Entretanto no Bloco

À esquerda

Dez anos após a fundação do Bloco de Esquerda, a VI Convenção que decorreu neste fim-de-semana colocou um ponto final e abriu um parágrafo na sua curta e agitada história de sucesso. Se quisermos, o «velho» Bloco de causas, resultante de uma amálgama complexa de percursos colectivos e individuais que em 1999 procuravam sobretudo a construção de uma plataforma que lhes permitisse entenderem-se, seguiu o seu caminho natural, alijando algumas vozes discordantes que se foram afastando (quase sempre pacificamente, sem dramas, o que foi só por si uma novidade para quem vinha de um universo dogmático e habituado a purgas), mas conquistando ao mesmo tempo uma base social alargada e uma visibilidade pública que, nos seus tempos de prática política isolada, militante algum das organizações que lhe deram corpo vislumbrara nos seus melhores sonhos. Quando as sondagens são unânimes a considerarem a grande possibilidade de o Bloco ultrapassar o Partido Comunista, é agora todo um outro horizonte que se abre e que passa, previsivelmente, por uma intervenção cada vez mais apostada em apresentar alternativas de poder, ou com capacidade de intervenção num plano legislativo e de gestão política, no interior do sistema democrático que habitamos. A «esquerda grande» da qual falou ontem Francisco Louçã – expressão que traduz um daqueles tiques popularuchos que de vez em quando ainda escapam –, supõe também uma suposta maioridade que se traduz na superação de uma auto-representação do Bloco e dos seus presumíveis aliados como meras forças protestativas e de contrapoder.

O futuro dirá para onde nos leva o caminho agora aberto. Ficam, no entanto, dois problemas urgentes por resolver e não sei como irá o Bloco lidar com eles, uma vez que, enquanto partido adulto e «de confiança», não pode continuar a manter a seu respeito uma posição de público alheamento. O primeiro deles tem a ver com a posição face ao PCP, que continua assumir-se como um partido anti-sistema e que já declarou publicamente ver no Bloco um dos adversários a abater. A aproximação com os comunistas, como quase toda a gente sabe, apenas será possível numa situação crítica e de confronto com um inimigo maior – que felizmente não se vislumbra -, uma vez que lhes está nos genes identitários a vontade de se assumirem como força dirigente, arrastando atrás de si os sectores que considera «menos consequentes» e que apenas respeitarão enquanto os puderem instrumentalizar. O segundo problema tem a ver com o apagamento quase completo de uma esquerda radical, de protesto e de denúncia, não comprometida com as máquinas do poder, que o Bloco praticamente «secou». Este campo é necessário porque é ele quem pode dizer «inconveniências», apontando em quaisquer circunstâncias para a nudez do rei, e em breve os dirigentes bloquistas pensarão duas vezes, se é que o não fazem já, no preço político e eleitoral que pagam pelo empenho dado a combates demasiado delicados e a causas minoritárias.

Em todo o caso, e independentemente da forma como estes dois problemas poderão ser resolvidos, digo sempre a mesma coisa a quem me pergunta, perante as posições independentes e muito críticas que vou tomando aqui e ali – quase sempre distanciadas da minha frágil e efémera antiga militância bloquista -, se afinal irei votar nas próximas eleições. Digo que sim, que irei votar. No Bloco de Esquerda, claro.

