Banda sonora: Hector Zazou – Sahara Blue
Passado que não foi passado
Já se sabia há algum tempo que Julius Rosenberg, executado em Junho de 1953 na prisão de Sing-Sing em conjunto com a mulher, Ethel, ambos sob a acusação de conspiração e espionagem científica a favor da União Soviética, fora realmente um agente infiltrado. Após décadas de trabalhos e canseiras durante as quais procuraram provar a inocência dos pais, Michael e Robert, os órfãos do casal Rosenberg, aceitaram a nova versão do co-arguido Morton Sobell e acabam de reconhecer a verdade. O singular é que foram precisamente a presunção da sua inocência e a campanha pela sua ilibação que fundaram, na época de arranque da Guerra Fria, o reconhecimento de uma espécie de maldade natural do sistema penal americano junto da opinião pública dita «progressista». Este reconhecimento vem pois suscitar uma reescrita do lugar do episódio na memória profunda do antiamericanismo ocidental.
Quarta-feira em Macau
Se existe coisa que escapa facilmente ao autor é o destino dos textos públicos que este escreve. Cada leitor recorta o que lhe apetece recortar e tanto o pode afixar num placard de escola como passá-lo a um amigo ou transcrevê-lo num blogue. Refiro-me principalmente a fragmentos, que facilmente se emancipam dos textos originais.
Já me parece menos transparente o que acaba de fazer o diário Hoje Macau a alguns posts dispersos d’A Terceira Noite (e não só, ao que sei). Preenchendo com eles uma página inteira do jornal, e conferindo-lhes uma unidade que não tinham, deu a entender ao leitor comum que se trataria de uma colaboração formal do seu autor, o que não é verdade. Não é prática que ofenda por aí além e compreendo as aflições de quem com relativamente poucos colaboradores tenha de produzir diariamente um jornal, mas parece-me que teria sido correcto enviar por e-mail um pedido de autorização. Como teria sido igualmente avisado não abusar da obra alheia dando-lhe um formato que na origem esta não tinha. Divulgo o episódio por razões profilácticas, para prevenir eventuais recaídas. Ao Hoje Macau vou enviar, cordialmente, o link para este post.
Michelangelo, Jane e o trotskismo
Da primeira vez, vi magnetizado Blow-Up. Não sei quando estreou em Portugal, rebaptizado História de um Fotógrafo e com alguns cortes, o filme de Michelangelo Antonioni baseado num conto de Julio Cortázar, mas julgo que não foi logo em 1966, pois nessa altura o contacto dos corpos e a nudez frontal de Jane Birkin, a anglo-francesa que um dia atirou um futuro ministro do Governo para os braços do trotskismo, eram mais-que-improváveis nas salas portuguesas. Devo-o ter visto uns quatro anos mais tarde, durante a frágil e fértil abertura marcelista. Na altura, ainda não demasiado impressionado pelas fixidez realista que o marxismo de seguida me iria impor – aliás, o filme interroga justamente a definição/indefinição do conceito de real –, senti-me perturbado com o jogo de luzes, de lentes, de vidros e espelhos, e pelo fortíssimo erotismo, que cercava os gestos um tanto nervosos e desajeitados de Thomas/David Hemmings. Falo disto porque me passou agora pelas mãos a banda sonora do filme, em parte da responsabilidade de um então muito jovem Herbie Hancock. Aqui fica, com as «vassouras» inconfundíveis de Jack DeJohnette, mais o contrabaixo de Ron Carter e a guitarra de Jim Hall, o deslizante Jane’s Theme. Esta Jane, já agora, era Vanessa Redgrave, também ela uma futura militante trotskista. O mundo é pequeno.
10:37 AM
Are the times a-changin’?
