Um cheiro a pólvora

A condenação do sequestro de Ingrid Betancourt e da utilização de reféns como princípio de acção política feita agora por Hugo Chávez e por Fidel Castro – muito tempo depois de o poderem ter declarado com outra força e outra legitimidade, e não apenas nesta altura, sob a pressão da opinião pública mundial -, ainda que suave, deixa sem argumentos os indefectíveis defensores do carácter «glorioso» da actividade das FARC. Assobiarão para o lado ou inventarão qualquer coisa, claro. Os mais teimosos agarrar-se-ão ainda mais ao seu mundo obsoleto e perigoso. Ao seu ideal de revolução lançada contra o «inimigo de classe» e necessariamente temperada, como diria o coronel Bill Kilgore (interpretado por Robert Duvall) em Apocalypse Now, «com um cheiro a pólvora pela manhã».

    Atualidade, Opinião

    Metropolis 210′

    Uma cópia em bom estado de conservação descoberta num arquivo cinematográfico de Buenos Aires permitiu agora recuperar a versão original de Metropolis, de Fritz Lang. Estreado em 1927, o filme viria a ser severamente mutilado pelos nazis e depois cortado também pela censura americana, vendo-se reduzido dos 210 minutos iniciais para os 114 minutos que a generalidade dos espectadores hoje conhece. Aguarda-se com expectativa que nos chegue a renovada versão dessa colossal ficção de uma cidade-metáfora sobre/sob a qual foi possível construir uma sociedade de trabalhadores sem rosto, convertidos em máquinas ao dispor de uma elite que se cria tão superior quanto imortal. Uma fábula ainda do nosso tempo.

      Apontamentos, Cinema

      Estado de prontidão

      Protecção anti-nuclear chinesa para equídeos. Concebida em 1970. No tempo em que o Glorioso Pensamento do Presidente Mao ensinava que tudo era possível desde que o povo fosse capaz de se apoiar «nas suas próprias forças». Quando a convicção era tudo e o grande inimigo – fosse ele o abominável imperialismo americano ou o horrendo social-imperialismo russo – não passava de «um tigre de geleia de feijão».

        História

        Critérios de verdade

        Em declarações ao Expresso, a ministra da Educação negou querer governar para as estatísticas. Recusando as críticas de facilitismo vindas de quase todo o lado, afirmou até que «o ensino é hoje mais exigente». Entretanto, confrontada na RTP1 com uma subida média de 3,2 valores, em apenas um ano, nas notas de Matemática dos Exames Nacionais do Secundário, e ao contrário daquilo que foi até publicamente reconhecido por muitos alunos, negou que os critérios de avalição tivessem sido menos rigorosos. Espera-se agora que declare ser o Sol que gira à volta da Terra e não o contrário, como deslealmente insistem em afirmar determinados professores. Custa muito ver a mentira descarada e a mais rasteira demagogia – aparentemente acompanhadas de delírios persecutórios e de alucinações – a entrarem-nos casa dentro sem pedirem licença. É um mau exemplo para as crianças.

          Apontamentos, Atualidade

          Ingrid livre (epílogo)

          Já foi divulgada a posição do PCP. Faço inteiramente minhas estas palavras. Abjecto será também um bom qualificativo.

          PS – Esta posição é ainda mais explícita e sincera, como seria de esperar. Repare-se na nuance semântica: os prisioneiros das FARC não eram «detidos», mas sim «retidos». E a cidadã Ingrid apenas um vil «membro da classe dominante colombiana», que obviamente merecia a cela-modelo na qual teria estado «retida» sempre «em boa saúde».

            Apontamentos, Olhares

            História a duas vozes

            Publicado originalmente em Caminhos da Memória

            O número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire transporta consigo, para além de um notável dossiê sobre as conexões entre humor e literatura, a reprodução de uma conversa – «L’Histoire, victime de la mémoire?» – entre o académico Pierre Nora, actual director da revista Débat e autor do incontornável Les Lieux de la Mémoire, e Élie Barnavi, professor da universidade de Tel Aviv e conselheiro científico do Museu da Europa, em Bruxelas. Mais do que a exposição de duas formas absolutamente opostas de olhar a relação entre memória e história, ela serve para ajudar a desmistificar a ideia segundo a qual esta última é um saber frio e unívoco, do qual os valores da subjectividade e da cidadania se devem manter desejavelmente afastados.

            Traduzindo os destaques (que sugerem muito bem o tom de toda a conversa a duas vozes):

            Barnavi: «A História tem sido notificada para se colocar ao serviço da memória. Esta apropriação da História parece-me uma das características mais graves da nossa época.»

            Nora: «O tempo no qual os positivistas conservavam à distância a história contemporânea parece hoje completamente ultrapassado. Fazer História é fazer história contemporânea.»

            Barnavi: «Um dos males que corrói a nossa época é a confusão de papéis entre o historiador e o ideólogo.»

            Nora: «A memória incorpora doravante uma reivindicação particularista, subjectiva e peremptória, quando não é terrorista.»