    Atualidade, Opinião

    Crime organizado

    Crime

    Misha Glenny estudou em Praga e trabalhou diversos anos nos Balcãs, o que lhe deu uma certa vantagem no reconhecimento de alguns dos caminhos mais sombrios por onde, após o aluimento dos regimes socialistas do Leste, passou a alojar-se o universo desterritorializado da nova criminalidade. Com efeito a primeira parte de McMáfia: O Crime Organizado Sem Fronteiras (Civilização Editora) ocupa-se da Rússia e dos países que durante décadas orbitaram na sua área de influência política, dando particular destaque ao que ocorreu na Bulgária e que pode servir como paradigma de uma certa transição: os serviços secretos desempenharam ali, durante o período comunista, um papel muito importante no tráfico de armas e de drogas na Europa ocidental, e muitos dos seus ex-agentes transitaram directamente para o crime organizado. Sempre com muitos detalhes, o livro parte depois ao encontro das novas rotas abertas ao delito transformado em instituição a partir do final da década de 1980, abordando também a sua actividade e o seu impacto no Médio Oriente, na Índia, na Colômbia, no Brasil, no Japão ou na África do Sul. Da prostituição e do negócio das armas, ao comércio de drogas, diamantes e órgãos humanos, passando pelo cibercrime e pela contrafacção, é toda uma economia paralela, erguida hoje à escala planetária e assente numa ordem imposta pela lei e pela força do mais forte, que se abre aqui ao leitor. Fazendo da velha Máfia quase um pacato território de cavalheiros.

      Atualidade, Cidades

      ♪ Last Goodbye (um post triste)

      escarletxi

      Miss Johansson, a moçoila trigueira que impressiona favoravelmente 90% dos homens de meia-idade (e 89% dos outros), afinal canta um bocadinho pior ainda – ah, aquele «it’s over, it’s over» em re sustenido maior! – do que cantava outrora a Dra. Marilyn. Estarei errado?
      [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2009/02/17-scarlett_johansson-last_goodbye.mp3]

        Devaneios, Etc., Música

        Angola: o passado agora

        Angola

        José Eduardo Agualusa comenta no prefácio que escreveu para Fragmentos de Angola, de Sébastien e Thomas Roy (Teorema) que ali se dá a ver Angola, e em particular a cidade de Luanda, «não apenas a quem nunca a viu, mas também a quem sempre lá viveu e que, de tanto a ter diante dos olhos, se tornou cego para inúmeras evidências.» Talvez por chegarem de um mundo à parte, e sem a carga de memória de quem acompanhou de perto a descolonização e a destrutiva guerra civil, os dois franceses responsáveis por estas impressões de viagem e pelas fotografias a preto e branco que as acompanham produzem no leitor um efeito análogo ao de quem leia as notas de uma viagem até um planeta desconhecido. Fala-se aqui de uma Angola pós-guerra civil, que conhece finalmente a paz mas vê-a crescer associada a uma sociedade persistentemente desigual, na qual a esperança e o optimismo, nela quase essenciais, todos os dias se vêm confrontados com a ausência de um futuro previsível. É também um livro de «memórias em diferido», entre a reportagem e o devaneio literário, que vai associando a observação directa e o testemunho pessoal a referências explícitas fundeadas na história recente. Porque nesta paisagem, umas vezes desolada, pontuada por escombros, outras vezes luminosa e excitante, se vislumbram ainda, a todo o instante, as ligações com um passado do qual se vêem as sombras.

          Atualidade, Cidades, Memória

          Cobardia diplomática

          Algumas linhas mais ainda a propósito do caso das manifestações xenófobas, ocorridas no norte de Inglaterra, que visaram alguns trabalhadores portugueses e foram apoiadas por sindicatos locais (ver um pouco abaixo). António Santana Carlos, o embaixador de Portugal no Reino Unido, confirmou à imprensa que não se deslocou à região onde ocorreu o conflito mas conseguiu «falar com um trabalhador», embora não tenha especificado se o fez telefonicamente, se por e-mail, SMS ou Twitter. Quanto às duas dezenas de compatriotas seus, intimidados, isolados e deixados sem apoio pelas autoridades portuguesas e pelos mesmos sindicatos, afirmou o embaixador que estes regressaram a Portugal «de livre vontade». Pois então, sendo assim, tudo bem e paz na terra aos homens de boa vontade.

            Atualidade, Democracia

            De Ur a Alguidares de Baixo

            J. L. Saldanha Sanches disse a noite passada no programa de televisão da outra senhora que «não há obras públicas sem saco azul». Faz parte da ordem natural das coisas e não existe crise económica ou política antidespesista que a possa contrariar. É assim pelo menos desde o tempo dos sumérios e dos seus construtores de zigurates. Porque haveríamos nós de ser diferentes?