Do Público online
É o capitalismo, seus distraídos
O Estado é bom quando protege as empresas e pérfido quando ampara as pessoas que precisam de amparo. Essa é a velha lógica do capitalismo e tem séculos de existência. A retórica neoliberal sobre a autonomia do mercado é apenas isso, retórica: só vale quando se teoriza em abstracto sobre a maldade do proteccionismo económico e a interferência nefasta dos movimentos sociais na construção de uma «prosperidade» selectiva. Não percebo em que é que a ajuda do governo federal ao até hoje quase falido American Internacional Group pode agora causar tanto espanto a certos analistas.
Interacção [1]
Sem guia
O escândalo partiu de onde menos se esperava. Thomas Kohnstamm, autor de diversos volumes da Lonely Planet, a colecção de guias de viagem utilizada durante muito tempo por quem pretendesse libertar-se da ditadura francófila e dispendiosa dos Guias Michelin, resolveu contar – e fazer dinheiro com isso, publicando e vendendo às centenas de milhar Do Travel Writers Go To Hell? – de que forma redigiu os seus textos sem ir a muitos dos lugares dos quais falava. Ou passando por lá mas viajando, comendo e dormindo de uma forma bem diferente daquela que depois relatava aos seus leitores. Algumas vezes aceitando luvas para recomendar determinados hotéis, sugerir certos restaurantes, ou para fazer passar baiucas por bares imperdíveis. Fazendo-o, pois era bom nisso, de uma forma inteiramente convincente. Uma ou outra discrepância entre a realidade e o vertido no papel que alguns dos seus leitores iam notando passava sempre por excepcional, ou por azar do viajante. Foi preciso Kohnstamm escrever este livro para o embuste ser revelado.
A verdade, para que não me acusem de algo parecido, é que não li Do Travel Writers Go To Hell? – até uma excelente narrativa de viagem, dizem-me, e por isso vou ver se o arranjo – mas apenas as quatro páginas, escritas por Luís Maio, que sobre ele saíram ontem no suplemento «Fugas» do Público. O suficiente, porém, para ficar na dúvida sobre até que ponto muitos outros autores de guias disponíveis fizeram ou fazem a mesma coisa. E para perceber melhor de que forma muitos deles deixaram, ao contrário do que ocorreu num passado ainda recente com viajantes por sua conta e risco como Bruce Chatwin, Bill Bryson, Tony Horwitz ou Jeffrey Tayler, de seguir as suas próprias escolhas e de construir uma leitura crítica dos locais e regiões visitados, para vender ao leitor uma imagem apenas divertida, excitante ou serena de sítios nos quais este pode afinal ser explorado, passar um mau bocado ou conviver com todos os perigos. Se já olhava um tanto de lado os guias demasiado ilustrados que costumam inundar as livrarias a partir de Março e os textos xaroposos e superficiais com fotografias do autor-viajante enquanto poseur que passam por literatura de viagens (ou são-no a uma escala menor), agora mais desconfiado fiquei.
Anche noi
Apesar de tantos e tão justificados rumores em redor do centenário do poeta, romancista, crítico literário e tradutor Cesare Pavese (1908-1950), chegados durante esta última semana de todas as partes, quase ia passando em claro este pedaço de noite.
Anche noi ci fermiamo a sentire la notte
nell’instante che il vento è piú nudo: le vie
sono fredde di vento, ogni odore è caduto;
le narici si levano verso le luci oscillanto.
Também nós paramos para sentir a noite
no instante em que o vento é mais nu: as ruas
estão frias de vento, todos os odores caíram;
as narinas erguem-se para as luzes que tremem.
Fragmento de «Piaceri Notturni»
(Trad. de Carlos Leite in Trabalhar Cansa, Ed. Cotovia)
O pesado fardo
Encontrei por acaso e estou a ler mais devagar do que gostaria um pequeno livro de Tony Judt já com dez anos. Em The Burden of Responsability, o historiador e director do Erich Maria Remarque Institute aborda os trajectos de Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron. Três intelectuais franceses do século XX – intelectuais naquele sentido zoliano fora de moda – que partilhando a atitude de empenhamento na vida pública conservaram sempre uma certa condição de outsiders. Em tempos duros para quem o fazia, quando a pertença a famílias políticas de contornos bem nítidos determinava rapidamente convenientes apoios ou exclusões sem apelo. Quando seguir um caminho autónomo representava um fardo pesado e inevitável para quem se atrevia a fazê-lo. Todos eles pagaram de alguma forma por isso, e, no entanto, talvez também por isso a evocação dos seus percursos lhes devolva hoje parte de uma integridade roubada. Mesmo quando se não aceitam – comigo isso passa-se principalmente com Aron, muito menos com Camus – algumas das suas escolhas.
