrolar-se», «esse bandalho do Dalai-Lama» e «as tais ‘revoluções coloridas’ da Europa do Leste», já não contarão assim muito.
Pedagógico e demolidor o suplemento P2 do Público de hoje sobre os «Trinta anos que mudaram uma ilha». Trinta anos da Madeira de A. J. Jardim, evidentemente. O mesmo que dizer trinta anos de regionalização intensa e de muitas obras, de alguma ou de bastante utilidade, mas também trinta anos de corrupção, arbitrariedade, clientelismo king size e total descontrolo da despesa pública. Um bom exemplo na página 12: à melhor rede regional de edifícios escolares corresponde a maior taxa de analfabetismo do território nacional, o pior índice de aproveitamento, uma das mais elevadas percentagens de abandono e quase sempre os últimos lugares no ranking das escolas. Acrescento outro: uma rede de serviços de saúde megalómana e desproporcionada acompanha aquela que é de longe a maior taxa de alcoolismo do país. Dados que já não surpreendem, mas não deixam de chocar pela impunidade que suscitam. O mesmo no que concerne ao funcionamento obscuro da administração pública, à conivência da hierarquia católica com o poder, à tutela sem princípios da comunicação social, ao emaranhado reticular dos favores, à ausência de transparência nos concursos públicos, à inexistência do regime de incompatibilidades aplicado aos titulares dos cargos regionais, à política do betão que está a destruir a ilha diminuindo a qualidade ambiental e o nível da procura turística, ao endividamento constante e sem controlo. Trinta anos também da maior agressividade sobre quem se limite a denunciar esta vergonha. Tudo sob o olhar indulgente dos sucessivos governos da República. Sempre com um sorriso de circunstância guardado para o actor principal deste longo drama com ares de comédia.
Adenda – Já que falo do Público, uma nota negativa para um aspecto da nova colecção – para já, aparentemente útil e de fácil consulta – sobre a vida e a obra de alguns dos «Grandes Pensadores» da cultura do Ocidente-Norte: como é possível avançar com uma iniciativa destas, e divulgá-la profusamente, sem identificar a autoria dos volumes? Sinal positivo: disse-me hoje a senhora do quiosque onde levantei o meu exemplar que todos os clientes interessados se queixaram do mesmo.