              Apontamentos, Devaneios

              Mensageiros do apocalipse

              Utopias e companhia

              Publicado numa outra versão na LER no. 76

              John Gray sustenta que a experiência política contemporânea não é senão um capítulo da história da religião, procedendo do cristianismo e da sua concepção linear do tempo. Ela integra a crença num momento e num locus utópico que saiu reforçada com a afirmação, após o triunfo da Revolução Francesa, de narrativas apostadas em conceber a História como trajecto lançado num único sentido, em condições de abrir as portas a um amanhã irrevogavelmente afortunado. Expressão de uma vertigem que sublima o antigo impulso religioso, a retórica pós-revolucionária – nas vertentes jacobina, bolchevique ou nazi – afirmou assim a crença num futuro colectivo, feliz e decisivo, embora se tenha mostrado inapta para promover a sua efectiva construção. Gray considera que ela não fez senão retomar as convicções messiânicas, fundadas na ideia de que a História possui uma intriga subjacente, que cruzaram a Baixa Idade Média e atravessaram os tempos modernos, dando corpo a movimentos milenaristas de natureza religiosa ou secular.

              Em grande parte de A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas, ocorre um esforço para mostrar de que forma em diversas situações contemporâneas – como a ascensão do neoliberalismo e da Terceira Via, o intervencionismo militarista americano, a ascensão dos fundamentalismos islâmico e cristão, ou as tensões em redor das novas formas de terrorismo -, se detecta o mesmo erro básico e funesto, traduzido na convicção de que existe uma espécie de finalidade histórica única, destinada a impor um modelo universal, pela qual alguém deve assumir a responsabilidade. Particularmente visada é a intervenção dos utopistas neoconservadores e religiosos na definição da política externa americana sob a administração de George W. Bush, tanto na sua vertente mais pragmática (procurando, por exemplo, impor um modelo ocidental de democracia para o Iraque), quanto no seu lado assumidamente apocalíptico, destinado a vincar o papel redentor dos Estados Unidos da América.

              Como numa missa negra – Black Mass é o título original da obra, que a tradução portuguesa não seguiu -, verifica-se uma inversão perigosa do objecto sagrado. A dimensão utópica, essencialmente consagrada como positiva e redentora ao longo dos últimos dois séculos, é aqui voltada então do avesso e apontada aos humanos como um ídolo sedento de sangue, destinado a causar logros, desilusões, ou, bem pior, a impor por toda a parte o sofrimento e a morte. As utopias, diz Gray, «são sonhos de libertação colectiva que na vida real se transformam em pesadelos.»

              Nesta obra de filosofia política, patenteia-se uma leitura cínica, embora sedutora, do conceito de utopia. Leitura que passa pela eleição de um antídoto destinado a derrotar o canto de sereia que esta a todo o momento sugere. O autor chama realismo a esse antídoto, definindo-o como a aceitação de que a vida não consiste afinal na demanda de soluções absolutas e salvadoras, mas antes, inversamente, no reconhecimento da existência de problemas insolúveis frente aos quais se devem ir apenas, caso a caso, tomando as decisões possíveis. Contra as utopias que exprimem uma continuação da religião por outros meios, sugere-se pois um contra-veneno. Resta saber se este funcionará e se a atracção pela imaginação utópica não é de facto, como insistiu, entre outros, Ernst Bloch, uma característica recorrente e inevitável, contra a qual a consciência do realismo pouco poderá.

              John Gray, A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas. Tradução de Freitas e Silva. Guerra e Paz, 312 págs.