Este blogue apoia / This blog supports Palin
Michael, Michael Palin.
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Before and After
«In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?»
–William Blake, The Tyger
Awakened from her slumber
she knew something had gone–
a drowsy innocence,
a complacent naitivity…
suddenly, in rude simplicity,
gone.
Shut against the world,
thousands of deaths evade her eyes;
their blood her own
spilled by her own–
an indifference.
Their blood her own,
in thousands (neither more nor less)
suddenly, in rude simplicity,
gone–
And now,
some how,
a difference.
Um poema de Julie Craig
Ou vai ou racha
A gigantesca «Máquina do Génesis» entrou hoje em funcionamento no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), tentando recriar a paisagem do Big Bang que teve lugar há cerca de 13,7 mil milhões de anos. Mas como a primeira colisão frontal de protões apenas está prevista para daqui a alguns meses, ainda não será desta que se dará o esperado Estoiro-Mestre. Todos contamos que os milhares de cientistas que andam há vinte anos a gastar rios de dinheiro para conseguirem simular os primeiros milésimos de segundo do Universo saibam mesmo aquilo que estão a fazer. Embora os mais avisados de nós saibam também que jamais existirá ciência certa.
[Adenda] A acompanhar aqui.
Através da noite
Ela está exposta na sua frágil frescura
e um pouco mais longínqua e despojada.
Ele procura-a no cimo da montanha
ou numa vertente vertical. A noite é calma,
um barco atravessa o mundo. Junto de um rio
brilham chamas sem rumor. Dispersas
são as imagens e as vozes, mas reunidas
num outro mundo mais sereno e vagaroso.
Ele soletra a pedra nupcial e misteriosa.
Um grito rápido de pássaro atravessa a clareira.
Entre duas árvores cintila a Cassiopeia.
Passam esquivas sombras sob os ramos das árvores.
António Ramos Rosa
Banda sonora: Bouzou Bajou – Second to None
Castelhanos de visita
É triste reconhecê-lo, mas todos nós padecemos de momentos de fraqueza que nos transformam de repente em seres inanimados. Ou melhor, talvez eles não constituam algo de triste e apenas façam parte da natureza humana. Acredito que mesmo «o homem mais inteligente do mundo» terá os seus instantes de astenia, nos quais permanece imóvel estirado no sofá, de olhos em alvo pregados no tecto, escutando um daqueles cêdês que simula durante 72’56” o ruído repousante de um regato a correr por entre passarinhos e madressilvas.
O meu momento espiritual é bastante mais ruidoso e ocorre por volta da hora de jantar, quando ligo o televisor para mudar de canal até ao infinito. Foi mais ou menos por essa altura – aceito que perdi a noção exacta do tempo – que passei por dois concursos populares. Num deles, uma jovem com um aspecto conveniente admitia que jamais tinha ouvido falar da Padeira de Aljubarrota (calculo que a temática da panificação lhe passe um tanto ao lado). Noutro, cinco participantes (num total de cinco) no programa de cultura geral «do Malato» concediam não fazerem a mínima ideia da razão obscura pela qual todos os anos, em Portugal, o dia 1 de Dezembro é feriado. Posso reconhecer que o meu estado de consciência não seria o melhor, mas fiquei com a impressão de que os castelhanos já podem avançar, pois muitos portugueses achariam a iniciativa uma experiência curiosa, rara e nunca vista.