            Um debate que é para (e que deve) continuar.

              História, Memória

              Ingrid livre

              2321 dias após ter sido capturada pelas FARC-EP – durante uma acção de campanha da sua candidatura presidencial ecologista em território que estas controlavam -, Ingrid Betancourt foi finalmente libertada. Numa acção da inteligência militar e não por iniciativa daquele movimento de guerrilha, especializado em sequestros e acções de intimidação, como se apressou erradamente a afirmar Evo Morales, o presidente da Bolívia: «es muestra clara de las FARC que libera a los detenidos». Aguardamos agora as reacções de todas as partes. Lá na Colômbia, mas por aqui também.

              Uma notícia destas suscita um comentário como aquele que se segue, colhido dos comentários publicados pelo Portugal Diário. Vale pelo exotismo, mas também pela amostra do caldo de cultura alucinogénio do qual se alimenta.

                Atualidade

                Brincar à caridadezinha

                Manuela Ferreira Leite, muito bem entrevistada para a TVI por Constança Cunha e Sá, acaba, enrolada em constantes contradições, de declarar que a forma de resolver os «problemas económicos das famílias» é, no actual contexto de crise, apoiar – «mas jamais com subsídios, que isso fazem os socialistas» – a actividade das «instituições de solidariedade social». Calculo que se referisse às misericóridas, aos orfanatos, aos lares de idosos, às «obras das mães», à sopa dos pobres e aos alcoólicos anónimos. Se tais instituições se não apoiam com subsídios, calculo que apenas o possam ser com rifas, leilões e peditórios. Eis uma política social de rasgo.

                  Apontamentos

                  Uma tirania mais ou menos

                  É preciso dizer claramente que a forma como a generalidade dos dirigentes africanos presentes na cimeira da União Africana recebeu Robert Mugabe, com toda a afabilidade e sem referirem a ilegitimidade do título presidencial que resolveu ostentar, constitui uma vergonha que mancha a sua própria credibilidade. E é uma prova do enorme desprezo que têm pelas regras da legitimidade democrática que admitem apenas quando estas lhes servem para se manterem no poder. Uma vergonha que deve ser associada também à atitude das poucas forças políticas europeias que se recusam a condenar abertamente o tirano racista e cleptocrata e o actual regime zimbabweano. O PCP, infelizmente, tem sido uma delas.

                    Atualidade

                    Se Habla/On parle English

                    Quando oiço um camionista francês a explicar aos jornalistas as razões da sua luta na língua de Elizabeth Alexandra Mary, ou quando vejo os espanhóis comemorarem a vitória no Euro-2008 com uma frase em inglês macarrónico gravada nas suas camisolas rojas («impossible is nothing»: leia-se impóssiblé ize nótin), apenas posso concluir que o futuro do mundo se encontra inapelavelmente naquele linguajar técnico que Rex Harrison ensinava com toda a paciência a Audrey Hepburn em My Fair Lady.

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                      Apontamentos

                      Perfídia

                      Publicado originalmente em Os Livros Ardem Mal

                      Este título não me foi sugerido pelo bolero clássico de Alberto Dominguez, que todos em algum momento trauteámos ou ouvimos ao sintonizar uma rádio regional. A palavra avalia aqui o próprio post, como sinónimo de insídia ou de infâmia, e isto sabemos bem o que é: a sugestão de algo do qual suspeitamos, que aparentemente adivinhamos, mas do qual falamos de um modo impressivo e sem qualquer espécie de prova.

                      De cada vez que entro numa livraria encontro mais e mais ficção em português, quase toda ela próxima do romance histórico ou contendo uma óbvia componente autobiográfica. Transbordam os escaparates-placard, as estantes já não chegam, rimas de volumes por debaixo das mesas, os empregados incapazes de memorizarem títulos que identificam, quanto muito, pelas capas coloridas. Independentemente da medida da originalidade ou dos atributos literários – que diferem bastante mas podemos situar numa faixa média-baixa, próxima dos gostos da nova camada de viciados em literatura de hipermercado – aquilo que mais surpreende não é o número assombroso dos títulos, mas sim o dos autores. Ainda que muitos deles o sejam de um livro só. Mais estranho ainda é que a maioria seja gente crescida, em regra com uma vida já razoavelmente larga, mas que antes daquele título não publicou o quer que seja, e seja em que género for, com um mínimo de relevo e de consistência. Pelo menos algo que não seja uma edição de autor para oferecer à madrinha e impingir aos amigos, e possa constar das bases de dados das bibliotecas. Uma dúvida que me parece legítima perante tal acesso de súbita criatividade em tanta gente ao mesmo tempo, é a seguinte: não estará a profissão de ghostwriter em fulgurante ascensão entre nós? Outra dúvida é: não terá aumentado o número de editoras que publica livros com um financiamento muito substancial da parte dos próprios autores?

                      Apenas perfídia. Peço desculpa, com licença e obrigado.