                Atualidade, História

                Corporativismo

                Operários

                São inquietantes, e muito, as manifestações de milhares de pessoas, junto às refinarias de Lindsey e de Grangemouth, à siderurgia de Teesside e à central eléctrica de Aberthaw, no Reino Unido, contra a presença de operários estrangeiros, sobretudo de portugueses e italianos. O apoio de alguns sindicatos britânicos a medidas xenófobas destinadas a protegerem o emprego dos trabalhadores locais – que em regra até há pouco rejeitavam as tarefas mais difíceis cumpridas pelos imigrantes – vem reforçar pesadamente a dimensão sinistra do episódio, mas indiciam também uma tendência que vem cruzando fronteiras.

                Os nossos sindicatos, demasiadas vezes envelhecidos nos métodos, nas estratégias e até nos rostos, ainda não chegaram tão longe, mas mostram muitas vezes sintomas umbiguistas e corporativistas igualmente inquietantes. Refugiados numa dimensão ultrapassada e muitas vezes partidarizada da luta sindical, esquecem quase sempre os imigrantes (legais e ilegais, que raramente votam ou se sindicalizam), os jovens (que não constam dos seus planos e lhes pagam na mesma moeda), os desempregados e os reformados (que não são trabalhadores, não tendo por isso peso nos conflitos laborais), as mulheres (cujas especificidades reduzem quase sempre à condição supostamente paritária de trabalhadoras), acantonando-se também na defesa de algumas formas de proteccionismo que são, no mínimo, socialmente perigosas. Ainda não chegámos a Inglaterra, mas indícios de que nos podemos aproximar rapidamente do mau exemplo começam a surgir. E não só no horizonte.

                PS – Houve entretanto quem «enfiasse a carapuça» a propósito deste brevíssimo comentário (que, obviamente, não é «análise» alguma). Nele não se atacam «os sindicatos», como qualquer leitor que não leia isto no «registo do acossado» facilmente percebe. Referem-se apenas algumas características presentes na prática de um certo modelo de sindicalismo. Velho, dependente, autofágico, e, é esse o problema aflorado, tendencialmente corporativista.

                  Atualidade, Democracia, Opinião

                  O Twitter e eu (de novo)

                  Tenho recebido mensagens de algumas pessoas, que imagino motivadas pelas referências que aqui tenho deixado e por causa delas me julgam o praticante que não sou, perguntando-me para que serve o Twitter e se vale a pena entrarem no barco. Querem sobretudo que lhes diga quais são as vantagens do acessório, presumindo que não existem desvantagens e suspeitando que estão a perder alguma coisa. Tenho respondido dizendo sempre mais ou menos o mesmo: o Twitter é uma boa ferramenta para o acesso a informação rápida, curta e incisiva, em grande quantidade, mas é também um factor de ruído e um devorador de energia se lhe dermos demasiada atenção. Por isso sou um twitteriano passivo. Recebo, leio e anoto muito mais do que ofereço. E quase só ofereço aquilo que julgo poder interessar minimamente a quem me segue.

                    Cibercultura, Etc.

                    Riso, crítica e resistência

                    Vladimir Illitch Groucho

                    Publicado numa outra versão na LER no. 76

                    O título, Foice e Martelo, evoca uma publicação militante ou uma daquelas obras mais grosseiramente anticomunistas dos tempos da Guerra Fria. Mas trata-se antes de uma divertida viagem, centrada na proliferação do humor vivida entre 1917 e 1989 nos países da Europa de Leste, que o apresentador de televisão e escritor britânico Ben Lewis desenvolveu a partir de uma extensa pesquisa sustentada na leitura de livros e de artigos de jornal, na consulta de arquivos da polícia e dos tribunais, e na gravação de alguns depoimentos orais.