Imoral, pelo menos
A notícia chegou e partiu como todas as outras, mas deixou um rasto de repulsa que merece ser partilhado. Saber pelos jornais que existe um número impressionante de famílias portuguesas que se estão a endividar pesadamente para comprarem aos filhos manuais escolares necessários para a sua integração – repare-se bem – no ensino escolar obrigatório, e que existem mesmo livrarias que criaram linhas de crédito para esse efeito, é algo que não pode ficar em claro e merece uma atenção muito séria das pessoas comuns. Não quero saber se existem outros «países avançados» que o fazem, ou se isto funciona como uma mola para a sacrossanta «modernização do ensino». Sei apenas que é uma situação imoral e caracterizada pela insensibilidade, a qual, num país marcado ainda por áreas de pobreza endémica e pela debilidade da classe média, deixa uma vez mais cair a responsabilidade social do Estado. E deveria envergonhar, envergonhar a sério, os responsáveis por um governo com o carimbo virtual de «socialista».
A Festa, pá
Gosto de festas e nada tenho, garanto, contra a Festa do Avante! Em democracia, todos os partidos têm o direito de realizar os acontecimentos que entendam e, para mais, «a Festa» do PCP é sempre bem organizada e muito mais decente que aquele forrobodó etílico preparado no Chão da Lagoa pelos idólatras de Alberto João Jardim. Aliás, já fui a algumas, das quais conservo até excelentes recordações. A organização «da Festa» implica muitas pessoas, mobilizadas com antecedência, que dão o seu melhor em prol da celebração anual que lhes transmite a sensação de pertencerem a um colectivo que tem do seu lado os ventos da História. Poucas delas parecem reparar no facto de uma grande parte dos presentes ali estar como se está numa feira, numa romaria ou num festival de rock, nada lhes importando que seja o PCP, a Comissão Fabriqueira ou a empresa Som da Frente a organizar o evento. O importante, para os militantes, é projectar uma imagem da grandeza do Partido e da perpetuidade dos seus ideais, e isso parece-lhes assegurado. «Um grande êxito» que congregou «o melhor do esforço e da iniciativa dos camaradas», dirá sempre algum relatório.
Aparte o comício final, ao qual vão apenas os indefectíveis, o tom «da Festa» é pois… mais ou menos o de festa. O programa é agora bastante mais fraco e repetitivo que o de outros tempos, quando os fundos eram generosos e estar presente no acontecimento representava até, para muitos grupos ou artistas, uma importante mais-valia promocional. Mas o que importa é «o espírito» e esse, naqueles dias, ganha um novo fôlego. No final, de pin ao peito e boné posto, os militantes cantam o hino do partido e regressam a casa com uma consciência de missão cumprida, enquanto os outros, os «amigos» e os infiltrados, há já longas horas que estão no seu domicílio com os pés metidos numa tina de água e a trincarem amendoins à frente do televisor.
Um acontecimento respeitável, e acima de tudo normal, não fora o estendal de kitsch e de pactos com o passado no qual foi transformado o Espaço Internacional, desta feita com «especial atenção aos 90 anos da Revolução de Outubro». A informação que consta do Avante! online – e que pode ler aqui – é eloquente a esse respeito. Um bom exemplo foi uma vez mais fornecido pelo paupérrimo e triste pavilhão da Coreia do Norte (ali mais singelamente designada como «Coreia»), o qual, apesar da míngua da oferta facultada aos visitantes, não deixou de evocar in loco o companheirismo dos comunistas portugueses para com os responsáveis pela monstruosidade concentracionária na qual se tornou o seu «Estado dos trabalhadores». Afinal, não terá sido um mero deslize, próprio da idade, aquilo que na semana passada declarou à Visão a «jovem esperança» da JCP Patrícia Machado: «Uma vez que a Coreia do Norte resiste ao imperialismo americano e busca o socialismo, continuará a contar com o nosso apoio». São «detalhes irrelevantes» desta natureza que estragam tudo, incluindo o «espírito festivo». Digo-vos eu, que sou um apóstata e um descrente.