                       

                        Apontamentos

                        Ser comunista

                        Pietro Ingrao permanece aos 93 anos, «um homem brilhante, idealista e romântico». Assume, em entrevista ao suplemento Babelia realizada a propósito da tradução espanhola do autobiográfico Volevo la Luna, que o comunismo falhou, «que o assalto ao Palácio de Inverno fracassou». Mas não se rende. Ao seu modo poético de ser comunista, de se não rebaixar à repetição e ao estereótipo, de evocar a memória rejeitando o azedume, de conservar em tempos difíceis o optimismo revolucionário, é possível admirá-lo. Mesmo quando dele nos afastamos.

                          Atualidade, História, Olhares

                          A música mais indesejada do mundo

                          «A música mais indesejada do mundo» (noutra tradução, «a mais supérflua»), foi escrita por Vitaly Komar e Alexander Melamid, artistas plásticos e performers russos, de origem judaica, que trabalharam em parceria entre 1965 e 2003. Através de efabulações centradas em apropriações da memória colectiva, construíram uma obra única cujo núcleo original se formou a partir de uma aproximação aparentemente impossível, ou contranatura, do dada ao realismo socialista. Uma experiência que, como seria de esperar, em 1973 lhes valeu a expulsão da secção juvenil da União dos Artistas Soviéticos na qual haviam acabado de entrar – acusados de «distorção da realidade soviética» -, e mesmo a destruição pública de algumas das suas obras. Encontra aqui uma descrição desta The Most Unwanted Music, expressamente concebida para, nos seus 25 minutos de duração, soar desagradavelmente ao maior número possível de ouvidos. Não se aceitam reclamações.

                          [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/06/komarmelamid_the-most-unwantedsong.mp3]

                          PS – Um leitor chamou a atenção para um erro que cometi por ter partido de informação incorrecta. De facto, a peça não foi escrita por Komar e Melamid, mas sim por Dave Soldier (música) e Nina Mankin (letra), a partir de uma ideia dos primeiros. Mais dados aqui. Obrigado pela correcção.

                            Devaneios, Música

                            Feminismos

                            São de facto impressionantes, para um país como Portugal no qual jamais existiram movimentos feministas organizados, consistentes e com uma efectiva capacidade de intervenção, o número de participações e a dimensão do Congresso Feminista que começa amanhã, dia 26, em Lisboa, e se prolonga até ao dia 28. Este será plural, com toda a certeza. E dissonante, provavelmente, porque felizmente não existe um feminismo hegemónico. Esperemos também que represente um ponto de viragem, ao qual o poder político – que nem sequer se faz representar e vergonhosamente se furtou a apoiar o evento – deveria estar atento.

                            PS em 29/6/2008 – Ontem o secretário de Estado Jorge Lacão esteve presente na sessão de encerramento do Congresso. Mas a sua intervenção não estava inicialmente prevista. Depois de vista a dimensão do acontecimento…

                              Atualidade

                              Ourivesaria

                              Este post não é sobre futebol, mas sim sobre ourivesaria (e alguma argentaria também). Duas Taças dos Campeões Europeus ganhas pelo Benfica, a primeira e a última das Taças de Portugal que o clube conquistou, a Taça Latina, dois troféus relativos a Campeonatos Nacionais, camisolas utilizadas por antigas glórias do clube e uma das botas de ouro do Eusébio estão há quase um mês retidos na alfândega do aeroporto de Luanda. Não é que seja legítimo desconfiar de alguém que more nas imediações do Futungo de Belas – uma ideia absurda, sem dúvida –, mas é compreensível a ansiedade dessa nação benfiquista que aguarda o retorno dos sacros objectos à sua Caaba.

                                Apontamentos, Etc.

                                Sorrisos e turbantes

                                Quando será que um certo feminismo, como uma determinada esquerda, aceitarão que a luta social não tem necessariamente de ser sempre sisuda, monástica, zangada e maniqueísta? E que vivemos num mundo muito mais desordenado – e polissémico, se quiserem utilizar o chavão – do que o era o mundo de há trinta ou quarenta anos atrás? E que sátira e ironia nem são a mesma coisa nem cumprem idêntica função? A consideração devida a pessoas com o passado de Maria Teresa Horta não pode ser desculpa para aceitarmos posições como aquela que aqui se refere (link recolhido deste post da Maria João), e que se voltam até contra a causa que pretendem defender. Além de que aceitar que algo possa ser imune ao riso é pactuar com a limitação das liberdades. E é dar um pouquito de razão aqueles que têm uma grande vontade de enviar rapidamente para o mais fundo dos infernos o caricaturista holandês que brincou com o turbante do Profeta. Lembram-se das últimas cenas de La Vita è Bella, de Begnini?

                                P.S. em 24/11/2008: Teresa Horta repete hoje, em carta do leitor no Público, o mesmo tipo de argumento. Está no seu direito de o fazer, evidentemente, mas é pena não ter percebido. Lembrar-se-á ainda da Mosca do Diário de Lisboa, nos inícios da década de 1970? Ou será que já na época lhe não achava graça?

                                  Etc., Opinião