                    Sob os regimes do «socialismo real», coexistiram quase sempre dois tipos de humor. Um, mais variado e dependente das circunstâncias, era o das anedotas clandestinas, populares, anónimas, vocacionadas para a paródia das falhas ou das iniquidades do sistema. O outro, oficial, abrangia algumas revistas, o cinema, a rádio e o espectáculo musical, procurando servir-se da sátira, ainda que de forma contida e centrada numa lógica de «humor positivo», para obter o apoio das populações ou para as educar de acordo com objectivos políticos categóricos. O primeiro tipo é, naturalmente, muito mais rico e interessante, surgindo com frequência como veículo de resistência, ou pelo menos de crítica, embora comportasse riscos muitíssimo elevados para quem dele se servia. Milhares de cidadãos foram detidos, enviados para campos, expulsos dos empregos, ou ficaram sem os seus bens, por haverem contado pequenas anedotas, ou dito piadas que envolviam dirigentes do Partido e do Estado, muitas das quais pouco mais eram, como se pode hoje provar, que meros jogos de palavras, inofensivos até aos olhos de alguns dos condenados. Mas era tão forte e constante a sua presença que até membros do aparelho partidário ou da polícia por vezes as contavam aos seus próximos.

                    Um dos indícios da força dessa presença pode associar-se ao facto de muitas das historietas terem cruzado as fronteiras dos diversos Estados e atravessado gerações. Lewis constrói uma cronologia desse processo, mostrando o modo como a multiplicação do humor não-oficial, ou a alteração dos temas utilizados e das figuras caricaturadas, correspondeu a tempos muito precisos, sendo claro que as décadas de 1930-1940, a da mais dura e repressiva fase do governo de Estaline, foram aquelas nas quais as anedotas se tornaram mais dúbias, enquanto o período do «degelo» krutcheviano, e depois a década que antecedeu o termo das democracias populares, viu este padrão de humor instalar-se como uma «segunda linguagem» em todo o bloco socialista e participar, de uma forma em alguns casos manifesta, no seu desmantelamento.

                    Um livro desta natureza, comportando um esforço de contextualização e de interpretação do anedotário anticomunista nativo, vale também, e provavelmente em primeiro lugar, pelas inúmeras piadas que oferece. Algumas delas com um forte sentido da ironia. Como aquela na qual à pergunta «qual o sexto sentido que toda a população soviética desenvolveu?» se responde com a frase sacramental «um profundo sentido de gratidão para com o Partido.»

                    Ben Lewis, Foice e Martelo. Tradução de Susana Serrão. Guerra e Paz, 368 págs.

                      História, Memória, Olhares

                      Sublinhar o irrelevante

                      Parece-me inapropriado que em 2009, num país europeu, um jornal de referência destaque numa notícia sobre a viragem em curso na Islândia, a quatro colunas e com chamada na contracapa, que «uma lésbica assumida vai governar o país».  A concessão ao fácil não deve colher no leitor-comum do Público, que gosta de ver este tipo de informação, se ela for relevante, integrada na notícia, sem dúvida, mas sem destaque maior que aquele atribuído à idade, à profissão, à actividade política e, eventualmente, aos passatempos da pessoa em causa. Falo por mim, mas julgo não estar sozinho.

                      P.S. Muitas horas depois de, bem pela manhã, ter redigido o anterior parágrafo, revisito a notícia no Público online. Pelo estendal de comentários sórdidos que se lhe seguiu, percebo como o título utilizado pelo jornal ainda é mais perigoso e lamentável do que inicialmente parecia.

                        Atualidade, Opinião

                        Pelo milésimo Jóta-Éle

                        JL

                        A partir de 1981 e ao longo dos primeiros sete ou oito anos de publicação, à época semanal, fui comprando sempre o Jornal de Letras. Mas não foram apenas problemas de espaço que num repente me levaram a deixar de o fazer, aí pelo final da década. Vinha-me já distanciando, havia algum tempo, de um dialecto que me parecia demasiado fixo, datado, de temas e rostos repisados até ao esgotamento, de alguma reclusão em relação a um conceito de cultura que cada vez mais me parecia elitista e redutor, de um grafismo sonolento, que nem era clássico nem moderno. Foram duas as gotas de água que me levaram a deixar de comprar o jornal: a chegada de um número crescente de colaboradores incapazes de transcenderem um discurso académico autocentrado (e eu, pobre académico, queria tanto ouvir outra língua, outros timbres), e aquela incomodativa mania, que durou anos, para titularem todos, absolutamente todos os artigos, servindo-se das suas primeiras palavras.

                        Claro que não deixei de pedir o JL no quiosque do costume, passando a fazê-lo apenas mais espaçadamente, sempre que alguém me chamava a atenção para algum artigo, um tema que me interessava em particular, uma ou outra notícia (raramente bombástica pois tal coisa não era, nem é, prática da casa). É essa a situação na qual me mantenho, até porque algumas das características que menos me agradavam se conservam e o esforço de renovação, sendo real, não foi ainda suficientemente claro para romper com uma espécie de «paradigma geracional» do qual, malgrado a data de nascimento que ostento no BI, não me sinto especialmente próximo. Se calhar, diria, antes pelo contrário. Mas tal não significa que deixe de aclamar com ambas as mãos esse esforço que permitiu ao JL, hoje subintitulado «jornal de letras, artes e ideias», sobreviver no velho «Reino da Estupidez» até ao seu número 1.000. E continuar a ser uma referência capital no panorama cultural português, com incontáveis artigos de valia única, informação quase sempre relevante e um espólio absolutamente fora do comum.

                        Ao acaso, e sem outra intenção que não seja servir ao mesmo tempo de Mercúrio, de Jeremias e de áugure, retiro deste número 1000 um fragmento de uma crónica publicada há quase trinta anos, já perto do final da vida, por Nuno Bragança. Que serve também de advertência a quem aprouver atribuir-lhe serventia: «Quando me recordo dos debates parlamentares a que assisti em Londres, penso que o que mais me impressionou foi o recurso constante ao sentido de humor, que mantém respirável a atmosfera que os problemas graves e as tensões políticas carregam inevitavelmente.» E outro de José Cardoso Pires, na morte do grande amigo Carlos de Oliveira: «Não consigo perdoar que ele tenha morrido com a doença da Pátria, que tenha sido esse o final, o veneno que lhe passou ao coração.» E outro ainda de Agustina: «A literatura tornou-se um recurso, uma curiosidade, quanto muito, um estilo.»

                        José Carlos de Vasconcelos, director e artífice desde o ovo, promete agora um número 1001 «voltado para o futuro». Vamos esperar, que pelo futuro espera-se sempre, embora ele seja já agora. Se não estou em erro.

                        Originalmente em Os Livros Ardem Mal

                          Memória

                          Antes morrer de pé

                          Luisa de Gusmão

                          Na secção «Escrito na pedra», o P2 do Público atribui hoje a Luísa de Gusmão, mulher de D. João IV e primeira rainha da nossa Quarta Dinastia, a frase «antes morrer reinando do que acabar servindo». Os historiadores do período sabem que nada prova ter tal frase sido pronunciada, para além daquilo que escreveu na Historia de Portugal Restaurado Luís de Menezes, o 3º conde da Ericeira, homem consabidamente dado a algumas invenções. Mas não deixa de ser curiosa a preservação da fábula, pelo menos parcialmente justificada pelos profundos sentimentos antiespanholistas que se foram enraizando entre nós a partir de 1640, e que depois o salazarismo não só aproveitou como relançou. A frase «é melhor ser Rainha por um dia, do que duquesa toda a vida», também foi erradamente imputada a D. Luísa. Aliás, foi-lhe atribuída ainda a lenda de ter armado cavaleiros os seus próprios filhos para que estes pudessem «combater» no dia 1º de Dezembro (quando o mais velho não tinha se não 5 ou 6 anos). Na escola primária ofereceram-me outra versão – «antes morrer de pé do que viver de joelhos» -, que mais tarde vim a saber ser imputada a Emiliano Zapata, a Dolores Ibarruri (a Pasionaria), a Franklin Delano Roosevelt, ao «Che» Guevara, e a não sei quantas mais pessoas que a terão ou não feito ecoar algum dia em algum lugar. Claro que a última versão é a mais harmoniosa e a politicamente correcta. E com ela a rainha Luísa nada teve também a ver.

                            História, Memória, Olhares